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Homem sujeito responsável – diálogo com Levinas e Castanheira Neves

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30/01/2017 às 12:00
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A Responsabilidade

Os conceitos de Justiça Ética ou de Direito, em muito se confundem com os conceitos de responsabilidade ética e de responsabilidade ético-jurídico-política, respectivamente, mais precisamente, a responsabilidade implica na justiça, uma não é possível sem a outra. Por essa razão, agora trataremos dessas concepções pormenorizadamente.

Responsabilidade ética ou Justiça que excede a Justiça

Esta é a responsabilidade primeira, que advém da relação do Eu com o Outro, refere-se a relação de acolhimento da magistralidade do Outro, que por ser meu irmão, tem em si a característica de ser minha responsabilidade, responsabilidade que implica o meu transcender para ele, sem subjugá-lo, respeitando sua alteridade, e abrindo a minha essência egoísta para uma relação de doação e total submissão ao outro.

Essa concepção decorre do fato de que, para Levinas, a liberdade total do indivíduo leva-o a uma relação de egoísmo, de injustiça, razão pela qual se faz necessário o acolhimento incondicional e total do outro[29]. Levinas chama de Justiça esse acolhimento de face, advindo do discurso, onde o discurso, o desejo de exterioridade, a bondade, a responsabilidade anárquica e ilimitada são apresentadas como Justiça, conforme se verifica na sua obra Totalidade e Infinito.

Há, inclusive, a comparabilidade de Justiça com Religião, esta entendida como o acolhimento ético ou hiper-responsável do outro. Todavia, nesta obra, ainda não há o entendimento da igualdade, tendo em vista que ao estarmos vinculados ao outro em uma relação de total submissão, considerando o mesmo como nosso mestre, não podemos falar em igualdade do Eu para com o Outro.

Depreende-se que esta justiça é incondicionada, ou seja, não depende de qualquer retribuição alheia. Sou responsável pelo Outro, independentemente do fato do Outro ser ou não responsável por mim. É esta a base do pensamento ético de Levinas, por sermos filhos do mesmo pai, somos todos irmãos e, sendo eu um ser livre e egoísta, devo transcender ao meu irmão, respeitando-o e submetendo a ele, numa relação de subjugação, que garantirá a justiça e a paz na relação existente.

Os sentimentos motivadores de tal responsabilidade, de tal justiça, é a bondade, a caridade ou misericórdia, sendo original do ser humano, incondicional e infinita. Por essa razão, essa justiça é anterior e irredutível ao direito, isto é, a justiça como ética excede a justiça como direito.[30] Esta é a Justiça Perfeita, pois estamos sempre buscando o respeito, o amor, a caridade, a bondade para o Outro, o que sempre ocasionará a paz e a Justiça.

Portanto, está é a Justiça Ética, ou seja, a justiça da responsabilidade ética incondicional e ilimitada para o Outro. Nesta Justiça temos apenas a relação dupla, do Eu para o Outro, do Eu responsável pelo Outro ilimitadamente.

Responsabilidade Ético-jurídico-política ou Justiça como Direito

Contudo, no momento da chegada do Terceiro, esse como Outro, Outro meu próximo e, em especial, como próximo do próximo, essa relação de responsabilidade ilimitada é colocada em risco, surge o limitador, aquele que colocará limite na relação eu-tu e cria a relação social, comunidade, nós.

É a relação social que faz surgir a necessidade dessa Justiça como Direito, pois, em uma ilha deserta, onde só houvesse o eu e o outro, o sujeito hiper-responsável ficaria infinitamente obrigado à caridade, a justiça ética. Contudo, por existir o terceiro, a humanidade inteira, essa justiça é interrompida, fazendo-se necessário o surgimento imediato da justiça-direito[31].

Trata-se da justiça que deve traduzir concretamente a Justiça que excede a Justiça, mas, ao mesmo tempo é uma traição a esta, pois nunca é tão boa quanto a justiça que a fundamenta[32]. Mas esta é a realidade prática que a fundamenta, o quotidiano da Justiça como Direito, um rosto que se manifesta como responsabilidade ético-jurídico-política ou justa cidadania, sendo o seu fundamento e base a busca pela perfeição, qual seja, o desejo de ser tão boa quanto à justiça que a fundamenta[33].

