Sumário: Introdução. 1. Responsabilidade sob a ótica de Levinas. 1.1. A responsabilidade. 1.1.1. Responsabilidade ética ou justiça que excede a justiça. 1.1.2. Responsabilidade ético-jurídico-política ou justiça como direito. 1.2. Necessidade do Estado – Estado Liberal – Democrático. 2. A responsabilidade vista por Castanheira Neves. 3. Respostas advindas do diálogo. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O homem, enquanto pessoa, enquanto “sujeito ético”1, possui responsabilidade? É responsável? O que significa ser responsável? De que forma deve-se dar esta responsabilidade? O que implica este ser responsável? O caminho para a Justiça não passa necessariamente pela consciência do homem como ser responsável? Ser responsável não implica necessariamente a assunção da minha responsabilidade independentemente da assunção ou não desta pelo outro? O realizador e o aplicador do Direito não devem ser os responsáveis pela prática do direito justo?
A busca das respostas de tais questionamentos é realizada neste ato por meio de uma conversa entre o filósofo Emmanuel Levinas, que, em sua defesa pela Ética da Alteridade, buscou, conjuntamente com outros, em especial Derrida, o reencontro da ética, pela valorização e entendimento das diferenças integradoras da humanidade e do homem, e o jus-filósofo Castanheira Neves, em uma busca de visualizarmos os pontos de aproximação ou mesmo de distanciamento das idéias de ambos, com especial ênfase nesse último na visão jurídica da concepção de responsabilidade.
1. RESPONSABILIDADE SOB A ÓTICA DE LEVINAS
Da responsabilidade ao problema, da justiça à justiça, da responsabilidade ética à responsabilidade ético-jurídico-política. Está é a trajetória que segue Levinas na compreensão da responsabilidade2.
O Rosto, enquanto expressão do Outro, nos traz o confronto com nossa essência, de uma forma que nos confronta, determina, nos ordena para uma responsabilidade anárquica e ilimitada. Isso gera um problema ao nos depararmos com o Terceiro, Terceiro este que surge imediatamente e nos remete à visão da Humanidade, do «nós».
Isso porque o terceiro nos impõe a visão do confronto, qual seja, como resolvermos nossa responsabilidade infinita e anárquica pelo Outro, quando este Outro traz em si, também, a visão do Terceiro, que é indivíduo e objeto. Isto é o que nos arremessa à concepção da Justiça, pois ao nos confrontarmos com o Terceiro, este colocará o limite na relação “eu-tu”, ante o fato de nos fazer pensar na questão de como o Rosto é visto e tido pelo Terceiro, sendo isto o que gera a responsabilidade ético-jurídico-política e por sua vez, a Justiça3.
Essa visão da responsabilidade advém da visão do Homem e do Outro que Levinas possui, na qual, na defesa da Ética da Alteridade4 busca-se o compromisso prático com o princípio da heteronomia, que tem por objeto o reencontro com a Humanitas, ou seja, do real sentido do homem, da dignidade humana5.
Rompe-se com a Totalidade, por meio da Transcendentalidade onde o Eu busca transcender para o Outro, sem com isso implicar na massificação do pensar. Transcendência no sentido de inovar-se para o Outro – ser outro – isto tido como seu conteúdo6.
Essa ruptura com a totalidade se faz possível por meio da manutenção da heterogeneidade radical do Outro – alteridade – o que se dá através da manutenção da essência no ponto de partida, isto é, permanecendo como o Mesmo. Em que pese relacionar-se como o Outro, transcender para o Outro, não pode perder sua essência, seu Mesmo, sua identidade. “Em termo só pode permanecer absolutamente no ponto de partida da relação como Eu7.
O homem, o Eu, por natureza, é egoísta em sua relação com o mundo, sendo que a transcendência para o Outro, nos moldes da metafísica, gerariam a totalidade, razão pela qual entende que essa transcendência deve se dar por meio da Linguagem, pelo Discurso, onde o «eu» sai de si para o outrem numa relação dialógica, sem suplantá-lo ou submetê-lo, mas sim respeitando a sua alteridade. A essa relação de diálogo entre o Eu, o Mesmo, e o Outro é que Levinas chama de Religião, pois isso se dá sem a concepção da totalidade, no respeito à alteridade.
