RESUMO
Este estudo aborda fatores relacionados à usucapião, efetuando comparação entre as disposições legais sobre instituto nos sistemas jurídicos brasileiro e argentino, destacando a usucapião como forma de aquisição da propriedade, tendo em conta que todo bem, móvel ou imóvel, deve possuir uma utilidade social, sendo o seu proprietário o beneficiário de sua utilização, direta ou indiretamente, de maneira a produzir utilidades não apenas para si, mas também, para a sociedade. Em caso em que esse bem não é utilizado adequadamente pelo dono, que se mostra negligente quanto à sua utilização, não lhe atribuindo uma destinação útil, e se comportando desinteressadamente como se não fosse o proprietário, pode, com tal procedimento, proporcionar a outrem a oportunidade de se apossar da aludida coisa, circunstância em que devem ser observados os dispositivos legais integrantes do sistema jurídico nacional de cada país.
Palavras-chaves: Usucapião. Direitos Reais. Brasil. Argentina.
ABSTRACT
This study addresses factors related to adverse possession, making comparison between the legal provisions on the Brazilian and Argentine institute legal systems, highlighting the adverse possession as a means of acquiring the property, taking into account that all property, movable or immovable, must possess a social usefulness, being the owner the beneficiary of their use, directly or indirectly, so as to produce utilities not only for themselves but also for society. In the event that this right is not properly used by the owner, it shows negligent in its use, not giving you a helpful disposition, and behaving selflessly as if not the owner you can, with this procedure, to provide to others the opportunity to get hold of the thing alluded to, circumstances in which legal provisions members of the national legal system of each country must be observed.
Keywords: Adverse Possession. Real Rights. Brazil. Argentina.
1. INTRODUÇÃO
A lei prevê que, constatada a posse, de forma mansa e pacífica, em período de tempo determinado, essa circunstância pode acarretar que a propriedade passe ao domínio de quem, de fato, detém o exercício de alguns dos poderes inerentes à propriedade, em razão de que, a coletividade tem interesse em que a situação aqui veiculada se transforme e se consolide, passando de situação de direito a situação de fato, configurando, dessa forma, a figura da usucapião.
Esse instituto jurídico é definido por Ferreira (2010, s/p) como sendo o “modo de adquirir propriedade móvel ou imóvel pela posse pacífica e ininterrupta da coisa durante certo tempo”, caracterizando o que em termos jurídicos se configura na prescrição aquisitiva.
Assim, é do interesse da usucapião, cujo fundamento está na manutenção da paz social com a sedimentação da situação de fato na pessoa do possuidor, transformando-a em situação de direito, forma pela qual busca evitar que a inconstância do possuidor se eternize, concorrendo para a instalação de desentendimentos e conflitos com desfecho afetando, perigosamente, a harmonia da sociedade.
Dessa forma, entende-se que o proprietário negligente, que não se preocupa em cuidar da sua propriedade, deixando-a em estado de abandono, mesmo sem manifestar a intenção de deixa-lo de lado, termina por perder esse bem, para aquele que, tendo se apossado da coisa, mansa e pacificamente, durante o tempo previsto em lei, dela cuidou e lhe deu destinação útil, utilizando-a como se fosse sua.
Nesse sentido, o trabalho de pesquisa dedica-se a estudar, com mais vagar, os elementos e o objeto da usucapião, abordando sua origem e as circunstâncias em que ela ocorre, com base nos dispositivos constantes a esse respeito nos sistemas jurídicos brasileiro e argentino.
2 USUCAPIÃO E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS
2.1 ETIMOLOGIA E CONCEITO
Etimologicamente, a usucapião deriva da junção dos termos latinos usu (com significado uso) e capio ou capionis (significando tomada, ocupação, aquisição), representando, portanto, aquisição pelo uso, forma pela qual foi difundida, sendo incorporada aos sistemas legais dos países, como herança do direito romano (ANGHER, 2008).
O instituto, em termos linguísticos, é referido no gênero feminino, em todas as línguas em que é referido, o que se dá em respeito à sua origem romana, haja vista que, no Corpus Iuris Civilis, seu registro constava dessa forma (SCHAFER, 2014).
De acordo com Gonçalves (2012, p. 256), a usucapião se configura na aquisição do domínio da propriedade pelo sua utilização prolongada e ininterrupta, desde que seja constatada a continuidade dessa utilização e a tranquilidade na posse. O instituto, também, denominado de prescrição aquisitiva, é considerado como modo originário de aquisição de propriedade e outros direitos reais (GONÇALVES, 2012, p. 256).
