Caso Ângela Diniz revisitado

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O artigo tem por objetivo analisar o caso Ângela Diniz, episódio brasileiro dos anos 70 em que um homem matou a amante e foi absolvido no primeiro julgamento por decisão amplamente criticada, sob a ótica de teorias de defensores e críticos do positivismo.

1. Introdução

Na década de setenta, o Brasil passava por sua melhor fase econômica, num período que ficou conhecido como “milagre econômico”. No campo político, porém, a ditadura militar vivia seu auge. Emilio Garrastazu Médici era o atual presidente do Brasil e adotava uma política de forte censura à imprensa e extrema repressão aos movimentos esquerdistas.

Foi nesse contexto que se desenrolou o célebre caso Ângela Diniz, também conhecido como caso Doca Street. No dia 30 de dezembro de 1976, Raul Fernando do Amaral Street matou a tiros a socialite Ângela Maria Fernandes Diniz na Praia dos Ossos em Cabo Frio no Rio de Janeiro. Raul Fernando, mais conhecido como “Doca Street”, havia deixado sua esposa Adelita Scarpa e seus filhos para viver com a amante, Ângela; ele veio a cometer o homicídio – com quatro disparos de uma pistola automática Beretta – por ela ter rompido sua relação amorosa com ele, levando-o a acreditar estar sendo traído. Seu caso seria julgado por um tribunal do júri em 1980, quando já havia alcançado considerável repercussão, uma vez que as redes de televisão deram-lhe grande enfoque.

No julgamento, o advogado de defesa de Doca Street, Evandro Lins e Silva, deu início a sua tese dialogando com os jurados e empregando um discurso no qual argumentava que a lei não era uma forma tarifada de imposição de penas, mas sim um instrumento de proteção da sociedade dentro de critérios eminentemente humanos, compreendendo os motivos e as razões profundas que, algumas vezes, levavam as criaturas à prática de atos violentos ou desesperados na defesa de seus afetos mais caros; o advogado também acrescenta que o sistema penal brasileiro não é a solução, uma vez que, ao contrário do que diz sua premissa, não consegue regenerar, recuperar ou ressocializar os presidiários.

Lins e Silva passa então a descrever a vida de seu cliente, ressaltando suas virtudes, ausência de antecedentes e a falta que faria para os filhos que tivera em seu casamento; além disso, procurou manipular a opinião dos jurados chamando a atenção para fatos da vida de Ângela Diniz, salientando seu envolvimento em escândalos e problemas anteriores com a Justiça. A defesa, portanto, desviou o foco do crime e tentou transformar a própria vítima no centro da discussão, combinando essa estratégia com a ideia de uma “legítima defesa da honra” do acusado, que teria reagido às agressões morais a que foi submetido pela chamada Pantera de Minas; Lins e Silva chegou a defender que Doca Street havia “matado por amor”.

A boa retórica e os argumentos convictos de Lins e Silva convenceram os jurados; por cinco votos a dois, foi aceita a tese do excesso culposo no estado de legítima defesa e Doca Street foi condenado a uma pena simbólica de apenas dois anos de detenção com sursis.

A sentença desencadeou uma grande revolta popular. Movimentos feministas com o slogan “quem ama não mata” geraram uma pressão social tão acentuada que levou um promotor de justiça a recorrer da decisão; no novo julgamento, em novembro de 1981, Doca Street foi condenado por homicídio, recebendo uma pena de quinze anos de prisão em regime fechado.

Analisando as particularidades de ambas as decisões, a participação e a importância do movimento social que ganhou força na época bem como a própria argumentação e o ordenamento jurídico, recordamo-nos de diversas teorias formuladas por correntes e pensadores que comentaram a respeito do Direito, percebendo a presença de tais ideias no desdobrar de um caso concreto.

Nisso consistirá o objetivo do presente artigo: examinar o caso Ângela Diniz à luz das referidas teorias, observando a relação entre as ideias de defensores e críticos do positivismo jurídico e os fatos e acontecimentos.

2. O caso Ângela Diniz e as teorias positivistas

Começaremos a análise a partir da doutrina positivista, especificamente pelas ideias de Hans Kelsen, Norberto Bobbio, Ronald Dworkin, Niklas Luhmann, Jürgen Habermas e Robert Alexy.

Começando pela teoria de Hans Kelsen, seria possível apontar o primeiro julgamento como um exemplo daquilo que esse estudioso mais criticava em sua teoria do Direito; Kelsen tenta estabelecer uma Teoria Pura do Direito, excluindo dele tudo aquilo que não pertença ao seu objeto.