A Justiça como Direito se faz necessária quando nos conscientizamos da presença imediata do Terceiro na relação eu-tu. Neste momento, nos conscientizamos que há a necessidade da Justiça para Julgar, pois, analisando o Outro e o Terceiro, como partes distantes de mim, não tenho certeza de qual papel um representa para o outro, qual seja, de vítima e agonizador, ou apenas de um diálogo respeitador de ambos. Para isso surge a justiça como direito, para organizar, regulamentar essa relação, procurando retratar a justiça ética na justiça de direito.

Nesse contexto, podemos retratar a Justiça nos moldes daquela estabelecida pela Ética a Nicómaco, de Aristóteles, ou seja, uma espécie de proporção, onde se busca a sincronização, comparação e tematização, proporcionalidade, reciprocidade. Sincronização é entendida como o ato de consciência onde todos, por meio da representação ou do Dito, instituem o lugar original da justiça, como terreno comum a mim e aos outros, onde o eu faz parte do nós, isto é, onde sou cidadão com todos os deveres e direitos medidos e medíveis.

A comparação se dá perante os incomparáveis, ou seja, respeitando-se as singularidades, comparando-as, o que tem o seu traço diferenciador com a Ética Aristotélica. Trata-se da comparação dos cidadãos, indivíduos éticos, e não dos rostos em si, sem, contudo, esquecer e de dar especial enfoque para as individualidades próprias, que formam o gênero (cidadãos)[34]. Dessa comparação advém a proporcionalidade e, em especial, a reciprocidade dos direitos e deveres. A cidadania pressupõe anarquicamente a individualidade ética. A justiça levinasiana parte da singularidade para a comunidade ou universalidade[35].

A principal lição advinda dessa responsabilidade ético-político-jurídica advém do fato de que esta não pode preceder a responsabilidade ética, propriamente dita, sob pena de perder sua função, deixar de ser justiça. A responsabilidade ético-jurídico-política, não é apenas uma legalidade humana, que rege as massas e extrai uma técnica de equilíbrio social, pois assim seria apenas uma justiça do Estado, retratando apenas as necessidades deste.

Uma verdadeira Justiça como Direito, Justiça Social, tem sua origem e fundamentação na responsabilidade ética, esta não só fundamentadora de quem institui a norma como também deve ser a base do pensar do aplicador do direito, qual seja, o Juiz e também ao corpo normativo. Segundo Levinas em Autrement qu’être, o Juiz não é exterior ao conflito, pois não se limita apenas a julgar, ele também está vinculado à proximidade ética da relação, ou seja, também tem a responsabilidade para buscar a justiça que excede a justiça. Isso reforça a idéia de que tudo, inclusive a própria justiça como direito é infinito desejo de justiça, em nome da bondade original do homem para com o seu outro. Justiça sempre a aperfeiçoar com os seus próprios rigores[36].

Ressalte-se que a responsabilidade jurídico-política somente não será considerada como não degeneração da responsabilidade ética, quando tem embutido em si o desejo de perfectibilidade, tem a justiça ética como gênese inspiradora[37]. A Justiça como Direito deve ser tal que controle os egoísmos próprios do ser e motivador das guerras.

Concluímos, portanto, que, para Levinas, a Justiça Ética é tida também como responsabilidade ética, tendo em vista que ambas significam que o ser humano deve esquecer-se de si, numa total subjugação ao outro, com o intuito de trazer a real justiça, responsabilizando-se ilimitadamente pelo outro. Contudo, por vivermos em uma sociedade, temos a presença do terceiro, qual seja, o próximo do outro, a comunidade, a humanidade, visto conjuntamente ao olharmos para o Rosto/Outro.

Ante essa presença a mais, surge a necessidade da Responsabilidade Jurídico-política, ou, Justiça como Direito. Esta traz em si a função de julgar, ou seja, tem por intuito, estabelecer as regras necessárias para determinar a convivência social, mas, deve ter sempre por base a Justiça que excede a Justiça, sob pena de deixar de ser Justiça, sendo, contudo, também necessária para a justiça que excede a justiça, sendo que ambas devem ter em si embutidas a principal característica que é a caridade.

Feito a trajetória, se torna premente a necessidade de estabelecer de que forma Levinas concebe a concretização desta responsabilidade jurídico-política.

