RESUMO: O desenvolvimento do tema proposto reside na compreensão do sistema de direitos e garantias instituído pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, com vistas à ressocialização do menor em conflito com a lei em virtude da prática de ato infracional.
Palavras chave: Constituição Federal; ECA; tutela; menor infrator.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal (CF) de 1988, inspirada no paradigma democrático enunciado pelas normas internacionais, consagrou a doutrina da proteção integral, atribuindo à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar a plena realização dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), por sua vez, filiou-se ao sistema político-jurídico manifestamente tutelar consagrado pelo legislador constituinte de 1988, delineando os instrumentos essenciais para conferir efeito prático à garantia de prioridade formalizada pela Constituição.
Dentre outros aspectos, destaca-se, em âmbito constitucional e infraconstitucional, a tutela específica dispensada ao menor autor de ato infracional, porquanto o processo de formação da criança e do adolescente não deve ser cometido à pena criminal, mas às medidas de cunho assistencial e recuperativo, cuja finalidade precípua seja a reintegração sócio-familiar do menor.
O presente artigo propõe a compreensão do sistema de direitos e garantias instituído pelo ECA, com vistas à ressocialização do menor em conflito com a lei em virtude da prática de condutas antissociais, lesivas aos bens jurídicos fundamentais tutelados pelo ordenamento jurídico.
Para tanto, inicialmente será abordada a tutela constitucional do menor, delineada em atenção aos direitos fundamentais e à consagração do princípio da proteção integral, determinantes da filosofia protetiva e humanizadora consignada pelo legislador constituinte.
Na sequência, será analisada a disciplina estatutária infraconstitucional, esposada nas questões relativas à conceituação de ato infracional, inimputabilidade, com destaque para o marco inicial da imputabilidade penal, tendo em vista a cultura jurídica e social de diversos países.
Por fim, serão relacionadas as garantias individuais e processuais conferidas ao menor infrator, inclusive a remissão como forma de exclusão, suspensão ou extinção do procedimento judicial.
1 A proteção constitucional do menor
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227, fixou a filosofia protetiva e humanizadora que deve servir de parâmetro à legislação menorista infraconstitucional.
Pela primeira vez na legislação brasileira, a Lei Maior consagrou a doutrina da proteção integral, abordando a questão da criança e do adolescente com prioridade absoluta, consignando à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar-lhes a plena realização de seus direitos fundamentais, reafirmados especificamente pelo legislador constituinte, bem como salvaguardá-los de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
À família, enquanto “base da sociedade” (CF,art. 226, caput), compete conhecer e suprir as necessidades da criança, incentivar o desenvolvimento de suas potencialidades e incutir-lhe os valores determinantes na formação de seu caráter, afim de prepará-la para a convivência comunitária.
A sociedade, por sua vez, pautada pela solidariedade e interessada na manutenção da ordem social, tem o dever moral de assumir a responsabilidade ora delegada, vez que a falta de assistência, não raras vezes, enseja desajustes psicológicos que culminam na prática de atos antissociais.
Ao Estado, como forma de garantir o acesso aos direitos proclamados constitucionalmente e, em atenção aos preceitos constantes do parágrafo 1º do art. 227, incumbe promover programas de prevenção, assistência e atendimento especializado à criança e ao adolescente, sobretudo, conduzindo a prestação de seus serviços com destreza e seriedade.
Com acerto Dalmo de Abreu Dallari (2006, p. 37):
são igualmente responsáveis pela criança a família, a sociedade, e o Estado, não cabendo a qualquer dessas entidades assumir com exclusividade as tarefas, nem ficando alguma delas isenta de responsabilidade (cf. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, 6ª ed., São Paulo, Malheiros Editores Ltda., p. 37).
Assim sendo, no cumprimento das respectivas obrigações constitucionais, todas as entidades devem conjugar esforços no sentido único da materialização da proteção especial a que faz jus a criança e o adolescente.