É possível observar transparecer em vários momentos da argumentação de Lins e Silva a tentativa de obter uma resposta fora do direito. Afirma que tudo o que sabe, aprendeu no convívio dos cidadãos jurados, que o ensinaram a entender a explicação da lei não como uma forma tarifada de imposição de penas, mas como um instrumento de defesa da sociedade dentro de critérios eminentemente humanos, compreendendo os motivos e as razões que, algumas vezes, levam as pessoas à prática de atos violentos ou desesperados na defesa de seus afetos mais caros. “Aprendi no Júri maciças lições de vida, presenciei gestos de solidariedade, vi decisões carregadas de sabedoria”, acrescenta.

Em outros momentos, faz declarações que demonstram bastante seu ponto de vista: “O juiz togado está jungido a regras legais para ele intransponíveis, por motivos técnicos e razões formais. Há um limite que ele não pode ultrapassar, mesmo que a consciência lhe dite outra coisa”, e depois acrescenta que o Júri é uma instituição democrática, que representa o povo dentro da justiça, julgando de “consciência, com amplitude de visão, sem peias legais, julgando com o alto sentido finalístico de verificar se alguma pena deve ser aplicada ou se não o deve, se ela é útil ou se ela não é útil, se ela representa alguma vantagem para a sociedade ou de não existe essa vantagem.”

Voltando à teoria de Kelsen, ele afirma que a norma é que atribui significação jurídica à conduta humana regulada, funcionando como esquema de interpretação dessa conduta como lícita ou ilícita, boa ou má, servindo como o juízo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato jurídico (ou antijurídico), como resultado de uma interpretação específica, normativa.

No entanto, o teórico não considera normas jurídicas todas as normas. Seriam elas apenas aquelas que prescrevem sanções para determinada conduta humana, estabelecidas em uma relação de “se A... então B deve ser”; portanto, o teórico alemão vê a necessidade da aplicação de uma sanção específica para que as normas sejam cumpridas. No julgamento de Street, contudo, a norma que prevê uma prisão de oito a dezesseis anos como pena pelo homicídio foi ignorada; a decisão não se baseou na norma do direito, mas sim em um preceito moral de um grupo de jurados. Para o direito se sustentar, é necessário que haja segurança jurídica, que se acredite que o direito é igual para todos e que as decisões judiciais são previsíveis. Embora a decisão tenha respaldo jurídico por estar vinculada a uma interpretação da lei, ela seria inválida de acordo com Kelsen por se sustentar em áreas externas ao direito puro.

Ao final de um julgamento, de acordo com a corrente positivista, a condenação é o ponto crucial, uma vez que representa a sanção que deve ser sofrida pelo indivíduo por seu desvio de conduta. Observa-se a presença dessa noção no caso, em que o estopim da revolta popular e dos movimentos feministas foi a pena branda designada ao réu, que não condizia com a gravidade do crime.

Norberto Bobbio faz uma análise acerca da teoria do Direito de Hans Kelsen e a critica por fazer da norma o ponto fundamental do direito, acreditando ele que não seria a norma, e sim o ordenamento jurídico, o verdadeiro foco. Assim, normas que não se vinculam a nenhuma sanção podem fazer parte do direito, estando dentro do ordenamento jurídico, como normas de critério formal. Com isso, Bobbio afirma que o ordenamento é que deve ter a sanção como instrumento de sua aplicação e não como fim do direito; essa afirmação do teórico em especial lembra a argumentação veementemente defendida por Lins e Silva, que frisava que a punição em si não era o objetivo principal da aplicação da justiça.

Bobbio muda então o foco da questão levantada por Kelsen, analisa o ordenamento e não mais a norma, chegando a três principais problemas de um ordenamento jurídico: a hierarquia das normas; as antinomias jurídicas; as lacunas do direito. Mesmo assim, para Bobbio, as respostas para os problemas jurídicos devem estar dentro do ordenamento e não fora dele e, nesse caso, embora a decisão inicial tenha sido questionada e posteriormente anulada, ela encontrava resposta no ordenamento, na medida em que o crime foi enquadrado como excesso culposo no estado de legitima defesa, crime esse que pode gerar penas mais leves.

Dworkin, um positivista contemporâneo, acredita que a moral política deve ser aplicada durante as decisões, sendo ela definida como a moral da comunidade na qual o juiz está inserido, visto que ele não pode se dissociar da mesma; com isso, afirma que o processo de interpretação não é algo isolado, pois a sociedade interpreta e o juiz faz parte dela.

