O título, por si só, já soa estranho, pois congelar a despesa pública por duas décadas não é razoável, nem é possível. A população cresce e as necessidades públicas a serem satisfeitas pelo regime da despesa pública cresce, no mínimo, na mesma proporção. O certo é que o crescimento das necessidades públicas supera em muito o crescimento populacional. À medida que a sociedade vai evoluindo, tornando-se mais esclarecida e mais politizada, vai aumentando o exercício da cidadania, e com isso irá exigir mais e mais serviços públicos de qualidade. Os velhos caudilhos que dominam a política brasileira sabem disso. Por isso, não estão interessados em investir na educação integral, que não se confunde com mero ensino, em que o discente vai passando de um ano para outro no ensino fundamental e no ensino médio. Saem com canudos, mas não sabem interpretar o que escreveram ou o que leram. São os analfabetos funcionais. Os dados do ENEM são estarrecedores!
Parece inacreditável, mas é o que está na PEC nº 241/2016, que institui, no âmbito dos três Poderes e para o TCU e órgãos do Ministério Público e Defensoria Pública, um limite de despesa primária total. Despesa primária total são os recursos financeiros destinados à implementação do plano de governo refletido no Orçamento Anual, sem levar em conta as despesas com os juros. Para o exercício de 2017 esse limite corresponderá à despesa primária total realizada no exercício de 2016 corrigida pelo IPCA. Nos exercícios seguintes, ao valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior corrigido pela variação do IPCA. Esses limites constarão na Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO – que nunca foi observada até hoje.
Ora, se examinarmos a causa do déficit de R$170 bilhões que deve ter aguçado a mente do formulador (ou dos formuladores) dessa inusitada PEC constataremos, facilmente, que ela decorreu da inobservância sistemática e programada da Lei do Plano Plurianual – PPA –, da Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO – e da Lei Orçamentária Anual – LOA –, passando por cima da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF – que tutela as leis orçamentárias, ao instituir o regime de Gestão Fiscal Responsável, que, na gestão da Presidente Dilma, foi transformada em regime de total irresponsabilidade fiscal. A contabilidade pública criativa cresceu de forma assustadora, quer superestimando a receita mediante inclusão de arrecadação de tributo juridicamente inexistente, quer simulando operações de vendas de ativos das estatais para o exterior a fim de equilibrar a balança comercial, quer retendo os recursos financeiros correspondentes às verbas consignadas no orçamento anual (pedaladas), quer, enfim, descumprindo in totum a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento (CEF, BB, BNDS). Entretanto, a Lei nº 10.028/2000 sancionada, concomitantemente, com a LRF enumera oito condutas tipificadas como crimes contra as finanças públicas. Esses crimes acham-se incorporados ao Código Penal sob os artigos nºs. 359-A, 359-B, 359-C, 359-D, 359-E, 359-F, 359-G e 359-H. Esses dispositivos, passados 16 anos, nunca foram aplicados, a exemplo do crime de excesso de exação fiscal previsto no § 1º, do art. 316, do Código Penal, apesar de ser cometido diariamente ao longo do tempo. Toda infração criminal praticada com frequência, sem repressão, acaba transformando-se em uma ação rotineira que tem o condão de gerar o mesmo efeito de uma descriminalização por via legislativa.
A única forma de conter os gastos é observando os dispositivos da LRF, notadamente, o seu art. 9º, que determina limitação de empenhos, e os seus arts. 19. e 20, que fixam os limites globais e individuais por Poder com referência aos gastos com pessoal. Para tanto, é preciso que os órgãos de controle interno e externo de fiscalização e controle da execução orçamentária exerçam com eficiência o seu papel fiscalizador e controlador da execução orçamentária, valendo-se dos instrumentos previstos no capítulo IX da LRF concernente a Transparência, Controle e Fiscalização.
Note-se que os instrumentos da transparência fiscal (balancetes mensais, relatórios bimestrais de execução orçamentária, relatórios trimestrais de gestão fiscal) são obrigatoriamente disponibilizados em tempo real por meios eletrônicos. Daí porque não faz sentido a apuração das irregularidades apenas no final do exercício, a pretexto de que a metas são anuais, como se argumentou no recente processo de impeachment. Fiscalizar e controlar significa acompanhar a execução orçamentária a fim de corrigir a tempo os desvios constatados. Aliás, na prática, nem no final do exercício os desvios orçamentários constatados são levados a sério. Simplesmente mudam-se as metas por via legislativa encampando e legalizando as irregularidades cometidas. Assim, não é possível zelar pela saúde financeira do Estado.