Aparentemente, pode parecer que o instituto contraria o direito de propriedade, possibilitando ao possuidor adonar-se de propriedade que não lhe pertence por direito, ao que Gonçalves (2012, p. 257) orienta referindo que a má fé não pode ser utilizada para conceder propriedade a ninguém, alertando, entretanto, para a necessidade de que a usucapião seja analisada sob a ótica da utilidade social, e, nesse caso, o proprietário só deve ter mantido sob seu dominus, o que ele manifesta interesse em deter a posse, forma pela qual é possível ser concedida a indivíduo a propriedade de coisa que o verdadeiro dono não manifesta interesse em continuar a possuir.
2.2 ELEMENTOS E OBJETO
Tendo por base as noções conceituais referidas anteriormente, entende-se que, a aquisição por usucapião requer a existência de dois elementos básicos: a posse e o tempo. Entretanto, devem ser observados outros requisitos, que acrescidos a esses dois, consolidam mais e melhor decisão de conceder a posse por usucapião os ocupante da propriedade, entre os quais se referem o animus domini e capacidade para usucapir o bem, ressaltando-se que, no caso de usucapião ordinário, deverão ser acrescidos os requisitos do “justo título” e da “boa-fé”.
Conforme a concepção de Lisboa (2009, p. 123), a usucapião possui como elementos subjetivos, a capacidade para adquirir o domínio e o animus domini. Os elementos objetivos são: a posse e o decurso do tempo. Ainda segundo Lisboa (2009, p.125), o objeto deve ser hábil, o que pode ser melhor entendido pela manifestação abaixo:
Tanto os bens móveis como imóveis podem ser objeto de usucapião.
Em princípio, qualquer coisa corpórea pode ser objeto de usucapião.
[...]
Não podem, por outro lado, ser objeto de usucapião: o bem público, inclusive o dominical; o bem fora do comércio e o bem comum em estado de indivisão.
Nesse sentido, de acordo com Diniz (2007, vol. 4, p. 159), tem-se a doutrina e a jurisprudência brasileira consideram ser impossível a aquisição por usucapião contra os outros condôminos, tendo em conta não poder haver usucapião de área incerta enquanto subsistir o estado de indivisão (RJTJSP 52:187, 45:184; JTJ 152:209: RT 495:213, 547:84, 530:179). Assim, para que seja constatada a possibilidade de um condômino usucapir contra os demais, há a necessidade, de sua parte, a adoção de um comportamento de proprietário exclusivo (RT 427:82), ou a inversão de sua posse, abrangendo o todo e não apenas uma parte (RT 576:113; RJTJESP 62:197), isto é, para pretender a usucapião, deverá ter posse exclusiva sobre o todo, cessando o estado de comunhão.
No que diz respeito à usucapião em favor de um herdeiro contra outro herdeiro, deve ser adotado mesmo raciocínio, tendo em conta que, antes da partilha, a herança é um bem imóvel e indivisível, o que decorre do princípio saisine, havendo um condomínio entre os herdeiros até o momento da divisão.
Nesse sentido, refere-se que o Código Civil Argentino, no artigo 3952, observa a mesma linha doutrinária ao mencionar que “Pueden prescribirse todas las cosas cuyo dominio o posesión puede ser objeto de una adquisición.”. Em nota ao citado artigo, o doutrinador Velez Sarsfield assim se manifesta:
3952. Cód. de Áustria, art. 1455. El Cód. francês, art, 2226, declara que no puede prescribirse el dominio de Ias cosas que no están en el comercio. TROPLONG, en el comentário de dicho artículo, dice: "Hay cosas que son imprescriptibles por si misrnas, otras que i son sino por razón de su destino, y otras por razón de Ias personas que ias poseen. La; cosas imprescriptibles por si mismas, son aquellas que por destino natural pertenecen a todo el mundo, y no son susceptibies de apropiacion privada, como Ia mar, la libertad del hombre, etc. Lãs cosas imprescriptibles por razón de su destino, son aquellas que por si mismas admiten Ia propiedad privada; pêro que un destino accidental están retiradas del comercio y afectas al uso público, como los caminos, las calles, etc. Mientras estas i conservan afectas al servido público, permanecen imprescriptibles; mas como su destino e; por el hecho del hombre que lo ha r puede tambien el hombre destruirlo. Lãs cosas que no son prescriptibles por razón de Ias personas que Ias poseen, son Ias que pertenecen a personas privilegiadas, contra Ias cuales no corre Ia prescripción. En tal caso, solo hay una suspensión temporal de Ia prescríp Guando el privilegio Cess y ia persona entra en el derechn común, Ia prescripción sigue su curso y continua su acción". Véase VAZE Prescripción, núms. 97 y 102.