Esse pesquisador fala no direito como um “romance em cadeia”, constituído de capítulos que no direito seriam as decisões judiciais anteriores; assim como os romances precisam de um nexo harmônico unindo seus capítulos, as decisões devem ser coesas entre si, tecendo uma jurisprudência coerente. A decisão que levou Doca Street a ser condenado a apenas dois anos de detenção com sursis provocou uma quebra do romance em cadeia, visto que em casos semelhantes a pena resultante do julgamento era maior, caracterizando o crime como homicídio doloso.

É possível observar que todo um movimento social se formo em prol da mudança de decisão judicial, alegando que a moral da sociedade queria que Doca Street fosse condenado pelo assassinato de Ângela Diniz e a nova decisão seguiu essa vontade, demonstrando uma aplicação da moral política durante o julgamento. Assim deve proceder o “Juiz Hércules”, que deve procurar ao máximo a melhor resposta para ser dada como a única correta e trabalhar com equidade e justiça. A esse respeito, contudo, cabe uma observação: embora traços desse conceito possam ser observados no caso trabalhado, vale lembrar que a teoria de Dworkin defendia a decisão exclusiva do juiz, que deveria tomar unicamente para si as funções citadas, enquanto que o julgamento de Doca Street foi decidido por um tribunal do júri.

Além disso, para Dworkin, o direito é princípio e deve ser interpretado como tal. Portanto, o princípio de justiça e equidade deveria ter sido aplicado no julgamento de Doca Street; como não foi, suscitou uma revolta popular e terminou por precisar ser revisto e novamente julgado.

Seria possível argumentar que, considerando-se a mentalidade predominante na antiga sociedade brasileira, muitos outros casos julgados chegavam a um desfecho similar; no entanto, como afirma Dworkin, a segurança jurídica pode mudar à medida que a moral política da sociedade se altera, contanto que isso seja estabelecido de maneira concatenada na forma de um romance.

Por sua vez, Luhmann chega a um ponto semelhante, defendendo que nem o legislador nem o juiz devem estar com suas atenções voltadas para o futuro ou para o passado, mas sim para o presente, no qual estão sujeitos a uma expectativa geral – entendida tal expectativa como a segurança jurídica.

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Luhmann pensa que o direito, no caso da decisão judicial, é contingente: existem várias possibilidades de ação social e também de resposta do direito, e o juiz deve variar a decisão dentro dessa contingência, estando, apesar disso, vinculado a uma expectativa geral. Essa expectativa não foi correspondida no caso em questão, pois os membros do júri, embora tendo o papel de representar a sociedade e seus preceitos, se deixaram seduzir pelo discurso persuasivo do advogado de defesa e acabaram por criar uma decisão controversa.

Como um sociólogo, Luhmann acredita que o contexto social tem influência sobre a decisão; em sua opinião, o operador deve trabalhar com a visão do presente. No entanto, é justamente por isso que existe a segurança: o juiz não pode mudar de forma brusca a expectativa geral acerca de uma decisão. No caso abordado, o primeiro julgamento faz isso e deste modo leva a uma grande repercussão. Como também observado pela ótica do romance em cadeia de Dworkin, a coesão entre as decisões foi quebrada, ficando visível que a resposta escolhida inicialmente não foi adequada.

Notório defensor da racionalidade como coletiva, social, Habermas defende que a racionalidade humana deve passar de um “agir estratégico” – baseado em interesses individuais, com foco no ganho pessoal até mesmo em ações coletivas, bem como ausência de um espaço de discussão e argumentação – para o “agir comunicativo”, caracterizado pela colaboração, concordância de interesses e diálogo a respeito de objetivos que são melhores para todos. A presença de um tribunal do júri no caso Ângela Diniz aproxima-se da concepção deste pensador de um órgão colegiado, representando um ponto de vista simbólico da população acerca do julgamento.

Habermas aceita a existência de uma única resposta com determinada argumentação, o que foi acreditado pelo juiz no primeiro julgamento. Entretanto, com novas informações, outros fatores – nesse caso, a pressão social – a resposta pode ser revista e mudada, uma vez que os novos elementos alteram o panorama do caso e levam, portanto, ao surgimento de uma nova “única resposta correta”, o que teria acontecido no segundo julgamento.