2.1 – Necessidade do Estado – Estado Liberal - Democrático

Para se estabelecer a Justiça como direito, faz-se necessário a institucionalização, o que se consolida por meio da autoridade política do Estado. Nos termos de Levinas: “a santidade do humano (...) anuncia-se na misericórdia e na caridade respondendo ao rosto de outrem; mas faz também apelo à Razão e às leis. Mas já a justiça exige um Estado, instituições e um rigor e uma autoridade informada e imparcial.”[38]

O direito do indivíduo na proximidade e na unicidade do outro conduz ao Estado, Estado este Liberal ou democrático, segundo Levinas. Para este, a responsabilidade ética é não só o fundamento do direito, como também da estrutura política da sociedade sujeita a Leis. Nisso depreende-se que na obra levinasiana a questão do político não é menos necessária do que a questão da ética e a questão da justiça, pois, todas interligadas. O Estado também tem seu fundamento na extravagante generosidade do para-o-outro, derivando do direito infinito para o outro[39].

O Estado tem por objetivo a garantia dos direitos e deveres de cada um dentro das condições mínimas da sociabilidade, por meio da estrutura política, que assegura a justiça social. Assim, há uma crítica ao Estado na filosofia levinasiana, mas, não sobre a ótica das reclamações egoístas do eu, ou seja, não é pelo fato de que a universalidade das leis se impõe contra o eu, mas, sim, por esse Estado em muitas ocasiões transgredir suas funções e fundamentos.

É defensor do Estado que venha defender a República, que socorram aos injustiçados, vítimas de violências como racismo, imperialismo, exploração, etc. É por isso que o Estado deve existir, para que as vítimas tenham para onde voltar seus olhos, se socorrerem, algo que faltou quando da existência de Estados Totalizadores, como no caso das Guerras Mundiais, onde houve o mais absoluto silêncio de todos, em especial ante o Holocausto.

É por isso que Levinas insiste na idéia de que as instituições devem ter a verdadeira vida interior, que é a obrigação de albergar toda a humanidade na sua consciência, ser absolutamente responsável pelo outro, cujo direito é infinito. Nisso se consubstancia a Ultrapassagem do Estado, ou seja, antes do Estado existe o individuo, e é para este que aquele existe[40].

 Ao contrário dos Contratualistas, Levinas entende que o Estado tem sua origem na relação do homem para o homem, ou seja, da relação do homem, indivíduo ético, à santidade do outro homem. Trata-se do princípio humano, contrapondo-se ao princípio animal.

Assim, o Estado no qual a relação inter-pessoal é impossível é um Estado Totalitário, sendo este o limite do Estado, qual seja, a não observação da Responsabilidade Ética, o esquecimento do indivíduo ético, da caridade. Isso é o que difere fundamentalmente o Estado proveniente da limitação da Violência (contratualistas) do Estado proveniente da limitação da caridade – como limitador da responsabilidade ética (Levinas). Por essa razão, natural se torna a concepção da necessidade do Estado ser Liberal ou Democrático, um Estado ditado e permanentemente inquietado pela justiça, que vela pela boa ou justa execução da responsabilidade ética, da procura e da defesa dos direitos do homem[41].

Portanto, para que se assegure a Justiça, deve-se ter a Responsabilidade ético-jurídico-política advinda do Estado Democrático instituído, sendo que ambas as instituições, Direito e Estado, somente serão justas e legítimas, quando tem por fundamento e por horizonte a responsabilidade ética, entendida como a relação do homem voltado para a santidade do outro. Santo é o outro, e nisto percebe-se a visão de religiosidade de Levinas.

A RESPONSABILIDADE VISTA POR CASTANHEIRA NEVES

Para a análise das concepções de responsabilidade de Castanheira Neves, interessante fazermos um percurso inicial, com o esclarecimento sintético de determinados conceitos que auxiliarão para o entendimento global do pensamento do Autor, capaz de melhor elucidar o tema.

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Castanheira busca em suas obras retratar uma análise sobre o sentido do direito, onde questiona-se sobre o porquê da existência do direito, ou seja, qual a razão de ele existir[42]. Segundo ele, o Direito é uma resposta possível, para um problema necessário, sobre certas e de determinadas condições[43].

