Resumo: O Sistema Penal atua de forma a sustentar a lógica de exploração capitalista. A partir da análise dos dispositivos legais e sua aplicação prática, evidencia-se a atuação jurídica a favor de interesses da classe dominante. A rotulação do criminoso, a função simbólica por trás do real objetivo do Direito Penal, a análise do texto constitucional e das políticas penais são alguns dos exemplos que norteiam a compreensão da atuação jurídica, marcadamente capitalista. Pretende-se expor o real sentido das leis e provar que seu objetivo maior é o de privilegiar a classe burguesa.
Palavras-chave: Capitalismo. Sistema Penal. Justiça.
1 INTRODUÇÃO
O sistema econômico adotado por uma sociedade é, por conseqüência, o sistema jurídico e estrutural do Estado. Reconhecendo a natureza genuinamente opressora sob a qual o Capitalismo se sustenta, torna-se necessário refletir acerca de como o Direito posiciona-se frente aos interesses da classe dominante.
A existência do sistema capitalista, no entanto, só é possível se houver um esforço constante a fim de mascarar a relação desigual entre as classes sociais. O Direito, que possui como finalidade máxima garantir a justiça social sem qualquer distinção, torna-se, contraditoriamente, aliado do Capitalismo, na medida em que prevalece os interesses dos detentores de poder. Essa atuação, no entanto, é disfarçada no próprio bojo das leis.
Ao discutir a problemática, pretende-se instigar a sociedade a desmascarar o tratamento desigual ofertado pelo sistema jurídico, a fim de que se lute pela justiça social em seu real sentido. A balança, símbolo do Direito, representa a igualdade, de modo que é inconcebível que uma classe seja privilegiada em detrimento de outra.
O foco da discussão, no entanto, será voltado às evidências que se tornam observáveis dentro do sistema penal, à medida que se percebe a desproporcionalidade das penas aplicadas. Para melhor compreender a questão, tornou-se necessário recorrer às teorias sociológicas capazes de explicar a rotulação do criminoso, bem como ressaltar o caráter simbólico que, por vezes, o Direito Penal assume. Para tanto, tomou-se como base o livro de Nilo Batista, “Punidos e mal pagos”, no qual se encontra um capítulo destinado a discutir a ligação entre capitalismo e sistema penal. Para auxiliar a compreensão, recorreu- se a autores como Tânia Quintaneiro, Arnaldo Lemos Filho, Claúdio Luiz Frazão Ribeiro, Anthony Giddens e Celso A. de Pinheiro de Castro.
2 ROTULAÇÃO DO CRIMINOSO SOB A ÓTICA CAPITALISTA
A influência do capitalismo sob o Direito começa muito antes da aplicação da pena. A própria determinação dos padrões da sociedade nasce a partir do ponto de vista burguês, que prevalece, por conseqüência, seus interesses. A ideologia dominante numa sociedade, como bem ressalta Karl Marx, nada mais é que o conjunto de ideais que interessam aos poderosos.
Cria-se, portanto, um modo de viver tipicamente burguês, e os indivíduos se encontram diante de uma liberdade limitada, tendo em vista que fugir aos padrões implica em sanções morais e sociais. Anthonny Giddens (2005, p. 172), ao dissertar sobre Crime e Desvio, atesta que “aqueles que se recusam a viver de acordo com as regras seguidas pela maioria” são considerados desviantes.
Nilo Batista (1990, p.44) estabelece uma distinção entre conduta desviante e conduta delituosa. A conduta desviante seria aquela desaprovada socialmente, enquanto a desviante seria penalmente típica, ou seja, implicaria uma pena prevista em lei. As ações ditas desviantes, no entanto, são desaprovadas a partir de uma visão burguesa, que controla a mentalidade da sociedade, ainda que de forma implícita. A tendência, portanto, é acreditar que os indivíduos desviantes possuem maior probabilidade de cometer delitos, rotulando-se o perfil do criminoso.
A criminologia positiva, representada por Lombroso, determinou o tipo antropológico do delinquente, que seria uma espécie a parte do gênero humano, predestinada a cometer crimes. De acordo com Claúdio Luiz Frazão (2006, p. 17):
Lombroso, principal representante da criminologia positiva, sustentava, inicialmente, a tese do criminoso nato, segundo a qual a causa do crime seria localizada no próprio criminoso. Partindo, portanto do determinismo biológico e psíquico do crime.