Mais um positivista dogmático pode ser analisado: Robert Alexy, que, com sua teoria da ponderação e da inclusão dos princípios no ordenamento jurídico, acredita que a resposta jurídica nada mais é que uma ponderação entre o princípio que melhor se adeque à situação. Houve uma nítida ponderação na ocasião do primeiro julgamento, em que o júri deveria escolher entre os fatos do caso e os argumentos de Lins e Silva, que ressaltara supostos defeitos da vítima e qualidades do réu; predominando na época a visão da “defesa da honra” do acusado, o júri votou a seu favor.

A escolha acabou se provando como não sendo a mais adequada; ante a reação social fortemente negativa, o caso foi levado de volta às cortes e aconteceu uma nova avaliação, uma nova ponderação de proposições, agora levando em conta também o peso das manifestações ocorridas, em especial do movimento feminista. Nessa segunda ocasião, prevaleceu a visão do ocorrido como crime de homicídio.

3. O caso Ângela Diniz e os críticos do positivismo

Como toda teoria, ideia, prática ou ação, o positivismo jurídico possui defensores e críticos. As teorias abordadas acima são enunciadas por defensores de um direito mais ligado às normas ou ao menos ao conjunto normativo da lei. No entanto, no Brasil contemporâneo existe uma série de novas demandas sociais, que ou não estão bem estabelecidas pela lei ou são oriundas de mudanças históricas na forma de pensamento social e a lei não está adaptada a essas modificações.

Uma corrente de críticos desse direito mais ligado à norma tem início no Rio Grande do Sul, onde alguns juízes se reúnem e começam a discutir sobre como as decisões deles devem ser feitas, em que princípios devem se basear e qual objetivo devem alcançar. Começam assim a corrente do Direito Alternativo.

Essa corrente se baseia nos seguintes princípios: não aceitação do sistema capitalista como modelo econômico; combate ao liberalismo burguês como sistema político social; combate irrestrito à miséria de grande parte da população brasileira e luta por democracia, entendida como a concretização das liberdades individuais; simpatia de seus membros em relação à teoria crítica do direito.

Os teóricos do “alternativismo” criticam a fonte formal do direito ser privilegiada em detrimento da fonte material. Além disso, é possível ver a parcialidade do direito pela própria exegese que tenta demonstrar como o sistema é imparcial, pois a técnica escolhida é reflexo da ideologia usada. Para eles, o direito dogmático, sem questionamentos, leva o judiciário a dar respostas que não estão em consonância com os anseios da sociedade.

Em um primeiro julgamento, Doca Street e seu advogado conseguiram, por vias legais, a mudança da tipificação do crime, que não mais era tratado como homicídio doloso, mas sim excesso culposo de legítima defesa, que formalmente pôde ser enquadrado no caso – o que demonstra que o direito é uma ciência contaminada pela ideologia. No entanto, a decisão acaba por absolvê-lo, de certa maneira, do crime de homicídio, e isso estava em tamanho desacordo com os valores sociais que um forte movimento se iniciou em prol de um novo julgamento e teve sucesso em seu protesto.

Já no segundo julgamento, pode-se dizer que houve o positivismo de combate, que é a luta pela real aplicação das leis que garantem proteção aos menos favorecidos; no caso, as mulheres, que possuem um histórico de exclusão social, em épocas mais antigas não lhes sendo concedidos direitos políticos e por muitas vezes nem mesmo diversos direitos fundamentais.

Buscando autores específicos que trabalhem com a linha de pensamento crítico, pode-se citar Antonio Carlos Wolkmer, notável crítico do positivismo clássico, que em sua teoria ressalta a importância dos movimentos sociais no direito. Ele faz uma distinção entre antigos e novos movimentos sociais; os antigos, tendo lugar até o final da década de 60, seriam adeptos do marxismo e do anarquismo, afiliados a instituições como sindicatos e partidos e pautados na luta de classes.

Os novos, começando em meados dos anos 70, seriam gerados a partir de uma insegurança da população com relação à efetividade – ou falta dela – dos órgãos jurídicos e políticos; seriam caracterizados por grupos mais autônomos e independentes compostos de indivíduos que partilham dos mesmos valores e de identidade e lutam por direitos de seções específicas da sociedade.

O segundo conceito se encaixa perfeitamente no caso, começando pela época mencionada; após o primeiro julgamento, que teve lugar no fim dos anos 70, houve uma manifestação popular provocada pela indignação com relação à decisão tomada pelo sistema no julgamento. Tomando como principal exemplo o movimento feminista, pode-se observar todas as características descritas por Wolkmer como as fundamentais dos novos movimentos sociais, e percebe-se a força dos mesmos ao se constatar que este alcançou seu objetivo imediato de exigir um novo julgamento.