2 A proteção do menor no Estatuto da Criança e do Adolescente
O Código de Menores (Lei 6.697/79) correspondia a um sistema legal pautado pela estigmatização dos menores em “situação irregular”, considerados responsáveis pela própria marginalidade, ante um sistema social que, ideologicamente, conferia a todos iguais oportunidades de ascensão. Essa interpretação equivocada acerca da estrutura social imperante no país, conduzia a um sistema estatal fortemente interventivo assentado na institucionalização repressiva.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), contudo, filiou-se ao sistema político-jurídico manifestamente tutelar consagrado pelo legislador constituinte de 1988. Além de reproduzir os direitos fundamentais consignados constitucionalmente à criança e ao adolescente e adotar a proteção integral como princípio norteador de suas disposições, o Estatuto legislou sobre os instrumentos necessários para o alcance desses direitos, assegurando-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades para seu desenvolvimento completo como pessoa humana (físico, mental, moral, espiritual e social), bem como enumerando alguns procedimentos indispensáveis para conferir efeito prático à garantia de prioridade formalizada pela Constituição.
Ao lado das disposições constitucionais, a lógica protetiva do Estatuto integrou o disposto nas normas internacionais das Nações Unidas, sobretudo as Regras de Beijing, promulgadas em 1985, e a Convenção dos Direitos da Criança, datada de 1989. As primeiras enunciam princípios básicos de observância recomendada quando do atendimento de jovens infratores em qualquer lugar do mundo. A segunda, por sua vez, ultrapassa os limites da delinquência juvenil com recomendações no sentido da proteção de toda criança vítima de injustiça, seja de ordem social, econômica ou jurídica.
2.1 Da prática de ato infracional
O Título III do Estatuto da Criança e do Adolescente – “Da prática do ato infracional” – compreende, no que diz respeito à temática proposta no presente trabalho, disposições referentes à conceituação de ato infracional, inimputabilidade, garantias individuais e processuais e remissão como forma de exclusão, suspensão ou extinção do procedimento judicial.
2.1.1 Conceito de ato infracional
A definição legal de ato infracional é apresentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu art. 103, in verbis:
“Art.103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”.
A infração penal, para efeito de aplicação das respectivas sanções, só pode ser imputada aos maiores de 18 anos. Logo, ante a inimputabilidade salvaguardada pelo legislador constituinte (CF, art. 228) e reproduzida pela legislação penal (CP, art. 27) e estatutária (ECA, art. 104), a conduta enquadrável como crime ou contravenção praticada por criança ou adolescente configura, na acepção técnico-jurídica, ato infracional. Assim, o cotejo entre o fato atribuído ao menor e aquele previsto in abstracto como espécie de infração penal, atua somente como critério identificador de relevância jurídica da conduta.
A denominação diferenciada justifica-se pelo tratamento específico dispensado aos seus agentes, dentro da sistemática protetiva da legislação menorista. Ao crime e à contravenção comina-se pena, ao passo que a prática de um ato infracional enseja a aplicação de medidas de cunho educativo e ressocializador, sem traços rígidos de repressão.
Wilson Donizeti Liberatti (2001, p.90) conceituando ato infracional sob a ótica do Estatuto o definiu como: “ a prática de crime e contravenção penal por criança ou adolescente” (cf. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, 7ª ed., São Paulo, Malheiros Editores Ltda., p. 90).
Assim, entendemos que ato infracional consiste na ação ou omissão lesiva de bens juridicamente tutelados, atribuível, entretanto, à criança ou ao adolescente.
2.1.2 Inimputabilidade
2.1.2.1 Direito Comparado
A maioridade penal é fixada em atenção à cultura jurídica e social de cada país, revelando o resultado de diferentes visões de mundo, concepções e teorias jurídicas entre as nações.
A Resolução nº 40/33 das Nações Unidas, promulgada em 29 de novembro de 1985, que estabeleceu as “Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil”, - “Regras de Beijing”, recomenda que a responsabilidade criminal seja baseada na maturidade emocional, mental e intelectual do jovem, fixada em patamar etário razoável, conforme a interpretação de cada nação.