O criminoso típico, tendo em vista a dinâmica da sociedade atual, possui como característica o sexo masculino, a raça negra e a baixa condição financeira. Pré-determinar essas características, no entanto, é condizer com a ideologia burguesa e, de forma involuntária, encobrir as condutas delituosas praticadas por esta. Os crimes praticados pelos setores mais afluentes da sociedade, conhecidos como “crimes do colarinho branco”, são julgados pelas próprias autoridades a partir de um ângulo bem mais tolerante. A própria sociedade não manifesta o mesmo tipo de reprovação quando condutas delituosas são praticadas por indivíduos bem vistos socialmente.
É claro que crimes como a corrupção, por exemplo, são alvo de repúdio e indignação social. Os praticantes, contudo, dificilmente recebem pena merecedora pelo crime.
Percebe-se, portanto, que as características típicas de um criminoso, determinadas sob um viés burguês, são um dos aspectos que tornam visível a força da ideologia disseminada. Exercendo influência, inclusive, no modo de se julgar os crimes - julgar aqui não no sentido apenas jurídico, mas também social – e de se aplicar sanções.
3 FUNÇÃO SIMBÓLICA DO DIREITO PENAL
O Direito, em sentido amplo, é paradoxal à medida que falta correspondência entre o momento de sua criação e o momento de sua execução. Ao constatar esse fato, Claúdio Luiz Frazão (2006, p.23) exerce a seguinte crítica:
A ineficácia praticada daquilo programado normativamente se deve a uma incapacidade dos órgãos executores de implementar as previsões legais – seja devido à corrupção, à falta de vontade política ou às deficiências estruturais.
A corrupção, a falta de vontade política e as deficiências estruturais refletem, sobretudo, a influência capitalista. A corrupção e a falta de vontade política decorrem da estabilidade que o sistema proporciona ao fazer prevalecer a impunidade. As deficiências estruturais mencionadas refletem as contradições inerentes ao Capitalismo, tendo em vista que as instâncias responsáveis pela criação de leis obedecem, por vezes, a lógica desigual burguesa.
O discurso jurídico é pautado em múltiplas relações de poder que, ao mesmo tempo em que o limitam, revelam sua força e capacidade coercitiva. O que importa ressaltar é que, além da análise da eficácia dos propósitos legais, do fracasso ou sucesso da concretização desses, há uma questão política.
Percebe-se, portanto, que a eficácia dos objetivos do Direito não depende, simplesmente, da simples leitura do texto. Decorrem, sobretudo, das relações de poder sob as quais está imerso o sistema jurídico. As instâncias capazes de nortear o Direito são representadas pelas classes sociais dominantes que, ao terem em suas mãos o controle do discurso jurídico, o fazem da maneira mais conveniente aos seus interesses. A partir daqui é possível perceber como o sistema penal atinge seu caráter simbólico, tendo em vista a desproporcionalidade das penas e a negligência da sua maior função de igualdade e justiça social. Celso A. Pinheiro de Castro (1999, p.332), ao dissertar sobre a questão, atesta que:
Como os chefes ou representar não são abstrações mas entes configurados geotemporalmente e em determinado estrato social (sic), as normas refletirão seu complexo de status, suas condições de classe. Então, os processos de secularização e racionalização refletem apenas mudanças do pólo catalisador, persistindo os ordenamentos e sistemas na dependência da ideologia e interesses do grupo dominante.
Para compreender o simbolismo que atinge o Direito Penal, pode-se analisar, por exemplo, o tratamento que se dá frente ao aumento da criminalidade e violência. O que se percebe é que a percepção, por parte da sociedade, tem mais importância para a definição de uma política de segurança, que a ameaça real do problema. As medidas que se adotam não visam à garantia real da segurança, o que se adotam são leis exasperadoras da pena e dos delitos cometidos ou criminalização de outras condutas. A função simbólica caracteriza-se por dar menos valor à proteção do bem jurídico, e mais a disseminar a impressão tranquilizadora de um legislador atento e engajado. O Direito Penal passa, pois, a representar meramente um símbolo do poder do Estado.