O Direito emerge[44], como dimensão específica da realidade humana, com o sentido e a intencionalidade que advém da síntese de três condições de emergência. A primeira é a Condição Mundano-social[45], expressa no fato de que há uma pluralidade humana na unicidade do mundo, que se comunga por meio da coexistência e da mediação deste mundo, através das relações sociais.[46]

Em segunda via nos apresenta uma condição Humano-existencial[47], a qual estabelece que nós só poderemos ter essa relação com o mundo enquanto homens, enquanto pessoas, com personalidade e autonomia social, mas isso numa relação dialética com a comunidade, com a convergência comunitária, dialética esta que se desenvolve pela tensão dos contrários, pela transfinitude intencional, mutação temporal e transcensão de sentido e axiológica de todos os pólos, fazendo surgir um problema de totalizante integração[48].

A condição mundanal culmina na condição social da intersubjetividade, momento material, e a condição antropológica-existencial culmina na condição cultural da institucionalização de uma ordem política, mas, essas condições, embora necessárias, não são essenciais para o surgimento do Direito. Isso nos permite verificarmos que podem existir ordens diversas, que não sejam ordens de direito, pois, para ser ordem de direito, deve pressupor uma determinada índole, a qual só é possível perante a emergência da condição ética[49].

Por meio desta condição ética[50], será possível a verdadeira integração comunitária, onde se reconhece a cada homem a dignidade do sujeito ético, a dignidade de pessoa, a qual se torna um valor indisponível para o poder e a prepotência dos outros, de modo que só assim será o homem detentor de direitos e de deveres em todos os níveis, segundo todos os princípios e em todas as modalidades estruturais que normativamente se tem objetivado a construir o direito.

Dessa forma, denotamos que o Direito pressupõe três condições para existir, sendo que, as duas primeiras, embora necessárias, não são essenciais, pois o Direito, apenas irá surgir como verdadeiro Direito, quando tiver enraizado em si a terceira condição. Esta, por sua vez, para ser realmente compreendida pressupõe a análise da concepção de Sujeito Ético e seus correlativos.

O sujeito ético[51] se afirma em duas notas, quais sejam, a liberdade e a pessoa. A primeira nos remete a idéia de que para se ter o dever é necessário que se tenha o poder, sendo condição transcendental da normatividade. A liberdade advém do fato de que o homem é um ser originário, pois a possibilidade advinda do seu poder-ser exclui a necessidade de uma determinação, ou seja, sua existência sempre implica em um início que o faz um homem sempre novo e novador (que produz novidades).

Tanto isso é fato que cada homem produz sua própria biografia. Além de originário, o homem também é Autor, pois pode falar e agir em nome próprio, assumindo-se como eu, perante si próprio, na ipseidade, o que lhe garante a característica de sujeito e não de objeto; perante os outros, onde o eu é diferente do tu, o que garante a suprema relação humana do diálogo; e, perante o tempo, o que lhe garante a sua personalidade, pois se altera com o tempo.

Em que pese as características de sujeito ético pareçam ser condições sine qua non para ser pessoa, não basta a individualidade, pois isso é uma condição antropológica. Para se ser pessoa, temos que auferir o seu valor, o que a enquadra como categoria ético-axiológica. A pessoalidade se dá pelo reconhecimento da dignidade do homem, o que garante a recusa do homem em se tornar mero objeto do mundo, como um ser indisponível, um fim em si mesmo, o reconhecer-se como homem e por isso ser respeitado. Esse reconhecimento deve ser recíproco, ou seja, só serei reconhecido como pessoa, se eu os reconhecer como pessoas.

A condição de sujeito ético, ou seja, pessoa detentora de valor, dignidade, nos remete ao grande imperativo ético do Direito, advindo do fato de que só o ser livre, reconhecido na sua dignidade, pode ser verdadeiramente sujeito ético. Assim, determina-se que devemos ser pessoas e respeitar os outros como pessoa, conforme o imperativo enunciado por Hegel. Esta é a razão pela qual o Direito não é a Ética, mas tem uma dimensão ética[52]. A constituição desta ordem de validade implica em dois princípios fundamentais, quais sejam no princípio da igualdade e no princípio da responsabilidade.

O princípio da igualdade advém do reconhecimento da pessoa, ou seja, “como pessoa, todos os homens são iguais”. Isso correlaciona a igualdade com a liberdade, pois, para ser pessoa há a necessidade de o homem ser livre e, sendo pessoa, os homens são iguais, assim uma provém da outra. Trata-se de uma igualdade entre os sujeitos-pessoas e no todo comunitário.