Dentre 57 legislações estrangeiras analisadas, apenas 17% adotam idade inferior a 18 anos como marco inicial da imputabilidade penal, entre as quais, destacam-se: África do Sul, Argentina, China, Estados Unidos, França, Haiti, Índia, Inglaterra, Itália, Irã, Marrocos, México, Nicarágua, Rússia e Turquia.
Enquanto nas nações desenvolvidas, a exemplo de Estados Unidos e Inglaterra, a população infanto-juvenil tem materialmente asseguradas condições mínimas de subsistência, os demais são considerados pela ONU como países de médio ou baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), incapazes de satisfazer as exigências materiais e morais basilares ao pleno desenvolvimento humano.
Em alguns países, a legislação penal possui dispositivos diferenciados aplicáveis aos infratores compreendidos na faixa etária acima da maioridade penal, até determinada idade. Em Portugal, por exemplo, a idade de 16 anos é adotada como critério definidor da responsabilidade criminal. Contudo, os jovens entre 16 e 21 anos estão sujeitos a um Regime Penal Especial, conforme previsto no artigo 9º do Código Penal Português. A mesma orientação é adotada por países como Alemanha e França, esta instituindo tribunais criminais especiais para julgamento de menores entre 13 e 18 anos, compostos por magistrados profissionais e jurados leigos, selecionados através de sorteio.
Em outros países, a legislação estabelece um sistema único de procedimentos e penalidades ministráveis às crianças e adolescentes em conflito com a lei, sem distinção quanto à idade. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos e da Inglaterra.
Conclui-se, portanto, que a imputabilidade penal é matéria de política criminal, variável conforme a concepção jurídica e social de cada país, em atenção à realidade subjacente.
2.1.2.2 A maioridade penal na legislação brasileira
O art.104 do Estatuto da Criança e do Adolescente complementou o preceito maior contido no art.228 da Constituição Federal, ao dispor:
“Art.104. São penalmente inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, sujeitos às medidas previstas nesta Lei.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, deve ser considerada a idade do adolescente à data do fato”.
Razões de política criminal levaram o legislador brasileiro a optar pela presunção absoluta de inimputabilidade com base em um critério puramente biológico, ignorando o desenvolvimento mental do menor de 18 anos, e considerando-o inimputável independentemente de possuir plena capacidade de compreender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com tal entendimento.
Assim, o processo de formação da criança e do adolescente não deve ser cometido à pena criminal, mas às medidas de cunho assistencial e recuperativo, cuja finalidade precípua seja a reintegração sócio-familiar do menor.
Acerca do marco inicial da inimputabilidade, a doutrina e a jurisprudência revelam-se divididas, existindo três correntes, a saber: a primeira considera o agente imputável a partir do primeiro momento do dia em que comemora seu 18º aniversário; a segunda reputa que a imputabilidade só pode ser atribuída ao autor do fato a partir da exata hora de seu nascimento; e a terceira orienta-se no sentido do reconhecimento da maioridade penal somente após o décimo oitavo ano.
Em nosso entendimento, o primeiro posicionamento revela-se mais acertado. Civilmente, a idade é atingida no preciso dia do nascimento, ao primeiro instante. Logo, é incabível interpretação diversa no âmbito da legislação penal, sendo ilógico sustentar que alguém tenha 18 anos pela lei civil e não os tenha perante os demais diplomas legais. Ademais, a despeito da exigência legal constante do art.54, parágrafo 1º, inciso I da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), a hora declarada no assento de nascimento, ante a possível inexatidão da informação prestada pelo declarante, nem sempre constitui dado concludente revestido de certeza jurídica.
A comprovação da idade faz-se por meio de certidão extraída do assento de nascimento que, embora não seja o único meio de demonstração, constitui prova convincente das declarações nela consubstanciadas, militando em seu favor presunção juris tantum de veracidade.