Nessa relação como o Outro, surge a expressão do Rosto. A parte mais expressiva do Outro é o Rosto, pois é neste que o Outro se manifesta como realmente Outro8. O Rosto, pela própria anatomia, é a parte mais visível e exposta do Outro, onde a exposição é óbvia, latente, indisfarçável, inoculta.
O Outro é o próximo, mas este compreendido não como o familiar ou o amigo, qual seja, a pessoa com quem se tem uma relação pessoal. É o próximo no sentido daquele que retrata a proximidade, aquele que primeiro chega, aquele a quem me encontro face-a-face. O próximo que se chega no rosto é o estrangeiro, o estranho, que exige o meu comprometimento com meus deveres para com ele, que me ordena, o que incomoda.
Esse estranho é aquele pobre e nu9, o miserável, o homem necessitado, o irmão da rua, nos moldes da parábola do Bom Samaritano, o que determina em mim a minha obrigação para com ele. Nesse ponto é que se ressalta primordialmente a responsabilidade e em especial o porquê dessa responsabilidade.
Ao nos depararmos com o Outro/Rosto miserável, remetendo-nos a noção de terceiro, que está incondicionalmente associado a visão do Outro, por meio justamente da sua condição de miserabilidade, tendo em vista que a miséria do Outro nos lembra que ele está subjugado pelo Terceiro, que ele serve ao Terceiro, assim como eu sirvo ao Outro, o que me faz igual ao Outro10.
Nesse sentido, o próximo é um homem qualquer, aquele que se encontra e enfrenta face-a-face, mas, estando nu e miserável. Essa condição de miserabilidade também nos remete à noção de alteridade levinasiana, tendo em vista que este Outro é para nos lembrar o pobre, a viúva, o estrangeiro, o desfavorecido, ou seja, os marginalizados da sociedade atual, que na cultura hebraica eram simbolizados pelas categorias acima, ou seja, aqueles sujeitos a pressões sociais, perseguições e violência11.
O Rosto traz em si embutido as características de ser um encontro imediato, face-a-face, pois traz em si a visão de outro rosto, sendo um encontro despido, rosto a rosto. Ademais, apresenta-se sempre nu, no sentido de que perante a sua visão há um prolongamento de sua essência para a visão de outrem, do terceiro, pois no rosto observamos a influência do terceiro neste; por ultimo, verificamos que há nele uma determinação, um imperativo, no sentido de que determina o dever de não matar, em que pese a sua fragilidade e possibilidade para tal.
Assim, traz embutida uma resistência ética, o que se dá pelo fato de que o rosto se apresenta sempre como um desafio ou uma tentação permanente, tendo em vista que o Eu quer sempre destruir o que está além dos seus poderes12. É um convite permanente ao assassínio e nisto se estabelece sua grande resistência e desafio13.
Ressalte-se que esse poder de matar é o que dá a verdadeira dimensão moral do rosto, seu real sentido. Surge do fato de que, ao olharmos a relação com o Outro, podendo compreendê-lo, este ainda não é o Outro, pois só compreendemos aquilo que ainda é um pouco de mim.
Quando permitimos o eclodir de toda a sua alteridade, deixamos de ter o poder de compreendê-lo, surgindo o poder de matá-lo, pois nesse caso escapa totalmente à minha capacidade de neutralização, pondo em risco a minha identidade e integridade ontológica, que pode gerar a vontade de matar, de aniquilar aquele que põe em risco a minha integralidade como ser. Contudo, não o faço, razão pela qual neste momento ao invés de assegurar minha soberania sobre ele, aniquilando-o, admito minha incapacidade de neutralizá-lo, vendo-o como estranho e irredutível14.
Em Autrement qu’être, Levinas entende que a Significação original do Rosto pode ser descrita como um Dizer, uma apresentação de responsabilidade, uma ordem que surge anterior ao ser e mais forte que o próprio. Já o Dito, se correlaciona com os nomes que identificam a identidade.
O dito é a expressão do Dizer, que traz os significados lingüísticos, do qual o Dizer é a linguagem. O Dizer refere-se mais ao Eu, a exposição total ao outro, de passividade, exprime o mais profundo do eu, onde me sinto o guardião do meu irmão, gera a responsabilidade. É isto que gera a concepção da piedade, da compaixão, perdão, proximidade15.