Relacionado à questão objeto hábil, constata-se a existência de uma diferença marcante entre o Direito Brasileiro e o Argentino. Enquanto no Brasil não se admite usucapir o patrimônio privado do Estado, na Argentina isso é permitido, conforme atenta Borda (1992, p.311-312):
Em cuanto a los bienes del domínio privado del Estado, ellos son susceptibles de usucapión como cualquier otro bien particular (art. 3951); sin embargo, hay que hacer la salvedad de los bienes urbanos o rurales Del Estado nacional, provincial o municipal situados dentro de los limites de zonas de seguridad. Los cuales no pueden adquirerse por usucapión, conforme con lo dispuesto por la ley 22.153...
Ressalta-se, também, a diferença para o elemento subjetivo que é “a capacidade para adquirir a propriedade através de usucapião”.
Neste contexto, Lisboa (2009, p.123) afirma que não podem adquirir a propriedade pela usucapião: o cônjuge, de bem comum do casal, enquanto durar a sociedade conjugal; o ascendente, de bem pertencente ao descendente, e vice-versa, durante o exercício do poder familiar; o tutor ou curador de seu respectivo pupilo, e vice-versa, durante a administração dos bens; o credor pignoratício, o mandatário e as pessoas a ele equiparadas, do bem pertencente ao depositante, ao devedor, ao mandante e as pessoas a ele equiparadas; qualquer pessoa, do bem pertencente ao absolutamente incapaz; àquele que está prestando serviço público fora do país ou àquele que se encontra servindo as Forças Armadas, durante o tempo de guerra.
Esse entendimento tem por base o disposto no artigo 1.244 combinado com os artigos 197 e 198, do Código Civil brasileiro. Contudo, refere-se a exceção contida no art. 1240-A do Código Civil que permite a usucapião entre cônjuges nos seguintes termos:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Acrescentado pela Lei 12.424/2011)
No sistema ordenamento argentino, Arean (1999, p. 302), diz que: “Los sujetos de Ia usucapión son dos: el que adquiere el derecho, llamado prescribiente o usucapiente; y el que lo pierde, que no es otro que el propietario de Ia cosa prescripta”. A autora informa que a regra está dada pelo artigo 3.950 do Código Civil argentino, que dispõe: “Todos los que pueden adquirir pueden prescribir”.
Arean (1999) afirma que, em princípio, toda pessoa física ou jurídica pode ser sujeito ativo da usucapião sempre que tenha capacidade para adquirir. Esta capacidade a que se refere o artigo é a capacidade de direito. Pode ser promovida pelo possuidor e seus sucessores universais, os cessionários de direitos possessórios, o Estado nacional ou provincial, a Igreja, conforme art. 33 do Código Civil Argentino.
Quanto aos sujeitos passivos, Arean (1999, p. 303), refere que, no direito argentino: “La regia es análoga a Ia sentada anteriormente, ya que puede afirmarse que, en princípio, todas Ias personas físicas y jurídicas pueden ser sujeto pasivo de Ia usucapión, inclusive, el Estado como persona de derecho privado”.
Na usucapião, deve estar presente o elemento subjetivo animus domini, que é a intenção psíquica do usucapiente de se transformar em dono da coisa. Essa intenção de dono não está presente em casos de vigência de contratos, tais como ocorre na locação, depósito, comodato. Assim, compreende-se que o animus domini é o fato de alguém se manter na posse em nome próprio, sem reconhecer o domínio de outrem sobre o bem, agindo como se fosse proprietário, por longo período de tempo.
Manifestando-se a esse respeito, Tartuce e Simão (2010, p.175) lecionam:
Entra em cena o conceito de posse de SAVIGNY, que tem como conteúdo o corpus (domínio fático) e o animus domini (intenção de dono). Essa intenção de dono não está presente, pelo menos em regra, em casos envolvendo vigência de contratos, como nas hipóteses de locação, comodato e depósito.
Nessa linha de raciocínio, a doutrina e a jurisprudência brasileiras vêm assentando que “atos de mera permissão ou tolerância não induzem posse ad usucapionem”, na medida em que carece o detentor do bem de animus domini.