Consoante o disposto no supracitado parágrafo único do art.104 do ECA, na aplicação das medidas socioeducativas, considera-se a idade do menor ao tempo da prática do fato. Assim, a aquisição posterior da maioridade não é causa de extinção do procedimento judicial instaurado para a apuração do ato infracional, nem tampouco legitima a aplicação de sanção penal no seu mais puro significado, sob pena de ofensa frontal ao princípio constitucional do devido processo legal. O iter procedimental a ser observado é especial e está disposto no Capítulo III, Seção V, arts. 171 a 190 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
2.2 Dos direitos individuais
Na diferenciação de direitos e garantias constitucionais, o constitucionalista Alexandre de Moraes, vinculado aos ensinamentos de Rui Barbosa, estabeleceu a nítida separação entre:
as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se na mesma disposição constitucional, a fixação da garantia com a declaração do direito. (cf. Direito Constitucional, 20ª ed., São Paulo, Atlas, p. 28).
Essa distinção ajusta-se aos direitos de caráter instrumental reproduzidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, enunciativos de regras garantidoras de segurança em matéria penal, tendo em vista a tutela da liberdade individual.
A primeira garantia-direito prevista no caput do art.106 da legislação menorista reproduz o princípio do juiz natural resguardado pelo art.5º, LXI da Constituição Federal.
“Art.106. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente”.
A teor do disposto no art.146 do Estatuto, a autoridade judiciária competente, in casu, é o juiz da infância e da juventude ou o magistrado que exerça essa função nos termos da lei de organização judiciária local.
Acentue-se, que o texto legal, no que concerne ao agente competente para emitir o mandado de apreensão, refere-se exclusivamente à autoridade judiciária, excluindo, portanto, todas as demais. Disso decorre a ilegalidade de prisões para averiguações, assim entendidas aquelas que impõem a custódia do indivíduo na fase inquisitorial, até que as autoridades policiais encerrem um entendimento acerca das suspeitas.
Com efeito, ante a ausência de expressa disposição legal permissiva, razão assiste à Cury, Garrido e Marçura (2002, p. 203) ao asseverarem que: “a apreensão de adolescente somente poderá ocorrer em razão da flagrante ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (ECA, art.106), sendo ilegal, portanto, a apreensão para averiguação, ou por motivo de preambulação”.
Ademais, o responsável pela execução de medida privativa de liberdade sem observância estrita às formalidades legais, incorre no delito capitulado no art. 230 do Estatuto, apenado com detenção de dois meses a dois anos.
Na tentativa de coibir eventual abuso de poder, responsabilizando pessoal e diretamente aqueles que diligenciam apreensões abusivas, o parágrafo único do art.106, outrossim, salvaguarda a liberdade individual do menor com a previsão de outras garantias criminais preventivas.
“Parágrafo único. O adolescente tem direito à identificação dos responsáveis pela sua apreensão, devendo ser informado acerca de seus direitos”.
A primeira parte do dispositivo em apreço corresponde à garantia constitucional expressa no art. 5º, LXIV da Lei Maior, e a parte final foi encartada à legislação menorista em consonância com o inciso LXIII do mesmo artigo. Em que pese a omissão estatutária, o direito de permanecer calado, enunciado exemplificativamente pelo legislador constituinte, poderá ser invocado, como é óbvio, em qualquer momento da oitiva do adolescente.
Na sequência, o art. 107 do Estatuto imanta a garantia-direito da comunicabilidade consagrada pela Magna Carta no art. 5º, LXIII, in fine.
“Art. 107. A apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada”.
A comunicação compreende, portanto, a cientificação do próprio ato de apreensão, bem como, o paradeiro do menor apreendido. Seu destinatário imediato é a autoridade judiciária competente para controlar a legalidade do ato, responsabilizar os culpados pela atuação abusiva, e fornecer elementos para o ressarcimento dos danos causados, morais ou materiais. Também a família do apreendido ou pessoa que ele indicar deve ser imediatamente comunicada afim de prestar-lhe assistência de toda ordem (material, moral e psicológica).
O parágrafo único do retrocitado art.107 está escorado no preceito constitucional disposto no art. 5º, LXV.