À primeira vista teríamos a simples noção de que a responsabilidade seria pelo Outro, haveria uma simples relação entre o eu e o outro, o que não gera a consciência nem de si e nem dos demais; não gera o problema da responsabilidade/justiça. A proximidade não se ordena ao outro enquanto outro sozinho. Esse problema surge e se coloca quando nos defrontamos com a proximidade, mas, essa é tida também com a entrada do Terceiro16.
O Terceiro surge imediatamente com o Outro, numa relação de proximidade total, onde surge não só como o subjugador do Outro, mas, também, fazendo-me lembrar que “tudo o que se passa aqui entre nós diz respeito a todo mundo, o rosto que me olha coloca-se em pleno dia da ordem pública, mesmo se eu me separo dela para procurar com o interlocutor a cumplicidade de uma relação privada e de uma clandestinidade”, como postula Levinas em Totalidade e Infinito17.
Concebe-se que nunca haverá um momento de real isolamento entre o eu e outro, pois, neste outro, sempre está embutido o próximo, o outrem, o Terceiro, exceto, supostamente, numa relação erótica. Por isso a relação ética, face-a-face, sempre é também uma relação social, onde o terceiro é visto como sinônimo de todos os outros, da humanidade inteira.
Assim, o Terceiro, outro diferente do próximo, é também o meu próximo e o próximo do próximo, cuja presença sentimos sempre que olhamos nos olhos do outro, pois ali também se encontra o Terceiro, a olhar-me nos olhos também. Nesse contexto, quando nos deparamos com o Outro e nos vemos como responsáveis por este, por meio de um acolhimento justo, imediatamente, nos colocamos frente à humanidade toda numa relação de responsabilidade por todos18. Portanto, respondendo ao apelo do outro, onde já está embutido o terceiro, o sujeito para-o-outro está pronto para responder pela pluralidade da humanidade19.
Há que se ressaltar, dentro da filosofia levinasiana, que esta não é, como já vimos no início, uma ideologia que se esquece da realidade social diferenciada, qual seja, não se esquece da alteridade, não subtrai tudo a uma abstração deformante, não esquece o universal e a pluralidade. É uma ideologia que não só não esquece as diferenças existentes dentro da pluralidade, mas, busca repensá-la, inventando-as a partir da singularidade irredutível do único ou do eleito.
A universalidade advém da singularidade, o que gera o fato de que toda a responsabilidade ética tem por precedente a responsabilidade do um para o outro, qual seja, à responsabilidade anterior a qualquer julgamento, onde nada se subtrai ao controle do um para o outro20.
Interessante observar que Levinas em sua obra Autrement qu’être, atribui diferentes papéis a serem interpretados pelo terceiro, o que traz diferentes conseqüências na unidade do pensamento levinasiano. Em um primeiro plano, o Terceiro é visto como um outro diferente do próximo, mas, cuja chegada é imediata, ou seja, juntamente com o Rosto, interrompendo a proximidade ética, apresentando o problema da justiça.
Isto porque, se no mundo existisse apenas o eu e o outro, meu próximo, não haveria lugar para a reciprocidade nem para a igualdade, tendo em vista que o Eu é sempre devedor do Outro, o que não gera a igualdade e sim a submissão. Isto porque, na relação de Eu e o Outro o que se reflete é responsabilidade anárquica e ilimitada pelo Outro, independentemente de qual a posição do outro em relação a mim.
Assim, o terceiro como outro Outro é o limitador dessa responsabilidade ilimitada, pois, numa relação dua, o direito do Outro é primeiro e infinito21, sendo que nessa relação de três ou mais, impõe-se o limite na relação a dois, como adiante se verificará.
Numa segunda atribuição, o Terceiro é um Outro Próximo, ou seja, pode vir a se transformar no próximo em relação ao eu. Isso vem significar que a responsabilidade que se tem pelo outro, prolonga-se até a responsabilidade pelo terceiro, ou seja, dilata-se até compreender a responsabilidade não só pelo outro, como se estende até a responsabilidade por todo e qualquer outro, por tudo e por todos, por todos os outros ou próximos, pois o terceiro aparece imediatamente com ele. A presença imediata do terceiro faz concluir que a proximidade ética “fundamenta” a própria ordem social22.
Por último, existe o Terceiro visto como o próximo do próximo, numa relação da qual o Eu não participa, em que pese não ser indiferente a ela. Não é indiferente, pois, em que pese não responder pela relação entre eles, respondo em parte pelo meu próximo. Nesta relação ética inaugural o outro, meu próximo, pode assumir a posição também de responsável, como eu, mas agora em relação ao seu próximo, terceiro.