Apesar de irrazoável a PEC em discussão, toda a mídia está aplaudindo, elegendo-a como panaceia para curar de vez os males que contaminam as finanças públicas. Há algo de estranho nessa unanimidade. Lembro-me que, há décadas, alguém indignado com a atuação dos Vereadores teve a ideia de lançar como candidato o cacareco, um hipopótamo que habitava o Zoológico do Estado. Logo, a mídia toda passou a defender ardorosamente essa candidatura, que nada tinha de razoável, e o cacareco foi eleito com milhões de votos. O hipopótamo consagrado nas urnas não tomou posse no cargo, nem o nível de atuação dos vereadores melhorou em função desse episódio.
Dentro dessa realidade, da cultura do descumprimento sistemático da LOA, que conduziu o País a uma dívida de mais de cem bilhões em precatórios judiciais, ensejando três moratórias constitucionais, além de R$170 bilhões de déficit descoberto nos últimos meses, não é crível que a PEC sob exame trará bons resultados. Se não são cumpridas as leis infraconstitucionais, não é de se esperar que as normas constitucionais sejam cumpridas. Essa PEC, se aprovada1, só servirá para desmoralizar ainda mais a Constituição Federal já desfigurada por mais de 90 emendas. O resultado será catastrófico se a Emenda dela resultante for cumprida com inversão de prioridades, isto é, conter as despesas de capital, notadamente, as de investimento para aumentar as despesas de custeios, especialmente, a de pessoal. Em um país em desenvolvimento, as despesas de investimento hão de ser feitas mesmo à custa de endividamento para assegurar o crescimento econômico e, consequentemente, a qualidade de vida das gerações futuras. Nunca se pode perder de vista que o equilíbrio orçamentário não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para equilibrar a economia. O que importa é a qualidade da despesa pública e não apenas a sua contenção.
Ao invés de se preocupar com essa PEC inútil, deveria o governo concentrar-se na fiscalização eficiente dos gastos públicos. Só para ilustrar, no programa Bolsa Família, entre os exercícios de 2013 e 2014, foram desviados R$2,577 bilhões, o que corresponde a 4,5% do total do período. Descobriu-se 548.670 servidores públicos como beneficiários; 318.130 empresários; 89.586 doadores de campanha recuperando o dinheiro por via de benefício social e - pasmem os céus – 49.423 mortos e sepultados alimentando-se do Bolsa Família.
Em mãos de corruptos e de incompetentes, toda a receita pública do mundo será sempre insuficiente. A contrario sensu, em mãos de probos e competentes uma receita modesta será o suficiente para implementar os serviços públicos básicos de qualidade.
Por fim, se realmente o Executivo e o Legislativo têm vontade política de limitar os gastos públicos, deveriam se preocupar em reduzir o tamanho do Estado mediante a priorização, por exemplo, da PEC da redução do número de parlamentares mais caros do mundo, que está tramitando a passos de tartaruga; eliminação dos cargos comissionados a partir do segundo escalão, inclusive, devolvendo à administração pública o quadro de servidores efetivos e qualificados, submetidos aos rígidos princípios da hierarquia, a fim de preservar a moralidade pública e minimizar os atos de corrupção; e, por derradeiro, enxugar os órgãos do Poder Judiciário que se sobrepõem gerando intermináveis conflitos de competência conduzindo à morosidade e ao elevado custo de sua atuação.
Enquanto não for feito isso, uma Emenda para limitar os gastos não surtirá os efeitos aparentemente desejados. É fácil limitar gastos por via de uma Emenda. O difícil é a sua redução real mediante corte das mordomias, dos privilégios que atentam contra a moralidade pública, e supressão de benefícios fiscais e sociais desvirtuados que corroem o Erário. Sem essas medidas a economia de despesas ficará apenas no papel. É preciso atos concretos de redução das despesas públicas. Compreende-se que essa PEC inusitada tem por objetivo emitir um sinal para o público interno e externo que acabou o regime de gastança pública indiscriminada que dominava o governo anterior. Só que emitir sinais, positivos que sejam, sem a ação efetiva de contenção de despesas públicas, não terá efeito duradouro.
Nota
1 Já foi aprovada pela EC nº 95/16.