“Parágrafo único. Examinar-se-á, desde logo e sob pena de responsabilidade, a possibilidade de liberação imediata”.
Trata-se de dever legal imposto, em primeiro lugar, à autoridade policial, quando da apreensão de adolescente em flagrante de ato infracional; em segundo lugar, ao representante do Ministério Público, que inclui entre suas atribuições a faculdade de promover o arquivamento dos autos e conceder remissão como forma de exclusão do procedimento judicial (ECA, arts. 126, 180, I e II, e 201, II); e, por fim, à autoridade judiciária competente, no momento em que é comunicada acerca da apreensão e do local onde o adolescente se encontra recolhido.
A vista do disposto no art. 234 do ECA, tem-se que o descumprimento de dita obrigação impositiva importa em responsabilização criminal da autoridade infratora, cuja pena cominada corresponde à detenção de seis meses a dois anos, sem prejuízo da responsabilidade civil pessoal e estatal.
Complementando o rol de direitos individuais contemplados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o art. 109 do mesmo diploma convalida a garantia assentada no art. 5º, LVIII da Constituição Federal.
“Art.109. O adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada”.
Do enunciado estatutário, denota-se que o legislador excepcionou a regra geral contida no aludido dispositivo constitucional. Ressalte-se, porquanto, que somente a dúvida séria, baseada em evidências ostensivas legitima o ato da autoridade, vez que a identificação compulsória realizada sem amparo legal, implica na configuração do delito tipificado pelo art. 232 do ECA, apenado com detenção de seis meses a dois anos.
A par das garantias individuais reproduzidas pela legislação menorista em atenção às especificidades do tratamento protecionista dispensado à criança e ao adolescente, ressalte-se a possibilidade de invocação de quaisquer outras relacionadas pelo sistema jurídico-positivo no interesse da liberdade pessoal do menor.
2.3 Das garantias processuais
O art.110 do Estatuto da Criança e do Adolescente reproduziu o princípio do devido processo legal salvaguardado pelo art. 5º, LIV da Constituição Federal.
“Art.110. Nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal”.
A expressão devido processo legal compreende inúmeras garantias da liberdade individual frente a ação arbitrária do Estado. Por mais relevantes que sejam as razões de fato, ninguém pode ser afetado em sua esfera jurídica sem a observância de um procedimento igualitário que assegure às partes idênticas possibilidades de alegações e produção de provas.
Válter Kenji Ishida, em citação a Vicente Greco Filho (apud FILHO, GRECO, 1998, p. 167) bem explicitou que:
A garantia do due process of law é dupla. O processo, em primeiro lugar, é indispensável à aplicação de qualquer pena, conforme a regra nulla poena sine judicio, significando o devido processo como o processo necessário. Em segundo lugar o devido processo legal significa o adequado processo que assegure a igualdade das partes, o contraditório e a ampla defesa. (cf. Estatuto da Criança e do Adolescente Doutrina e Jurisprudência, São Paulo, Atlas, 1998, p.167).
Na sequência, o art. 111 do mesmo diploma legal, enumera algumas garantias processuais específicas que constituem projeções do amplo princípio do devido processo legal.
“Art.111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:
I – pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente;
II – igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa;
III – defesa técnica por advogado;
IV – assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei;
V – direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente;
VI – direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento”.
A primeira delas decorre da previsão constitucional constante do art.227, parágrafo 3º, inc. IV da Constituição Federal. A citação, indispensável para materializar a garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, constitui corolário do contraditório e da ampla defesa, elementos determinantes do devido processo legal. O procedimento a ser observado para o cumprimento da diligência citatória está disciplinado nos arts. 351 a 359 do Código de Processo Penal, aplicando-se subsidiariamente o Código de Processo Civil, no que couber.