Nessa relação, podem surgir situações, onde um é culpado do outro. É nessa situação em que realmente surge o problema, a questão. Quem é o primeiro próximo? O que o Terceiro/próximo do outro é para o outro? Ele está numa relação de inteligência ou de vítima com o outro? Assim, a interrupção da imediatidade ética, traz consigo o nascimento da questão: quem é o meu próximo? Nessa situação nasce a questão da justiça. Fernanda Bernardo, como nas idéias anteriormente expostas, sintetiza com primazia a visão de Levinas nesse sentido:
“É a possível culpabilidade do outro/próximo diante do terceiro (e, reitere-se, não diante do eu), que traça o limite, que modera a desmesura da responsabilidade anárquica do eu pelo-s outro-s, isto é, que torna necessária e possível a justiça, a qual exige a reciprocidade de direitos e deveres, porque, a partir do momento em que o outro pode lesar o terceiro, - lesão a que o eu não pode ser indiferente – é preciso saber medir, pesar, contar, comparar. É preciso julgar! É preciso saber qual deles, se o segundo homem se o terceiro, passa primeiro. A partir do momento em que o outro pode lesar o terceiro é chegada a hora da justiça, no dizer levinasiano, a hora do ocidente, a hora da «sabedoria das nações», porque, advoga, os seres não se comparam enquanto rostos, mas apenas enquanto cidadãos: «se não existisse a ordem da justiça – diz Levinas – não haveria limite para a minha responsabilidade» (...)”23.
Com isso, chegamos à parte do caminho que culminará na responsabilidade, qual seja, chegamos agora na visão de justiça por Levinas, que, como dito no início e exposto acima, é toda uma decorrência das concepções que tem sobre o eu que transcende ao outro em uma relação dialógica, concebendo-se como responsável pelo Outro ilimitadamente, em cuja face também surge imediatamente o Terceiro/próximo, que vem a ser o limitador dessa responsabilidade ilimitada, nos trazendo embutida a visão de comunidade e, via de conseqüência, a necessidade de julgamento, pois, nessa relação verificamos não só a relação do eu com o outro, mas também do outro com o terceiro, e é nessa relação que surge a necessidade se julgar, de se conceber a Justiça.
Levinas apresenta uma visão ambígua da Justiça24. A Justiça vem implicar a responsabilidade que incute a idéia de igualdade. Essa é a premissa inicial que devemos dissecar.
A Justiça refere-se à própria relação ética entendida como a relação de acolhimento, advinda do discurso, do Rosto magistral do Outro, sendo inclusive, em determinado momento equacionado com a Religião, esta compreendida como a revelação do Outro e acolhimento dessa Revelação. Qual seja, ao olharmos para o Outro, e vermos no seu Rosto a expressão da sua nudez e miséria, responsabilizando-a infinitamente por essa miséria, acolhendo integralmente o outro, nos deparamos com a concepção de Justiça Levinasiana, esta como incondicional e advinda pelo discurso, pelo direito à palavra.
É retratada como um mandamento que manda assumir todas as responsabilidades e assim instaurar a igualdade25. Essa igualdade revela-se ou justifica-se pela responsabilidade que pressupõe aceitar o apelo do Outro, isto é, reconhecer o Outro como meu mestre26. Assim, a justiça começa por outrem, pelo acolhimento da magistralidade do outrem, pela caracterização do sujeito obrigado a uma responsabilidade infinita pelo outrem.
Essa concepção de Levinas, retratada na obra Totalidade e Infinito, difere-se um pouco quando da exposição efetuada no Autrement qu’être ou au delà de l’essence. Nessa obra, ocorre uma exposição da visão da Justiça não apenas pelo cotejamento com a responsabilidade infinita e ilimitada, mas agora pela Justiça concebida pelo dever de Julgar. É onde surgem as concepções da Justiça como Ética27 e como Direito.
A Justiça advém do confronto do Terceiro com a relação «eu-tu». A transcendentalidade do Mesmo consiste em chegar ao Outro, por meio do discurso, e colocar-se em uma situação de total submissão e responsabilidade pelo outro, sendo essa responsabilidade também sinônimo de Justiça.
