A geração da energia elétrica e as irregularidades no consumo

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4. AS PERCEPÇÕES DO CONSUMIDOR ACERCA DO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA

Para adentrarmos na visão que o consumidor possui ao utilizar os serviços de distribuição de energia elétrica partiremos da relação custo e benefício ou seja, a diferença entre os valores que o cliente recebe comprando e usando um produto, e os custos para obter este produto (MAYER, MARIANO e ANDRADE,2009).

A energia elétrica é um bem intangível e essa imaterialidade traz dificuldades para o entendimento do consumidor de que ela é produto que foi beneficiado, que há um custo para produzi-la e que há uma conta a ser paga, que não é simplesmente ligar o interruptor e fiat lux.

As empresas concessionárias atuam fazendo a distribuição (o serviço) desse bem para cada residência mediante o pagamento de uma taxa flutuante: quanto mais se consome mais caro é o serviço e mais alta é a conta a ser paga a cada mês.

No Brasil, o preço médio da energia elétrica residencial gira em torno de R$ 0,50/ kWh. É um dos mais elevados do mundo. Isto porque, a carga tributária (tributos e encargos) incidente sobre o setor elétrico nacional representam 45% do valor da tarifa paga pelo consumidor residencial.

No cálculo da conta de luz estão integrados o ICMS (Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que é um tributo de competência estadual, com alíquotas que variam de estado para estado; o PIS/PASEP (Programa de Integração Social / Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social),tributos cobrados pelo Governo Federal e finalmente a contribuição social de iluminação pública - COSIP / CIP que é uma contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública de responsabilidade dos Municípios e do Distrito Federal (ANEEL,2014).

Tem-se considerado, na doutrina e jurisprudência, como serviço essencial o elenco descrito no art. 10, I, da Lei de Greve, nº 7.783/89, que regulamentou o art. 9º, § 1º, da CF/88:

Art. 10. - São considerados serviços ou atividades essenciais:

I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; (BRASIL, 1989)

Desse modo temos um serviço essencial, a energia elétrica e por outro lado um valor, tanto monetário quanto social a ela conferido. Boa parte do processo de prestação do serviço ocorre fora da visão do cliente, isto é, os elementos que contribuem para a formação da qualidade percebida não são visíveis, não se pode escolhê-los, tocá-los e os principais pontos de contato com os clientes ocorrem em situações de incidentes como interrupções no fornecimento, atendimento a dúvidas, problemas no pagamento, entre outros. Então o julgamento de valor da qualidade do serviço está mais vinculado a capacidade de solução de problemas do que por exemplo o fornecimento ininterrupto de energia. (MAYER, MARIANO e ANDRADE,2009, p.6).

Exatamente por enxergar apenas parte da empresa, novos investimentos para a melhoria do serviço podem não ser percebidos como um elemento para o aumento da tarifa, podendo gerar uma sensação de injustiça por parte do consumidor, somada a impossibilidade de escolha, isto é, o consumidor de energia elétrica é diferente do padrão de decisão do consumidor onde este faz a sua escolha entre múltiplos fornecedores de produtos e serviços similares, sendo a opção inexistente, forçando uma relação de dependência.

Ser dependente não necessariamente significa ter fidelidade. De acordo com Mayer et al (2009, p. 9) a prestação de serviços de energia implica em relacionamento contínuo e, em geral, de longo prazo com a base de clientes, havendo alta retenção mas podendo haver baixa lealdade, desse modo a baixa percepção de valor e baixos níveis de satisfação poderão levar a interações com clientes zangados, mais propensos a engajar-se em ações que prejudiquem a empresa, entre elas não pagar a conta ou fazer ligações clandestinas.

Segundo Yaccoub (2010, p. 26) a energia elétrica, por sua intangibilidade, não é percebida como prioridade, assim pessoas honram o pagamento de outras contas e deixam a de luz em segundo plano.

