O FETICHE PELA JURISPRUDÊNCIA

11/01/2017 às 13:00
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Estamos diante de uma crise do elemento “doutrina” no Direito. A rigor, o melhor instrumento de capacitação da classe jurídica, pois nele está à procura pela “razão de ser” de determinados institutos.

O legislador também se equivoca.  Sua palavra é somente a primeira, sobre a construção do direito.  Nem tudo que ele aprova vale.  Lei vigente não se confunde com lei válida.  A vontade última do direito não é do legislador, sim, dos juízes.  O século XXI é o século dos juízes (assim como o XIX foi do legislador e o XX foi do Executivo” (Luiz Flávio Gomes)

Pensava você que sairia da faculdade e que uma vasta leitura de livros lhe forneceria bagagem o suficiente para dobrar o Judiciário aos seus mais elevados conhecimentos doutrinários?

Pensou errado!

A atividade judiciária parece estar rumando à mecanização, e mesmo que a máquina ainda não tenha substituído o homem na área jurídica, parece que é a hora e a vez dos “homens-máquina”!

Não se tratam de ciborgues, isto é, organismos dotados de partes orgânicas e cibernéticas. Pelo menos ainda não!

Os “homens-máquina” são homens como nós, mas que atuam da forma mais mecanizada possível!

Acusações e julgamentos no “piloto automático” se tornaram habituais, não obstante sejam explorados e oferecidos os mais consistentes argumentos através das operações mentais doutrinárias mais magníficas.

As decisões, porém, são assimétricas. Situação bastante incômoda é a torrente de decisões das mais padronizadas como uma lei férrea e inexorável.

O Judiciário, ao contrário do Legislativo, deveria ser casuístico por natureza, pois as decisões judiciais não são impessoais e abstratas por natureza.  Não obstante, o Judiciário mecaniza seus entendimentos, tal como a linha de produção de uma empresa capitalista. Formou-se um hábito de decisões primando mais pelo volume do que pela qualidade do produto acabado.

E tudo isso com um Judiciário extremamente caro!  Os rendimentos dos magistrados são elevadíssimos, consideradas as vantagens eventuais e penduricalhos, consumindo frações do PIB superiores a de vários outros países, inclusive mais desenvolvidos[1].

O mínimo que se espera da atividade judiciária é a qualidade compatível com o elevado preço pago pelos cidadãos.

Estamos diante de uma crise do elemento “doutrina” no Direito.  A rigor, o melhor instrumento de capacitação da classe jurídica, pois nele está à procura pela “razão de ser” de determinados institutos. A tendência atual, talvez sem retorno, é uma viciosa valorização da atividade jurisprudencial.

Numa entrevista concedida no início deste ano, o Desembargador Ricardo Dip, do Tribunal de Justiça do Estado de SP, reconhece esta crise doutrinária e esta mecanização da atividade jurídica ao comparar certos magistrados a “soldadinhos de chumbo”:

No campo do Direito precisamos dar audição ao ensinamento da jurisprudência doutrinária e da pretoriana, mas, como disse muito bem o ministro [aposentado Cesar] Peluso, nosso respeito maior é, ao divergimos dessa jurisprudência, mostrar por que divergimos, e não sempre acatar tudo, como se fôssemos “soldadinhos de chumbo”. Hoje a doutrina perdeu muito espaço factual como fonte do Direito; o costume, nem se diga; só se atende aos julgados de turno.”[2]

Parece que a lei do menor esforço veio pra ficar no Judiciário, e não só na Bahia, mas por todo o país.

Com a crise do elemento “doutrina”, sobrevém um processo de indigência mental e escassez comunicativa.  O “verdadeiro advogado”[3] poderá latir alto, porém, em vão!  Têmis, além de cega, vem se tornando surda!

A clássica atividade jurídica fornecia um mútuo aprendizado aos envolvidos, afinal de contas ninguém sabe tudo. Nem mesmo os “deuses” magistrados. Todos se desenvolviam, cada qual oferecendo seu nível de conhecimento.

Tudo isso hoje encontra-se em declínio e não poucas vezes nos deparamos com decisões baseadas somente em jurisprudência como falazes “argumentos de autoridade”[4]!

O artigo 131 do antigo Código de Processo Civil (1973) estabelecia que “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento”.

Era o Princípio do Livre Convencimento Motivado, que, estranhamente, não foi reproduzido no novo Código de Processo Civil, uma vez não se encontrar um dispositivo de semelhante correspondência ao art. 131 do CPC/1973.

A redação primitiva da Constituição Federal consagrava a independência funcional de cada juiz e magistrado, o que acabou de vez com as Emendas Constitucionais nº 3 e nº 45, que cuidaram de dotar o Supremo Tribunal Federal de “super-poderes”, chegando ao ponto de poder vincular todo o sistema jurídico nacional a suas decisões.