Além disso, vimos que o Terceiro chega perante o «eu» imediatamente ao momento em que vemos o Outro, pois é por meio deste que vemos àquele. Ante essas noções, concebendo que a Justiça surge no momento que há o confronto com o Terceiro, como explicar a responsabilidade ilimitada e incondicional pelo Outro antes do confronto com o Terceiro, se este confronto é imediato?
É nesse questionamento que se encontra a ambigüidade da concepção de Justiça proveniente de Levinas. Por um lado, concebe como a relação com o Terceiro, o que põe em cena a responsabilidade ético-jurídico-política, ou, via de conseqüência, a igualdade entre cidadãos.
Por outro lado, a Justiça é concebida como o acolhimento anárquico e hiperbolicamente responsável do outro como outro, é a significação do Dizer, ou seja, a inevitável obrigação e desigualdade do eu diante do outro, que detém a primazia. Assim, há duas concepções da Justiça, uma da hiper responsabilidade do Eu pelo Outro – Justiça que transcende a Justiça – Justiça Ética – e, outra do Dever de Julgar – Justiça como Direito28.
Há que se observar que ambas as justiças confundem-se na sua significação com as concepções de responsabilidade ética e de responsabilidade ética-jurídica-política.
1.1. A Responsabilidade
Os conceitos de Justiça Ética ou de Direito, em muito se confundem com os conceitos de responsabilidade ética e de responsabilidade ético-jurídico-política, respectivamente, mais precisamente, a responsabilidade implica na justiça, uma não é possível sem a outra. Por essa razão, agora trataremos dessas concepções pormenorizadamente.
1.1.1. Responsabilidade ética ou Justiça que excede a Justiça
Esta é a responsabilidade primeira, que advém da relação do Eu com o Outro, refere-se a relação de acolhimento da magistralidade do Outro, que por ser meu irmão, tem em si a característica de ser minha responsabilidade, responsabilidade que implica o meu transcender para ele, sem subjugá-lo, respeitando sua alteridade, e abrindo a minha essência egoísta para uma relação de doação e total submissão ao outro.
Essa concepção decorre do fato de que, para Levinas, a liberdade total do indivíduo leva-o a uma relação de egoísmo, de injustiça, razão pela qual se faz necessário o acolhimento incondicional e total do outro29. Levinas chama de Justiça esse acolhimento de face, advindo do discurso, onde o discurso, o desejo de exterioridade, a bondade, a responsabilidade anárquica e ilimitada são apresentadas como Justiça, conforme se verifica na sua obra Totalidade e Infinito.
Há, inclusive, a comparabilidade de Justiça com Religião, esta entendida como o acolhimento ético ou hiper-responsável do outro. Todavia, nesta obra, ainda não há o entendimento da igualdade, tendo em vista que ao estarmos vinculados ao outro em uma relação de total submissão, considerando o mesmo como nosso mestre, não podemos falar em igualdade do Eu para com o Outro.
Depreende-se que esta justiça é incondicionada, ou seja, não depende de qualquer retribuição alheia. Sou responsável pelo Outro, independentemente do fato do Outro ser ou não responsável por mim. É esta a base do pensamento ético de Levinas, por sermos filhos do mesmo pai, somos todos irmãos e, sendo eu um ser livre e egoísta, devo transcender ao meu irmão, respeitando-o e submetendo a ele, numa relação de subjugação, que garantirá a justiça e a paz na relação existente.
Os sentimentos motivadores de tal responsabilidade, de tal justiça, é a bondade, a caridade ou misericórdia, sendo original do ser humano, incondicional e infinita. Por essa razão, essa justiça é anterior e irredutível ao direito, isto é, a justiça como ética excede a justiça como direito.30 Esta é a Justiça Perfeita, pois estamos sempre buscando o respeito, o amor, a caridade, a bondade para o Outro, o que sempre ocasionará a paz e a Justiça.
Portanto, está é a Justiça Ética, ou seja, a justiça da responsabilidade ética incondicional e ilimitada para o Outro. Nesta Justiça temos apenas a relação dupla, do Eu para o Outro, do Eu responsável pelo Outro ilimitadamente.
1.1.2. Responsabilidade Ético-jurídico-política ou Justiça como Direito
Contudo, no momento da chegada do Terceiro, esse como Outro, Outro meu próximo e, em especial, como próximo do próximo, essa relação de responsabilidade ilimitada é colocada em risco, surge o limitador, aquele que colocará limite na relação eu-tu e cria a relação social, comunidade, nós.