Borda (1992, p. 313) leciona que, na Argentina, atos de simples tolerância também não dão ensejo à usucapião, afirmando que:
Se llaman, actos de simple tolerância aquellos que permite el dueño a sus vecinos sin que importe reconocerles ningún derecho de posesión o tenencia sobre Ia cosa; como ocurre con frecuencia en los campos abiertos, cuándo los propietarios vecinos permiten que los animales de ambos crucen los limites dei campo y pasten a determinadas horas en el dei vecino. Ni el propietario de los animales tiene Ia menor pretensión de domínio o posesión sobre el campo vecíno, ni el propietario de este reconoce ningún derecho al dueno de los animales. El problema de saber cuándo se trata de un acto de simple tolerância y cuándo de un acto posesono propiamente dicho, dependerá de Ias costumbres dei lugar y de Ias circunstancias dei caso y será matéria que el Juez deberá decidir conforme a su prudente arbítrio.
A posse é elemento objetivo da usucapião, ao lado do decurso de tempo. Contudo, nem toda posse preenche os requisitos da usucapião. A posse ad usucapionem deve ser: pública, mansa, pacífica, contínua e justa.
Os elementos da usucapião no Direito Argentino são os mesmos como se vê das lições de Kiper e Malizia (2005, p. 80): “Los requisitos necessarios para El andamiento de la usucapión son: veinte años de possesión continua, ininterrumpida, pública, pacífica y con ánimo de tener la cosa para sí”.
A posse é a detenção física da coisa e, por isso, só pode ser exercida em relação a coisas corpóreas ou direitos reais ligados a coisas corpóreas, conforme alude LISBOA (2009, p. 123).
Comentando a publicidade da posse ad usucapionem, Nery Jr. e Nery (2011, p. 988) asseveram: “Para gerar usucapião, a posse precisa ser pública e ostensivamente exercida com intenção de dono, para que o silêncio de outrem envolva o reconhecimento do direito do possuidor (RT 291/679)”.
A justiça da posse não passou despercebida de Lisboa (2009, p. 124) quando afirma que: “Posse justa é aquela que decorre de atos legítimos, sem que se apresente qualquer vício de violência, clandestinidade ou precariedade”.
Aqueles que têm posse violenta, clandestina ou precária, na verdade são meros detentores ou fâmulos da posse, ou, ainda, servos da posse.
O requisito da justiça da posse se encontra no Código Civil argentino no art. 3959 que prescreve: “La prescripción de cosas poseídas por fuerza, o por violencia, no comienza sino desde el día en que se hubiere purgado el vicio de la posesión”.
A posse usucapível deve se apresentar sem os vícios objetivos, ou seja, sem a violência, a clandestinidade ou a precariedade. Se a situação fática for adquirida por meio de atos violentos ou clandestinos, não induzirá posse, enquanto não cessar a violência ou a clandestinidade, é o que dispõe o art. 1.208. 2ª parte, do Código Civil brasileiro. Tartuce e Simão (2010, p.175) são claros: “Se for adquirida a título precário a posse injusta jamais se convalescerá, segundo o entendimento majoritário já exposto”.
A posse mansa e pacífica é aquela incontestada. No escólio de Gomes (2001, p.166) é a posse “exercida sem oposição”. Significa que o proprietário do bem não tomou nenhuma medida judicial visando quebrar a continuidade da posse. As Medidas extrajudiciais do proprietário não tiram esse elemento. A defesa da posse contra terceiros não retiram essa característica, mas reforçam o animus domini. Sucintamente comentando os delineamentos da posse “mansa e pacífica” Gonçalves (2008, p. 129-130) pontua:
O segundo requisito da posse ad usucapionem é que seja mansa e pacífica, isto é, exercida sem oposição. Se o possuidor não é molestado, durante todo o tempo estabelecido na lei, por quem tenha legítimo interesse, ou seja, pelo proprietário, diz-se que a sua posse é mansa e pacífica. Todavia, se este tomou alguma providência na área judicial, visando a quebrar a continuidade da posse, descaracterizada fica a ad usucapionem. Providências extrajudiciais não significam, verdadeiramente, oposição. Se o possuidor defendeu a sua posse em juízo contra investivas de terceiros e evidenciou o seu ânimo de dono, não se pode falar em oposição capaz de retirar da posse a sua característica de mansa e pacífica.