Entramos em casa, apertamos o interruptor e a luz instantaneamente aparece; se queremos usar um forno elétrico, giramos o timer e o aquecimento tem início; apertamos um botão e o aparelho liquidificador funciona; ligamos o ferro elétrico na tomada e, em poucos instantes, ele está pronto para o uso, devidamente quente. Fazemos diariamente essa rotina de ações que utilizam energia e, muitas vezes, não nos damos conta de que estamos consumindo um produto e serviço. Só lembramos da sua existência quando se dá a falta.

Ainda tratando sobre percepções, Yaccoub ainda profere:

Para os indivíduos, a energia é um “dado” naturalizado, não é percebido como bem e serviço, como mercadoria a ser paga. Estamos diante de um impasse nas percepções de valor. O indivíduo só se dá conta da mercantilização da energia elétrica em dois momentos, quando a conta de luz chega mensalmente em sua casa, ou quando ele tem seu fornecimento cortado por endividamento (2010, p.45).

Mayer et al (2009, p. 7) desenvolveram uma pesquisa acerca do perfil do consumidor de energia elétrica, delineada de maneira a dar aos participantes a oportunidade de expressarem seus padrões de julgamento além das suas emoções relacionadas ao tema e método utilizado foi o focus groups ou grupos de foco, espécie de pesquisa qualitativa que promove reflexões sobre as fontes de motivações e de comportamentos complexos. Os participantes foram informados de que estavam participando de uma pesquisa sobre comportamento do consumidor, com propósitos acadêmicos, cujo objetivo era conhecer as opiniões e sentimentos das pessoas sobre preço e valor da energia elétrica por eles consumida.

Os pontos pertinentes que podemos extrair desta pesquisa são os seguintes:

  1. Relevância e benefícios da Energia Elétrica - O consumidor reconhece que o serviço é fundamental para garantir segurança, conforto e bem-estar, sendo que alguns entrevistados chegaram a afirmar que não saberiam viver sem a energia elétrica;

  2. Dependência do fornecedor - o consumidor deste tipo de serviço sente que possui baixo poder em relação à empresa e a cobrança da conta de luz. Há emoções negativas relacionadas à conta de luz, sensação de falta de controle e medo, havendo uma espécie de “lealdade hipotética”, ou seja, os clientes têm intenção de mudar, mas não podem fazê-lo;

  3. Sacrifício Monetário – Há o desconhecimento de que o consumidor avalia o preço unitário do KWh, e de que a tarifa de energia elétrica é estabelecida por um órgão regulador, no caso a ANEEL. A maioria dos entrevistados indicou avaliar apenas o preço final da conta e seu impacto no orçamento doméstico. Aqueles que pagam a taxa de iluminação pública sem que o serviço seja oferecido em sua rua, demonstram profundo sentimento de injustiça;

  4. Preços de referência - Para julgar se o preço é aceitável, o consumidor procura compará-lo com alguma dessas referências de preço, como outros serviços básicos, como água e telefone; com os valores da conta do mês anterior e com os valores pagos por outros clientes comparáveis a eles, vizinhos ou familiares que possuem o mesmo tamanho da família, mesmos eletrodomésticos na casa, etc.;

  5. Qualidade do serviço - Em muitos casos os entrevistados recorreram a lembranças e histórias envolvendo algum incidente crítico: falta de luz, problemas de pagamento, contatos feitos com a empresa entre outros;

  6. Valores Emocionais e Sociais – O uso da energia é associado a sentimentos de alegria relacionados a ter a casa bem iluminada, que a luz lembra momentos felizes, prosperidade, que uma casa escura é muito triste, e outros indicaram preocupação com a imagem social perante vizinhos e parentes caso não sejam capazes de pagar a conta de luz;

  7. Comportamentos – Há uma grande variedade de comportamentos relacionados ao uso da energia elétrica. Uns buscam reduzir o valor da conta de luz, indicando que ela é um peso no orçamento doméstico. A preocupação com a redução da conta de luz é objeto de conflitos familiares e de ansiedade emocional, citando por exemplo o medo de abrir a conta e as brigas que ocorrem em casa quando chega a conta. Muitos entrevistados relacionam também a economia e do controle do consumo com a preservação do meio ambiente, contudo reconheceram a dificuldade deste controle pela dependência de aparelhos elétricos;

  8. O furto de energia, o “gato” – O “gato” foi citado relacionado a desperdício de energia elétrica, a situação de pobreza e falta de moralidade.