É a relação social que faz surgir a necessidade dessa Justiça como Direito, pois, em uma ilha deserta, onde só houvesse o eu e o outro, o sujeito hiper-responsável ficaria infinitamente obrigado à caridade, a justiça ética. Contudo, por existir o terceiro, a humanidade inteira, essa justiça é interrompida, fazendo-se necessário o surgimento imediato da justiça-direito31.
Trata-se da justiça que deve traduzir concretamente a Justiça que excede a Justiça, mas, ao mesmo tempo é uma traição a esta, pois nunca é tão boa quanto a justiça que a fundamenta32. Mas esta é a realidade prática que a fundamenta, o quotidiano da Justiça como Direito, um rosto que se manifesta como responsabilidade ético-jurídico-política ou justa cidadania, sendo o seu fundamento e base a busca pela perfeição, qual seja, o desejo de ser tão boa quanto à justiça que a fundamenta33.
A Justiça como Direito se faz necessária quando nos conscientizamos da presença imediata do Terceiro na relação eu-tu. Neste momento, nos conscientizamos que há a necessidade da Justiça para Julgar, pois, analisando o Outro e o Terceiro, como partes distantes de mim, não tenho certeza de qual papel um representa para o outro, qual seja, de vítima e agonizador, ou apenas de um diálogo respeitador de ambos. Para isso surge a justiça como direito, para organizar, regulamentar essa relação, procurando retratar a justiça ética na justiça de direito.
Nesse contexto, podemos retratar a Justiça nos moldes daquela estabelecida pela Ética a Nicómaco, de Aristóteles, ou seja, uma espécie de proporção, onde se busca a sincronização, comparação e tematização, proporcionalidade, reciprocidade. Sincronização é entendida como o ato de consciência onde todos, por meio da representação ou do Dito, instituem o lugar original da justiça, como terreno comum a mim e aos outros, onde o eu faz parte do nós, isto é, onde sou cidadão com todos os deveres e direitos medidos e medíveis.
A comparação se dá perante os incomparáveis, ou seja, respeitando-se as singularidades, comparando-as, o que tem o seu traço diferenciador com a Ética Aristotélica. Trata-se da comparação dos cidadãos, indivíduos éticos, e não dos rostos em si, sem, contudo, esquecer e de dar especial enfoque para as individualidades próprias, que formam o gênero (cidadãos)34. Dessa comparação advém a proporcionalidade e, em especial, a reciprocidade dos direitos e deveres. A cidadania pressupõe anarquicamente a individualidade ética. A justiça levinasiana parte da singularidade para a comunidade ou universalidade35.
A principal lição advinda dessa responsabilidade ético-político-jurídica advém do fato de que esta não pode preceder a responsabilidade ética, propriamente dita, sob pena de perder sua função, deixar de ser justiça. A responsabilidade ético-jurídico-política, não é apenas uma legalidade humana, que rege as massas e extrai uma técnica de equilíbrio social, pois assim seria apenas uma justiça do Estado, retratando apenas as necessidades deste.
Uma verdadeira Justiça como Direito, Justiça Social, tem sua origem e fundamentação na responsabilidade ética, esta não só fundamentadora de quem institui a norma como também deve ser a base do pensar do aplicador do direito, qual seja, o Juiz e também ao corpo normativo. Segundo Levinas em Autrement qu’être, o Juiz não é exterior ao conflito, pois não se limita apenas a julgar, ele também está vinculado à proximidade ética da relação, ou seja, também tem a responsabilidade para buscar a justiça que excede a justiça. Isso reforça a idéia de que tudo, inclusive a própria justiça como direito é infinito desejo de justiça, em nome da bondade original do homem para com o seu outro. Justiça sempre a aperfeiçoar com os seus próprios rigores36.
Ressalte-se que a responsabilidade jurídico-política somente não será considerada como não degeneração da responsabilidade ética, quando tem embutido em si o desejo de perfectibilidade, tem a justiça ética como gênese inspiradora37. A Justiça como Direito deve ser tal que controle os egoísmos próprios do ser e motivador das guerras.
Concluímos, portanto, que, para Levinas, a Justiça Ética é tida também como responsabilidade ética, tendo em vista que ambas significam que o ser humano deve esquecer-se de si, numa total subjugação ao outro, com o intuito de trazer a real justiça, responsabilizando-se ilimitadamente pelo outro. Contudo, por vivermos em uma sociedade, temos a presença do terceiro, qual seja, o próximo do outro, a comunidade, a humanidade, visto conjuntamente ao olharmos para o Rosto/Outro.