Sobre a continuidade da posse e seus desdobramentos, Gonçalves (2008, p. 130) ainda comenta:
Como terceiro requisito, deve a posse ser contínua, isto é, sem interrupção. O possuidor não pode possuir a coisa a intervalos. É necessário que a tenha conservado durante todo o tempo e até o ajuizamento da ação de usucapião. O fato de mudar-se para outro local não significa, necessariamente, abandono da posse, se continuou comportando-se como dono em relação à coisa. Para evitar a interrupção da posse, em caso de esbulho, deve o usucapiente procurar recuperá-la imediatamente pela força, se ainda for possível (CC, art. 1.210, § lº), ou ingressar em juízo com a ação de reintegração de posse. O Código Civil brasileiro não prevê prazo para que a posse seja interrompida pelo esbulho praticado por terceiro, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu que, se "o esbulhado interpõe, dentro de ano e dia, interdito possessório, e vence, conta-se em seu favor o tempo em que esteve privado da posse" (RF, 723:469). Se o interdito for julgado em favor da outra parte, reconhecendo-se-lhe melhor posse, a do usucapiente será considerada descontínua.
Embora exija a continuidade da posse, o Código Civil brasileiro, no art. 1.243, permite que o possuidor some à sua posse a dos seus antecessores, para o fim de contar o tempo exigido para a usucapião (accessio possessionis), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.
A duração da posse por determinado lapso de tempo é o espaço de tempo que varia conforme a espécie de usucapião. Estende-se ao prazo prescricional as causas que obstam, suspendam e interrompem a prescrição. Pode ocorrer também o implemento do prazo no curso da ação, devendo o juiz atuar da forma preconizada.
Na concepção de Nery Júnior e Nery (2011, p. 993), citando Lysippo Garcia, justo título “é tida como a causa própria, em tese, para transferir o domínio, mas que, em consequência de obstáculo ocorrente na hipótese, pode deixar de produzir esse efeito”.
No contexto da legislação argentina, Borda (1999, p. 312-314) cita caracteres que devem ser preenchidos para que seja possível usucapir:
a) Ante todo, debe poseerse Ia cosa a título de dueño. Esto significa que si se detenta Ia cosa a simple título de tenedor, reconociendo en otro el derecho de dominio, Ia posesión no es hábil para usucapir.
b) En segundo lugar, Ia posesión debe ser continua, no interrumpida (arts. 3999, 4015 y 4016). Por posesión continua debe entenderse aquella que importa el ejercicio normal de los derechos deI propietario, lo que, claro está, no significa Ia necesidad de ejercer ininterrumpidamente actos de posesión. De lo que se trata, repetimos, es de comportarse respecto de Ia cosa como lo hace normalmente el propietario.
c) Por último, según Ia opinión dominante, Ia posesión debe ser pública y pacífica. Digamos desde ya que ningún texto, ninguna ley exige estas condiciones de Ia posesión para Ia usucapión. Sin embargo, es necesario reconocer que eI requisito de que Ia posesión sea pública es plenamente lógico, porque lo que verdaderamente caracteriza eI ejercicio deI derecho de propiedad es su ejercicio público erga omnes. Apenas se puede concebir una posesión no ejercida públicamente, sobre todo en materia de inmuebles. Por lo demás, el poseedor que oculta Ia posesión hace imposible que tos interesados conozcan ta pretensión que tiene sobre el bien y, por lo tanto, están excusados de no haberse opuesto.
Frise-se que os elementos intitulados “justo título” e “boa-fé” serão explicados por ocasião do estudo da usucapião ordinária em que eles são exigidos para sua consumação.
Os elementos e o objeto da usucapião, ora estudados, servem para todas as espécies de usucapião, razão pela qual foram apresentados em caráter de generalidade.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Usucapião se constitui em uma forma de aquisição de propriedade imóvel e mobiliária. Assim, trata-se de um dos efeitos mais importantes no que diz respeito à posse, em razão de ser a via por intermédio da qual a situação fática do possuidor será convertida em direito de propriedade e em outro direito real, como por exemplo, usufruto, servidão.
No que diz respeito à posse, importante distinguir duas espécies: a posse ad usucapionem e a posse ad interdictae. Não há condição de uma se confundir com a outra, em razão de que, no caso da segunda, é que se faculta o exercício dos interditos possessórios. Enquanto a posse ad interdictae se conforma à teoria de Ihering, sendo bastante o exercício do poder de fato sobre a coisa para que alguém possa manejar uma ação possessória, a posse ad usucapionem traduz a noção da posse acrescida ao animus dominis da teoria subjetiva de Savigny.