A segunda, cuja previsão constitucional remonta ao dispositivo supracitado ,decorre, sobretudo, do postulado fundamental encartado no art. 5º, inc. I da Lei Maior. Nesse sentido, Arruda Alvim, com acerto, esclarece que “Este, inegavelmente, implica que, no processo as partes têm que ser tratadas com igualdade. Assim autor e réu não podem ter tratamento desigual. Entenda-se isso no sentido de que todos os autores e réus sejam igualmente tratados (igualdade formal), e não propriamente com o significado necessário de que o autor seja igual ao réu (igualdade substancial). A igualdade, do ponto de vista formal, não elimina, sendo possível que se haja de tratar igualmente, de um ponto de vista substancial, autor e réu, de um mesmo processo, ensejando-se-lhes, real e concretamente, igualdade de oportunidade” (cf. Manual de Direito Processual Civil, I/50, São Paulo, RT, 1990).
A terceira, também imantada pelo art. 227, parágrafo 3º, inc. IV da CF, deve ser interpretada em consonância com o enunciado estatutário do art. 206, afim de favorecer o envolvimento do advogado na tutela dos direitos consignados reiteradamente à criança e ao adolescente. Trata-se da materialização da plenitude de defesa.
A inteligência da quarta garantia processual arrolada no dispositivo em comento, remete-nos aos arts. 141 e 206, parágrafo único do Estatuto. Se, na sistemática do Código de Menores, o amplo direito de defesa reduzia-se a mera faculdade atribuída aos pais ou responsáveis, hoje, constitui elemento inerente ao indispensável processo legal.
Considera-se necessitado, na acepção jurídica, a pessoa natural “com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios” ( art. 98, do CPC). Se por ser pobre, o menor fosse privado de assistência técnica, instaurar-se-ia um desequilíbrio manifesto entre as partes, em ofensa frontal aos princípios constitucionais da isonomia e do devido processo legal.
Na interpretação da quinta garantia relacionada, cabe-nos indagar quem é a autoridade competente para proceder à oitiva do adolescente. A nosso ver, ao lado do juiz da infância e da juventude que o ouvirá quando comparecer em juízo, também pode fazê-lo o representante do Ministério Público no momento em que for a ele apresentado ( ECA, art.179), ou por ocasião de sua internação (ECA, art.124, I), bem como seu defensor público (ECA, arts 124, III e 141).
Por fim, a última das garantia processuais inserta no rol do supracitado art. 111, tem caráter psicológico no sentido de assegurar ao adolescente a assistência material e moral condizente com sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Ao passo que o adolescente deixa de constituir objeto de intervenção do Estado para ser reconhecido como sujeito de direitos merecedor de proteção integral, temos que, tais garantias são meramente exemplificativas, não obstando, portanto, a aplicação de outras consagradas pelo ordenamento jurídico pátrio ou constantes de normas internacionais abrangidas pela Constituição de forma oblíqua.
2.4. Da remissão
Com a introdução do instituto da remissão, o legislador estatutário pretendeu evitar ou minimizar os efeitos negativos e estigmatizantes de um processo prescindível, “quando o interesse de defesa social assume valor inferior àquele representado pelo custo, viabilidade e eficácia do processo (cf. Antônio Chaves, Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, São Paulo, LTr, 1997, p. 558). Reserva-se, assim, às infrações leves, atribuídas a adolescente primário “atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como a personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional” (ECA, art. 126, in fine).
A remissão concedida antes de instaurado o procedimento judicial para apuração do ato infracional, como forma de exclusão do processo, constitui atribuição exclusiva do representante do Ministério Público (ECA, arts. 180, II e 201, I), sujeita, porém, à homologação judicial. A autoridade judiciária, discordando da aplicação do benefício, remeterá os autos ao Procurador-Geral de Justiça, invocando, subsidiariamente, o disposto no art. 28 do Código de Processo Penal.
Entretanto, ofertada a representação e iniciado o procedimento contraditório, compete à autoridade judiciária, ouvido o representante do Ministério Público, conceder a remissão em qualquer fase anterior à sentença, como forma de suspensão ou extinção do processo.