Ante essa presença a mais, surge a necessidade da Responsabilidade Jurídico-política, ou, Justiça como Direito. Esta traz em si a função de julgar, ou seja, tem por intuito, estabelecer as regras necessárias para determinar a convivência social, mas, deve ter sempre por base a Justiça que excede a Justiça, sob pena de deixar de ser Justiça, sendo, contudo, também necessária para a justiça que excede a justiça, sendo que ambas devem ter em si embutidas a principal característica que é a caridade.
Feita a trajetória, se torna premente a necessidade de estabelecer de que forma Levinas concebe a concretização desta responsabilidade jurídico-política.
1.2. Necessidade do Estado – Estado Liberal - Democrático
Para se estabelecer a Justiça como direito, faz-se necessário a institucionalização, o que se consolida por meio da autoridade política do Estado. Nos termos de Levinas: “a santidade do humano (...) anuncia-se na misericórdia e na caridade respondendo ao rosto de outrem; mas faz também apelo à Razão e às leis. Mas já a justiça exige um Estado, instituições e um rigor e uma autoridade informada e imparcial.”38
O direito do indivíduo na proximidade e na unicidade do outro conduz ao Estado, Estado este Liberal ou democrático, segundo Levinas. Para este, a responsabilidade ética é não só o fundamento do direito, como também da estrutura política da sociedade sujeita a Leis. Nisso depreende-se que na obra levinasiana a questão do político não é menos necessária do que a questão da ética e a questão da justiça, pois, todas interligadas. O Estado também tem seu fundamento na extravagante generosidade do para-o-outro, derivando do direito infinito para o outro39.
O Estado tem por objetivo a garantia dos direitos e deveres de cada um dentro das condições mínimas da sociabilidade, por meio da estrutura política, que assegura a justiça social. Assim, há uma crítica ao Estado na filosofia levinasiana, mas, não sobre a ótica das reclamações egoístas do eu, ou seja, não é pelo fato de que a universalidade das leis se impõe contra o eu, mas, sim, por esse Estado em muitas ocasiões transgredir suas funções e fundamentos.
É defensor do Estado que venha defender a República, que socorram aos injustiçados, vítimas de violências como racismo, imperialismo, exploração, etc. É por isso que o Estado deve existir, para que as vítimas tenham para onde voltar seus olhos, se socorrerem, algo que faltou quando da existência de Estados Totalizadores, como no caso das Guerras Mundiais, onde houve o mais absoluto silêncio de todos, em especial ante o Holocausto.
É por isso que Levinas insiste na idéia de que as instituições devem ter a verdadeira vida interior, que é a obrigação de albergar toda a humanidade na sua consciência, ser absolutamente responsável pelo outro, cujo direito é infinito. Nisso se consubstancia a Ultrapassagem do Estado, ou seja, antes do Estado existe o individuo, e é para este que aquele existe40.
Ao contrário dos Contratualistas, Levinas entende que o Estado tem sua origem na relação do homem para o homem, ou seja, da relação do homem, indivíduo ético, à santidade do outro homem. Trata-se do princípio humano, contrapondo-se ao princípio animal.
Assim, o Estado no qual a relação inter-pessoal é impossível é um Estado Totalitário, sendo este o limite do Estado, qual seja, a não observação da Responsabilidade Ética, o esquecimento do indivíduo ético, da caridade. Isso é o que difere fundamentalmente o Estado proveniente da limitação da Violência (contratualistas) do Estado proveniente da limitação da caridade – como limitador da responsabilidade ética (Levinas). Por essa razão, natural se torna a concepção da necessidade do Estado ser Liberal ou Democrático, um Estado ditado e permanentemente inquietado pela justiça, que vela pela boa ou justa execução da responsabilidade ética, da procura e da defesa dos direitos do homem41.
Portanto, para que se assegure a Justiça, deve-se ter a Responsabilidade ético-jurídico-política advinda do Estado Democrático instituído, sendo que ambas as instituições, Direito e Estado, somente serão justas e legítimas, quando tem por fundamento e por horizonte a responsabilidade ética, entendida como a relação do homem voltado para a santidade do outro. Santo é o outro, e nisto percebe-se a visão de religiosidade de Levinas.