É importante se destacar que, qualquer posse, faculta ao seu titular o ajuizamento das ações possessórias. A posse ad interdictae pode ser até mesmo uma posse injusta ou de má-fé, visto que os vícios objetivos são relativos e os vícios subjetivos não impedem a proteção possessória. Porém, somente a posse qualificada pela intenção de dono e pela ausência de precariedade, violência ou clandestinidade enseja a aquisição da propriedade pela usucapião.
Os requisitos gerais da usucapião englobam o aspecto pessoal, real e formal. Os requisitos pessoais são aqueles referentes ao possuidor que pretende adquirir o bem e ao proprietário que irá sofrer desfalque em seu patrimônio. Há necessidade de averiguar a capacidade e a qualidade do adquirente. No entanto, são consideradas capazes as pessoas jurídicas de direito público interno e as pessoas de direito privado. Os requisitos reais são aqueles referentes aos bens e direitos suscetíveis de serem usucapidos, uma vez que nem todos os direitos e todas as coisas são passíveis de usucapião.
O bem passível de ser adquirido por usucapião deve estar no comércio (res in commercio) e ser hábil (res habilis). Como também, só podem ser adquiridos por intermédio da usucapião os direitos reais que recaem sobre coisas prescritíveis (propriedade, enfiteuse, usufruto, servidão, entre outros).
De modo geral, os requisitos formais são aqueles que compreendem os elementos necessários e comuns do instituto. Entretanto, classificam-se como pressupostos comuns: a posse revestida de “animus domini” (intenção de dono); a posse prolongada (lapso temporal que está exercendo a posse); a posse contínua (posse sem intervalo que deve ser exercida pelo possuidor), e a posse justa. Já como pressupostos especiais, têm o justo título e a boa-fé.
Portanto, a usucapião é modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais, sendo assim considerado não pelo fato da titularidade surgir pela primeira vez com o proprietário, mas porque se funda na existência, ou não, de relação contratual entre o adquirente e o antigo dono da coisa. Assim sendo, na aquisição originária, o novo proprietário não mantém qualquer relação de direito real ou obrigacional com o seu antecessor, pois não obtém o bem do antigo proprietário, mas contra ele.
Os fundamentos, elementos, objeto e natureza jurídica da usucapião no Direito Brasileiro e no Direito Argentino são muito similares, divergindo basicamente quanto à nomenclatura, prazos e possibilidade de adquirir bens estatais.
Outro ponto de divergência importante é que no Brasil não se admite usucapião de bens estatais, mas na Argentina é admitido usucapião de bens do patrimônio privado do Estado.
O fundamento da usucapião é a consolidação da propriedade. O proprietário desidioso, que não cuida de seu patrimônio, deve ser privado da coisa em favor daquele que, unindo posse e tempo, deseja consolidar e pacificar a sua situação perante o bem e a sociedade, cumprindo a função social da propriedade consagrada nos dois países cuja legislação se analisou.
REFERÊNCIAS
AREAN, Beatriz. Curso de Derechos Reales - Privilegios y Derecho de Retencion. 4ª ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1999.
ANGHER, Anne Joyce (org.). Vade mecum acadêmico de direito. 6 ed. São Paulo: Rideel, 2008.
BORDA, A. Guillermo. Tratado de Derecho Civil. Derechos Reales. Tomo I. 4ª ed. Buenos Aires: Editorial Perrot, 1992.
Código Civil da República Argentina. 7ª ed. Buenos Aires: Errepar, 2011.
Código Civil de 2002 da República Federativa do Brasil. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 4. 25 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. Versão digital. Curitiba: Editora Positivo, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das coisas. São Paulo: Saraiva, 2012.
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 18ª ed. Atualização e notas de Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
KIPER, Claudio Marcelo; MALIZIA, Roberto. Derechos reales. Buenos Aires: Editorial Astrea, 2005.
LISBOA, Roberto Senise. Direitos reais e direitos intelectuais. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
NERY, Nelson Junior; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
SCHAEFER, João José Ramos. Usucapião: Conceito, Requisitos e Espécies. Disponível em: http://tjsc25.tjsc.jus.br/academia/arquivos/usucapiao_joao_jose_schaefer.pdf. Acesso em: julho 2014.
TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Direito das Coisas. Vol. 4. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2010.