Ademais, observa Castanheira que a igualdade vista dessa forma pode ser a observação da desigualdade[53]. Esse princípio desdobra-se nas conseqüências jurídicas da autonomia e da participação. Autonomia entendida juridicamente de forma negativa, pela compreensão de que se trata de uma conseqüência limitadora e proibitiva das ações, que se dirige aos outros, bem vislumbrada pela determinação do neminem laedere. Já a conseqüência da Participação, traz em si um caráter positivo, ante a concorrência constitutiva com os outros, bem vislumbrado nos contratos, em todas as formas associativas e na legislação, que se traduz na idéia do pacta sunt servanda.[54]

Juntamente com o princípio da igualdade, correlacionando-os, surge o princípio da responsabilidade, sendo este o que gera a indefectível integração comunitária. Implica no dever de assumir as exigências e as validades que dão sentido às condições de realização próprias da coexistência comunitária.

Assim, a pessoa, pelo simples fato de o ser, responde não só por direitos como também por deveres perante a comunidade, sendo estes tão originários quanto os direitos. Este equilíbrio entre a participação comunitária da pessoa e a sua responsabilidade para com ela é o que pode ser considerado Justiça. Traz em si embutidos os postulados da solidariedade e a corresponsabilidade. Aquela se refere a uma implicação positiva, entendida pela atuação dos sujeitos em termos de mediação para com a comunidade, ou seja, traduz-se na justiça distributiva, do suum quique tribuere.

Já a Corresponsabilidade tem uma conotação negativa, pois impõe aos sujeitos “proibição de comportamentos que violem ou ponham em perigo os valores e bens que se reconheçam como fundamentais elementos constitutivos da ordem jurídica: honeste vivere”[55].

Essas conotações têm especial implicação quando analisados em relação ao caráter positivo e negativo de ambos os princípios[56]. Aquelas de dimensão positiva estabelecem o caráter de continuidade normativa, pois são possibilidades de realização num sistema de finalidades. Geram como conseqüências necessárias a índole aberta do sistema intencional, pois não consegue abarcar todas as situações jurídicas concretas, em decorrência da não realização de todas as possibilidades histórico-sociais, assim como, o seu caráter lacunoso da ordem instituída, pois os meios disponíveis para a solução dos problemas jurídicos concretos sempre ficarão aquém das exigências postas, pelo dinamismo histórico-social da realização e da problemática.

Já as de dimensão negativa, postulam, ao contrário, uma discrição normativa, ou seja, implica em limitação normativa, tendo em vista a relação antagônica entre a estrutura institucional e a sua intencionalidade. Por ter um caráter limitador, entende-se que deve ser imposto um limite para esses limites, sob pena de que a limitação se converteria em potenciais privilégios de uns em desfavor aos outros e a igualdade acabaria por ser sacrificada pela responsabilidade.

Esse limite dos limites acaba sendo assumido em dois planos, os quais se convertem em dois outros princípios fundamentais: princípio do mínimo e de formalização, correspondendo o primeiro ao caráter material deste e este ao caráter formal da limitação dos limites.

O Princípio do Mínimo, enquanto limitador material, estabelece que só serão legítimas as limitações impostas, quando estas são indispensáveis para a convivência comunitária, impostas a todos, capaz de proporcionar a realização pessoal de cada um.

O Princípio da Formalização tem seu campo de autuação como limitador formal, onde busca dar vida ao princípio do mínimo, sem o qual este se frustraria, através de uma institucionalização dos limites materiais impostos. Isso se dá com as seguintes características normativas: com a definição de um esquema jurídico susceptível de pré-demarcar de uma forma controlável, o seu concreto cumprimento, evitando-se assim a hipertrofia da responsabilidade, que colocaria em risco a liberdade e a autonomia dos sujeitos de direito, que os colocariam como meros objetos desse poder, de todo inaceitável pela sua dignidade ética como pessoas[57].

Em decorrência do homem como pessoa, que convive com as demais pessoas numa relação de intersubjetividade, advém o reconhecimento do sentido do direito, como imperativo normativo. Tal imperativo, todavia, não pode ser sem fundamento, sem uma razão, um argumento de validade. Esse argumento de validade deve superar o trans-individual, isto é, os pontos de vista individuais, sendo justificável pelas suas posições relativas nessa unidade de sentido e comum integrante.

Esse fundamento não se deve dar apenas no sentido formal, mas, também materialmente, o que se dá pela obediência ao postulado do sujeito ético, pessoa dotada de liberdade e valor, iguais entre si e eminentemente responsáveis. Isto quer dizer que para que o Direito tenha validade seu postulado deve garantir a dignidade e a igualdade da pessoa e perante estas justifique a posição ou pretensão.