A partir daí, o STF passou a não somente ser um Supremo Tribunal, mas um “super-tribunal”, convertendo em constante o volátil, e vice-versa!

Ao mesmo tempo, sob a mesma alegação de modernização e agilização das decisões, a edição de súmulas vem se proliferando por todos os tribunais. Ora, a súmula em si é sinal de estabilidade e segurança jurídica, mas a proliferação de súmulas é uma nuvem de gafanhotos: sintoma de um Judiciário disfuncional. Mais legislador do que julgador.

Tais movimentos na atividade judiciária são perigosíssimos a todos nós cidadãos que aspiramos por um Judiciário humanizado, ou seja, que aplique a lei com justiça, dando a cada um aquilo que é seu, e não por um Judiciário tão rápido quanto robotizado.

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A pressa, porém, é inimiga da perfeição.  Preferível uma sentença perfeita à rápida.  Se a questão é a economicidade, talvez não seja o melhor argumento.  Os julgamentos sumários se inclinam muito mais ao erro e demandarão muito mais insurgências que consumirão tempo e recursos.

Sob as declaradas bandeiras da celeridade, isonomia e economicidade, as vidas de milhões de pessoas são afetadas por tal tendência de “mecanização” jurisprudencial, fenômeno que viabiliza a concentração do poder (totalitarismo) em detrimento da liberdade.

As causas não residem no processo de informatização, nem na impessoalidade da sociedade industrial capitalista, como aparenta.  Em verdade, estamos poluídos por uma atmosfera de pauperização da liberdade enquanto valor cardeal constitucional.

O declínio da doutrina no Direito é sintoma disso, e cada vez mais esteriliza o próprio Direito, convertendo-o mais em força bruta do que em persuasão racional.

Ora, o Direito não emana da força, sendo a coação elemento acidental. Se, por um lado, a maioria cumpre espontaneamente a lei, por outro, não é a sanção que evita o descumprimento reiterado pela minoria.

O elemento essencial do Direito é o justo{C}[5], e o justo muitas vezes se impõe pela sua essência.  Nada como uma decisão bela e justa, ancorada na doutrina, que prescinde da força dos precedentes jurisprudenciais, que o degradam em mero elemento policial e estimulam a concentração de poder!


[1]       “O Poder Judiciário custa 1,3% do PIB, enquanto que Chile e Colômbia gastam pouco mais que 0,2% do PIB; Venezuela, 0,34% e Argentina, 0,13%. Já o sistema de justiça brasileiro, que inclui Ministério Público, Defensorias Públicas e Advocacia Pública, custa 1,8% do PIB, contra 0,37% em Portugal.” Disponível em <http://economia.estadao.com.br/blogs/zeina-latif/o-duplo-custo-do-judiciario/> Acesso em 10/01/2017

[2]       Disponível em <http://www.conjur.com.br/2017-jan-08/entrevista-ricardo-dip-presidente-direito-publico-tj-sp> Acesso em 10/01/2017

[3]       “O verdadeiro advogado é aquele que, convencido do valor jurídico de uma tese, leva-a a debate perante o pretório e a sustenta contra a torrente das sentenças e dos acórdãos, procurando fazer prevalecer o seu ponto de vista, pela clareza do raciocínio e a dedicação à causa que aceitou.  É nesse momento que se revela advogado por excelência, que se transforma em jurisconsulto.” (REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 174)

[4]       ”O argumentum ad verecundiam ou argumentum magister dixit é uma expressão em latim que significa apelo à autoridade ou argumento de autoridade, é uma falácia lógica que apela para a palavra de alguma autoridade a fim de validar o argumento. Este raciocínio é absurdo quando a conclusão se baseia exclusivamente na credibilidade do autor da proposição e não nas razões que ele apresentou para sustentá-la.” Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Argumentum_ad_verecundiam> Acesso em 11/01/2017

[5]       “A palavra ‘direito’ formou-se desta junção latina: dis (muito, intenso) mais rectum (reto, justo); donde, disrectum e, a seguir, directum, que significa, pois, ‘muito reto’, ‘muito justo’.  E por extensão, ‘o que é reto’, ‘o que é justo’, aqui, segundo verbete de De Plácido e Silva, ‘entendendo-se tudo aquilo que é conforme à razão, à justiça e à eqüidade.” (NASCIMENTO, Walter Vieira do, História do Direito, 11ª Ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1999, p. 07)

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Sobre o autor
ROBERTO FLAVIO CAVALCANTI

Advogado (UFRJ-2008), Contador (UERJ-2011). Graduado também em Administração de Empresas (UFRJ-1996).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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