É necessário ressaltar que, quando a conduta delituosa é praticada por grupos dominantes, como no caso dos já mencionados crimes do colarinho branco, o sistema penal adota medidas contraditórias à opinião pública. Torna-se claro que a atuação penal varia de acordo com as conveniências do sistema, ressaltando sua função meramente simbólica. Importa ao Direito Penal prevalecer quem possui poder e influência na sociedade. A partir desse aspecto, instala-se uma crise de funcionalidade, que surge a partir da distância entre a reprovação comunitária e os dispositivos da legislação criminal. Segundo Nilo Batista (1990, p.46), é preciso que:
O sistema penal e suas conexões administrativas, em todos os níveis, têm que recondicionar seus sensores para os crimes dos poderosos, que são cometidos à sua frente sem que nada aconteça; e a crise, aqui, não é funcional e sim política e moral.
As normas e sanções penais não são efetivas no combate ao crime, mas precisam apresentar uma mera aparência de eficácia, mesmo que a política criminal esteja desvinculada de programas mais amplos de política social. É necessário disfarçar a crise pela qual passa o sistema penal, fruto do contexto capitalista em que está inserido. É bem sabido que o Capitalismo, para se manter, precisa disseminar uma ideologia de conformidade, sobrevivendo diante de aparências de igualdade. Do mesmo modo, o Direito Penal necessita criar na sociedade a ilusão de segurança e de confiança no ordenamento jurídico e nas instituições.
4 EVIDÊNCIAS DA ATUAÇÃO PENAL A FAVOR DA CLASSE DOMINANTE
A rotulação das características do criminoso, bem como a função simbólica que o sistema penal assume, já são evidências da atuação jurídica a favor da classe dominante. É preciso, no entanto, partir para argumentos práticos, de modo que melhor se visualize o caráter capitalista que embasa o Direito Penal.
Para desmascarar as reais finalidades da lei, é preciso ter em vista que as intenções dos grupos políticos não podem ser confundidas com o que está escrito em seus documentos ou estatutos. Segundo Karl Marx, a lei é uma espécie de documento por meio do qual as classes manifestam o seu pensamento. O sentido do texto legal não é evidente, mas oculto, dotado de objetivos profundos e dissimulados das classes interessadas na criação desse texto. Conforme asseveram José Roberto Cabrera e Luís Fernando Lobão Morais (2004, p. 126), não se pode tentar entender a lei de acordo com sua letra, nem de acordo com o seu “espírito”. Buscar as intenções por trás dos dispositivos legais e observar suas aplicações na prática torna-se, portanto, necessário para que se evidencie a atuação penal a favor de determinados interesses.
Observando a atuação penal no decorrer da história, percebe-se que o capitalismo recorreu a esta para concretizar dois objetivos, o de garantir a mão-de-obra e o de impedir a cessação de trabalho. (BATISTA, 1990, p. 46).
Ao analisar tais interesses burgueses e compará-los com os dispositivos penais, compreende-se que existe conformidade entre ambos. Visando atender a necessidade de mão-de-obra, a lei criminalizou o pobre que não se convertesse em trabalhador. O delito de greve, por sua vez, foi criado a fim de impedir a cessação de trabalho.
Com a Revolução Industrial, triunfo do Capitalismo, criou-se o delito da vadiagem. Desse modo, aqueles que, por qualquer razão, se recusassem a trabalhar ou não conseguissem vender sua força de trabalho, passariam a ser tratados pela justiça como criminosos. Temendo sanção penal, os trabalhadores viam-se obrigados a aceitar quaisquer condições de trabalhos impostas pela burguesia industrial. Os “vadios” eram, portanto, funcionais ao sistema, tendo em vista que formavam o que Marx denomina de “exército de reserva”.
No Brasil, o período da ditadura militar propiciou uma maior visibilidade da relação entre capitalismo e sistema penal, principalmente ao analisar a criminalização da greve. A constituição proibia “greve nos serviços públicos e atividades essenciais, definidas em lei” (art. 162). O Decreto-Lei nº. 510, de 29 de setembro de 1969 (arts. 38, 39, inc. V e 40), diploma legal que marcou os anos de chumbos, atribuiu reclusão de 4 a 10 anos ao grevista, a mesma pena do roubo. A greve, que deveria ser um instrumento pelo qual o trabalhador poderia expor suas insatisfações acerca das condições de trabalho, tornou-se inviável. O proletário, dadas às circunstâncias, resigna-se diante da situação, o que é extremamente conveniente à burguesia.