Com relação ao gato feito em residências, Yaccoub (2010, p. 83) entende que o mesmo geralmente é feito para sustentar um conforto que determinada condição socioeconômica não pode arcar e não uma questão de necessidade básica. A autora diz que rege a prática a adequação do consumo energético ao padrão do nível de conforto almejado pelo consumidor, com base na aquisição de bens eletroeletrônicos dependentes da luz elétrica para funcionar, mas não querem, ou não conseguem, arcar com o preço, o ônus exigido, no caso, a conta de luz no fim do mês.

Dessa forma chegamos a duas situações: a primeira diz respeito àqueles que fazem o “gato” e as ligações clandestinas, tal como vimos anteriormente, independentemente de sua condição socioeconômica e aqueles que possuem uma ligação regular e não pagam a conta de luz por dificuldades financeiras, os inadimplentes.

Existem posições diferentes com relação ao corte de energia elétrica. Parte da doutrina insiste na defesa de que não pode haver corte no fornecimento de serviço essencial, pois essa é uma garantia constitucional e argumenta que (NUNES, 2013, p.162 - 163):

  1. O meio ambiente no qual vive o cidadão, seja sua casa ou seu local de trabalho deve ser equilibrado e sadio;

  2. Para a manutenção desse meio ambiente devem ser fornecidos serviços públicos ininterruptos;

  3. O corte do serviço gera uma violação direta ao direito do cidadão e indiretamente à própria sociedade;

  4. A prestação do serviço público não pode estar à disposição do Estado e de seus agentes. Não é possível falar em negociação do preço, acordo entre as partes nem em disponibilidade do objeto do negócio, logo não são o preço e seu pagamento que determinam a prestação do serviço público, mas a lei, daí concluindo que com ou sem pagamento o Estado não pode se eximir de prestar o serviço público.

Todavia, existe a acolhida de que a paralisação do serviço deve ocorrer quando há inadimplemento, sendo defeso apenas a interrupção repentina, sem aviso prévio, como meio de pressão para o pagamento da conta em atraso (CAVALIERI FILHO, 2011, p. 81). Tal posição é confirmada através do art. 6º, §3º, inciso II da lei 8.987/95, que trata da regulamentação das condições para a prestação dos serviços públicos sob o regime de concessão ou permissão:

Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio, quando por inadimplemento do usuário, considerando o interesse da coletividade.

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Para o consumidor pessoa física a jurisprudência do STJ tem consolidado o entendimento que o corte de energia elétrica por motivo de inadimplência será considerado legítimo desde que: não acarrete lesão irreversível à integridade física/saúde do usuário; não tenha origem em dívida por suposta fraude no medidor de consumo de energia, apurada unilateralmente pela concessionária; não decorra de débito irrisório; não derive de débitos pretéritos; não exista discussão judicial da dívida e que o débito não se refira a consumo de usuário anterior do imóvel (JUSBRASIL, 2013).

CONSUMIDOR. SUSPENSÃO NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA POR FALTA DE PAGAMENTO DE FATURA DE CONSUMO REGULAR DA AUTORA. CORTE DO SERVIÇO ANTERIOR AO ADIMPLEMENTO. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. CONDUTA DA AUTORA QUE PROCEDE AO PAGAMENTO DE FATURA COM LARGO ATRASO. RELIGAÇÃO DO SERVIÇO EM MENOS DE 24 HORAS. Analisando a fatura que originou o corte do serviço essencial (fl. 09), com vencimento em 05/06/2012, verifica-se que o pagamento foi efetuado no mesmo dia, porém após a suspensão do fornecimento da energia elétrica procedido pela concessionária demandada. Ausência de agir ilícito da requerida que agiu no exercício regular de seu direito Dano moral inexistente no caso concreto, tendo a autora dado causa ao corte de energia elétrica. SENTENÇA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. RECURSO DESPROVIDO.