A remissão pode ser concedida como perdão puro e simples, sem aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, ou como uma espécie de transação, se incluir provimento socioeducativo aceito voluntariamente pelo adolescente beneficiado com a exclusão, suspensão ou extinção do processo, “exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação” (ECA, art. 127, in fine). Sendo a remissão um instituto reservado aos atos infracionais de pequena monta, as medidas eventualmente cumuladas revelam-se também menos expressivas.
Como bem observou Júlio Fabrini Mirabete (2007, p.427):
quando a remissão constituir perdão puro e simples ou vier acompanhada de medida que se esgote em si mesma, ocorrerá a exclusão do processo, se concedida pelo representante do Ministério Público, ou a extinção do processo, se concedida pelo juiz. Não ocorrendo uma dessas hipóteses, o processo ficará suspenso até que se cumpra a medida eventualmente aplicada pela remissão. (cf. Estatuto da Criança e do Adolescente: comentários jurídicos e sociais, 6ª ed., São Paulo, Malheiros Editores Ltda., p. 427).
A nosso ver, o Ministério Público, enquanto titular exclusivo da representação para fins de instauração do procedimento judicial destinado à apuração do ato infracional, detém legitimidade para, ao conceder a remissão como forma de exclusão do processo, aplicar qualquer medida socioeducativa cumulada com o benefício. Com efeito, essa atribuição se presume deferida ao MP, ante a ausência de vedação legal expressa.
Qualquer das medidas aplicadas em sede de remissão “poderá ser revista judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente, de seu representante legal, ou do Ministério Público ( ECA, art.128). Na revisão das medidas, segundo Cury, Garrido e Marçura (2002, p. 119):
“faculta à autoridade judiciária: “a) manter a medida aplicada ou substituí-la por outra, com exclusão da semiliberdade e da internação; e b) abreviar ou prorrogar o prazo de seu cumprimento” (cf. Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado, 3ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p.119).
Por fim, o instituto ora em comento, não pode ser eivado de inconstitucionalidade, vez que “não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes” (ECA, art.127). Repise-se que, ainda quando concedido pelo Ministério Público, obstando a instauração do procedimento formal de apuração do ato infracional, está sujeito a controle jurisdicional, ressalvada, ainda, a possibilidade de revisão, a qualquer tempo, da medida aplicada. Improcedem, portanto, entendimentos firmados no sentido da subversão dos princípios constitucionais enunciativos do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição.
CONCLUSÃO
Diante da falibilidade do sistema carcerário brasileiro, considerando as precárias condições de que dispõem os encarcerados para alcançar um resultado satisfatório no que tange à ressocialização, ministrar ao menor infrator o mesmo tratamento dispensado ao delinquente adulto é ignorar por completo que, uma vez recolhido à prisão e exposto à contaminação carcerária, sem ter o necessário desenvolvimento físico e psíquico para tanto, certamente não haverá qualquer chance de recuperação para esse adolescente que, a exemplo do que ocorre com a maioria dos reeducandos adultos, voltará a delinquir.
Por esse motivo, tendo em vista razões de política criminal, o legislador brasileiro optou pela presunção absoluta de inimputabilidade do menor de 18 anos, sujeito a um regime especial de direitos e garantias quando em conflito com a lei, porquanto o processo de formação da criança e do adolescente não deve ser cometido à pena criminal, mas às medidas de cunho assistencial e recuperativo, cuja finalidade precípua seja a reintegração sócio-familiar do menor.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- Estatuto da Criança e do Adolescente Anotado; Cury, Garrido e Marçura; 3ª ed.; São Paulo, RT, 2002.
- Estatuto da Criança e do Adolescente:doutrina e jurisprudência; Valter Kenji Ishida, São Paulo, Atlas, 1998.
- Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente; Wilson Donizeti Liberati; 7ª ed.; São Paulo, Malheiros.
- Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado; Munir Cury; 6ª ed.;São Paulo; Malheiros.
- Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente; Antônio Chaves, 2ª ed.; São Paulo; LTr; 1997.
- O Direito do Menor na nova Constituição Federal; Wilson Barreira e Paulo Roberto Grava Brasil; 2ª ed.; São Paulo, Atlas,1991.