A Constituição atual ainda não é completamente eficaz em garantir, de fato, o direito de greve. Ao assegurar o direito de forma ampla, ressalva que “os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas de leis”. (art. 9, § 2º). Percebe-se que a ressalva tem puramente o objetivo de limitar expressamente o direito, tendo em vista que todo e qualquer abuso implica em sanções jurídicas.
O artigo 37, inciso VII, assevera que “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites de lei específica”. Tal norma constitucional possui, portanto, eficácia limitada, ou seja, só produz efeito a partir de elaboração de lei futura. O dispositivo está presente na Constituição desde sua elaboração, em 1988, porém, a lei específica nunca foi elaborada. Percebe-se que, embora a greve tenha deixado de ser crime, ainda há negligência do judiciário no que tange a promulgação de seu direito efetivo.
Outra contribuição que se observa, na prática, ao sistema capitalista, é perceptível ao analisar-se o Código de 1980, que colaborou com “a implantação da ordem burguesa e sua articulação com a exploração da mão-de-obra infantil”. (BATISTA, 1990, p. 43). Necessitando de mão-de-obra, a burguesia industrial influencia os dispositivos penais. A lei passou a garantir o trabalho infantil e, de forma mascarada, contribuiu para a violência contra as crianças, tendo em vista que as condições as quais foram submetidas eram marcadas pela exploração.
A própria pena privativa de liberdade, marco fundamental do sistema penal, é condizente com a lógica de acumulação capitalista. O Capitalismo, para se manter, pressupõe uma exclusão dos setores marginalizados da sociedade. Não é por acaso que a classe dominada, normalmente enquadrada no perfil do criminoso típico, é quem sofre sanções penais que retiram sua liberdade.
Os setores desfavorecidos, ao perceberem a situação de desigualdade em que se encontram, tendem a questionar a exploração própria do Capitalismo. Para evitar uma revolução proletária, a classe dominante recorre ao principal instrumento da política penal: o cárcere. A ideia de que o encarceramento propicia a ressocialização do indivíduo é errônea, tendo em vista que o cárcere é um ambiente que causa repúdio e constante desagrado pessoal. O verdadeiro sentido da privação da liberdade é, portanto, “limpar” a sociedade das classes marginalizadas, permitindo que a classe dominante estabeleça livremente o controle social.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao expor certos dispositivos penais e sua aplicação prática, formulam-se argumentos suficientes para que se possa afirmar que o sistema penal obedece a lógica desigual capitalista.
A rotulação do criminoso, o simbolismo por trás do Direito Penal, a criminalização da vadiagem e da greve, bem como a própria prática do encarceramento, são evidências reais da atuação jurídica em conformidade com interesses burgueses. É preciso, pois, expor a situação à sociedade como um todo, na tentativa de ultrapassar os limites impostos pela ideologia dominante.
Tal tarefa, contudo, não é simples. A burguesia, diante de toda sua influência e poder, foi capaz de inebriar grupos sociais a partir de seus próprios ideais. Alterar valores tão enraizados na sociedade e fazê-la compreender os interesses por trás dos mesmos só é possível se houver comprometimento dos próprios profissionais do Direito.
O Direito, representação máxima do que é ser justo, tem como obrigação zelar pelo bem estar de todos os grupos sociais, principalmente daqueles visivelmente desfavorecidos. Ressalta-se a necessidade de se alterar dispositivos penais e torná-los condizentes com uma sociedade que vise à igualdade. As decisões do judiciário precisam pautar-se no contexto concreto do caso, sem levar em consideração condições financeiras dos litigantes. A própria política de encarceramento necessita ser revista, a fim de que o cárcere se torne, efetivamente, um instrumento de ressocialização. É preciso reacender nos juristas o amor à justiça plena, a equidade, livre de distinções de classe e poder.
REFERÊNCIAS
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