(Recurso Cível Nº 71004448577, Primeira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Lucas Maltez Kachny, Julgado em 11/03/2014)

Já em se tratando de um ente público, a posição adotada é semelhante ou seja, é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica se, após aviso prévio, o usuário permanecer inadimplente, desde que sejam preservadas as prestadoras de serviços públicos cuja paralisação é inadmissível como, por exemplo, hospitais:

REEXAME NECESSÁRIO - MANDADO DE SEGURANÇA - CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA - FALTA DE PAGAMENTO - SERVIÇO PÚBLICO - PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE - SERVIÇOS ESSENCIAIS - POSSIBILIDADE. - O Município tinha ciência da possibilidade de corte de energia, tendo sido devidamente cientificado, inclusive com a indicação de seu débito, tanto é que celebrou termo de acordo e confissão de dívida, chegando a descumpri-lo. Assim legítima a suspensão do fornecimento de energia, devendo ser garantido, contudo, o fornecimento dos serviços essenciais, sob pena de ferir a dignidade da pessoa humana.

(TJ-MG - AC: 10313120092587001 MG, Relator: Jair Varão, Data de Julgamento: 18/04/2013, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 02/05/2013).


Considerações Finais

A energia elétrica é uma das formas de energia mais úteis para a humanidade. Ela é amplamente empregada em lares, fazendas e indústrias. A eletricidade fornece luz e produz calor para o funcionamento de refrigeradores, rádios e televisores; ajuda a mover praticamente todos os equipamentos das indústrias, como grandes tornos mecânicos e imensas fornalhas.

Onipresente no cotidiano, nossa relação com a eletricidade é tão natural quanto respirar, o que nos faz esquecer que a mesma não está ao nosso alcance de graça e sem o esforço de diversos atores para que nós tenhamos exatamente essa sensação.

Para a empresa concessionária de energia elétrica, o usuário inadimplente cujo fornecimento de energia elétrica é cortado é apenas mais um, em uma longa série de clientes que deverão receber o mesmo tratamento. Há um aparato legal, seja ele constitucional ou infraconstitucional que determina em que situações pode ser realizado ou não o corte de energia elétrica, destarte haverem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que só permitem que tal fato ocorra mediante somente a comprovação de um ilícito penal, e não obstante a isso, indivíduos ainda recorrem aos mesmos, como no caso dos “gatos”.

A percepção do consumidor invariavelmente é a de que ele é um injustiçado e de que a conta de luz é um obstáculo que o impede, por exemplo, de possuir um maior número de eletrodomésticos, pois apesar dos mesmos poderem ser adquiridos a crédito, a luz deve ser paga à vista e por toda a vida. A empresa é invisível para o consumidor, sua presença só é percebida em dois momentos críticos: no recebimento da conta da luz e quando a mesma falta. Quando ocorre um corte indevido, ou seja, a fatura foi paga mas ainda assim houve o corte, ou mesmo há quando sobrevém o inadimplemento, a concessionária põe em xeque a idoneidade do consumidor tirando o essencial para sua vida.

Ao cortar o fornecimento de energia elétrica, a empresa interfere em elementos muito valorizados para esses indivíduos. Seus alimentos poderão ser desperdiçados, a falta energia mexerá com seu bem estar iluminação, banho quente, ventiladores e o entretenimento através da televisão, rádio e computadores, dependendo do caso, os únicos meios de lazer de muitos consumidores.

O princípio da dignidade humana se sobrepõe à ordem econômica e ampara o consumidor não apenas para que o mesmo não sofra o revés do corte da energia, mas porque nessa relação concessionária versus consumidor é retirado dele o papel de protagonista, lhe é tolhida a escolha e a voz, fazendo com que o mesmo na dependência das agências reguladoras, da ausência de políticas públicas eficientes no setor e da escolha errada das nossas matrizes energéticas.


REFERÊNCIAS

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Sobre as autoras
Danielle Oliveira Alves

Advogada, trabalha na concessionária Manaus Energia

Carla Torquato

Doutora em Função Social do Direito - FADISP. Coordenadora do Grupo de Estudos de Direito de Águas (GEDA/UEA). Professora da Universidade do Estado do Amazonas.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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