Wolkmer também era um defensor da participação popular, na forma de movimentos, no espaço público, para que se pudesse caracterizar uma verdadeira democracia – inclusive no judiciário, falando em democratização do acesso, comissões de apelação e arbitragem, comitês de conciliação, entre outras proposições. Embora nem todas entre essas as ideias do pensador tenham sido executadas na época dos julgamentos do caso, é possível observar vários traços principais, condensados principalmente na figura do movimento feminista e seu protesto bem-sucedido, participando do judiciário.

Por fim, abordaremos a visão de Roberto Lyra Filho, pensador influenciado por Marx que propôs sua teoria numa época em que o direito era fortemente usado pelo Estado ditatorial para legitimar sua opressão – algo demonstrado facilmente pelos Atos Institucionais. Teceu uma crítica veemente ao dogmatismo, condenando Kant por se afastar de um inquestionável metafísico simplesmente o substituindo por um inquestionável racional em sua teoria do direito.

Lyra Filho defendia que a abstração afastava o direito da sociedade (o que também era, segundo ele, uma ferramenta da opressão, visto que formava a base do dogmatismo); pode-se argumentar que a defesa de Lins e Silva no primeiro julgamento teve sua base na abstração, visto que ele tentou afastar os jurados dos fatos concretos do caso e voltar sua atenção para uma análise das vidas e dos temperamentos de seu cliente e da vítima, tentando criar uma imagem positiva do primeiro e denegrir a da segunda.

O pensador fala sobre uma desdogmatização do direito, ressaltando que o sistema jurídico não deve ser calcado numa simples abstração, que deve ser uma criação viva de autoria social – o cargo de juiz traz consigo responsabilidade, e é preciso que ele também seja um intérprete da realidade. Isso se mostra no segundo julgamento e em todo o contexto que levou a ele: a população se manifestou por meio de protestos, influenciando o sistema jurídico ao deixar clara sua insatisfação com o resultado original definido pelo júri; a força dessa manifestação foi levada em conta na reapreciação do caso, levando a uma decisão completamente diferente.

4. Conclusão

 É importante observar como esse caso nos mostra a decisão como fator variável. Depende de uma argumentação convincente de acordo com Habermas, o que possibilitou a simbólica pena inicial de dois anos com sursis, tendo sido ela resultado do efeito da argumentação de Lins e Silva no júri. A decisão, se observada como a única resposta correta, pode ser revisada e alterada devido a uma nova argumentação melhor (Habermas), pode evoluir de acordo com as demandas sociais (Luhmann), pode ser alterada devido a uma mudança na moral da sociedade com o tempo (Dworkin); ou pode-se considerar que, mesmo por vezes, não existe uma única resposta correta, mas sim um conjunto de respostas corretas que aparecem como mais ou menos adequadas para cada caso concreto (Alexy), sendo necessária uma ponderação de princípios, tratados como normas, na qual aquele princípio que causar maior consequência deve prevalecer sobre o outro. Fora a ideia de que a única resposta deve ser dada pela norma (Kelsen) ou se encontrar dentro do ordenamento jurídico (Bobbio).

Observando a partir do ponto de vista crítico ao positivismo, percebemos a importância da consideração de elementos sociais externos ao dogmatismo – como os efeitos da decisão na sociedade e a reação da mesma, algo exemplificado pelo peso dos protestos no caminhar do caso – mas, como defendido por Lyra Filho, sem se afastar demais dos fatos, separar o concreto e o abstrato a tal ponto que o foco jurídico é perdido ou, como analisado pela comparação entre direito e psicanálise, a utilização da segunda como se fosse prova ou evidência crucial na apreciação do caso. É preciso conciliar harmonicamente lei e sociedade sem que se perca de vista qualquer um dos dois em suas devidas proporções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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BARROS-BRISSET, Fernanda Otoni de. A Substância da Tragédia: literatura, direito e psicanálise. Revista Direito e Psicanálise. Curitiba, v. 2, n. 1, p. 23-36, jan./jun. 2009.

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DWORKIN, Ronald. Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade, volume I. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e Estado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 62-68

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LYRA FILHO, Roberto. Para um direito sem dogmas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1980.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro, 1985. pp. 7-42

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico – fundamentos de uma nova cultura jurídica. São Paulo: Editora Alfa Ômega, 2001. pp. 119-168 e 232-284.

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Sobre os autores
Renato de Sousa Carvalho

Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Piauí - UFPI.

Victor Meneses de Carvalho Coelho

Acadêmico de Direito pela Universidade Federal do Piauí - UFPI

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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