Castanheira conclui que o Direito só surge verdadeiro e autêntico quando proveniente de uma instituição com validade e não por ser mero instrumento social de institucionalização e organização que venha satisfazer interesses ou necessidades.

Ressalte-se que esta exigência de validade é pressuposto fundante, mas não determina qual o direito a ser aplicado, o que se realiza por meio da índole histórica e caberá ao político determinar o modelo concreto a ser seguido. Mas, esse modelo só será justo e válido quando fundar-se nas condições de liberdade, igualdade e responsabilidade. Só assim a ordem político-econômica será também uma ordem de direito[58].

Ante este quadro descrito percebemos que a constituição do sentido do Direito, passa necessariamente pelo sentido de Responsabilidade, tido como um princípio basilar do Direito para Castanheira Neves, o que nos enquadra para o estudo detalhado do tema, objeto de nosso trabalho.

O instituto da Responsabilidade para Castanheira Neves pode ser analisado sob duas óticas, uma em sua concepção como Princípio fundante do sentido do Direito, correlacionado com o entendimento da condição ética do direito e outra pela concepção mais jurídica, no sentido de um instituto que implica nas suas vertentes de responsabilidade civil e responsabilidade penal. Mas, referidas vertentes, logicamente, são correlatas, pois a primeira é a base fundante da segunda.

Castanheira Neves de plano, quando trata da questão do instituto da Responsabilidade, nos levanta a questão da Hipertrofia da Responsabilidade, qual seja, nos dias atuais há uma massificação da conceituação e do instituto em si, o que acaba por gerar uma desvalorização da mesma. Há um alerta no sentido de que o homem vive hoje um momento de recusa ao assumir suas responsabilidades, em todas as esferas da vida em sociedade, política, social, jurídica, etc.

Tanto isso é fato, que se acabou por alterar o significado semântico da palavra, esquecendo-se que a base semântica da palavra advém do termo responsável, adjetivo ou substantivo, relacionado à pessoa, ao eu, próprio, sendo que o termo responsabilidade, por ser um substantivo genérico, tem a ver com o outro, com a sociedade, com ninguém, mas, que não me compromete.

Assim, “os homens não se sentem responsáveis, e sofrem sempre como um golpe aleatório o verem-se responsabilizados em vez de poderem invocar a dissolução da sua responsabilidade pela transferência para a irresponsabilização de uma socialização total”[59].

Esse é o problema maior que o instituto da responsabilidade vem sofrendo nos dias atuais, qual seja a sua Hipertrofia que veio a ocasionar a sua desvalorização. É dessa premissa que partimos, sendo guiados pelo jus-filósofo em todas as premissas e questionamentos que advém dessa hipertrofia, no contexto atual.

Na atualidade[60], criaram-se diversas formas de responsabilidade, polarizando-a institucionalmente, de modo com que se deixa de ver a essencial dimensão da culpa para admitir uma contínua progressão do seu caráter objetivo, que acaba por dissolver a responsabilidade e ainda desligá-la da própria ilicitude, nos casos das modalidades por atos ilícitos.

Ante a crise do direito que presenciamos o instituto da responsabilidade também deve ser visto com uma nova conotação, onde não se pode esquecer que estamos perante uma ciência que não pode ser apenas técnica, mas sim, também e fundamentalmente, ética. Esse é o caminho do Direito. Para tanto, a responsabilidade deve ser questionada em seu conteúdo de deveres e não apenas sob a ótica dos direitos. Quer dizer, deve-se verificar a responsabilidade de todos, inclusive da vítima e não apenas o direito desta. “É o homem como sujeito de direitos e por isso também de deveres e responsabilidades”[61].

Questiona se não estamos novamente frente a um abuso semântico, ao designar de responsabilidade o que não passa da legitimação da ação pela assunção de suas conseqüências, transformando a qualificação da responsabilidade apenas como apoio dogmático[62] para soluções de outras naturezas. Afinal, se o objetivo do instituto é a reparação do dano, dever-se-ia voltar os investimentos para a prevenção do dano, evitando-o, com contra estímulos para isso.

Nesse sentido, alerta para a possibilidade de voltarmos as penas privadas com o intuito de prevenir os danos, significando um retorno, uma recuperação do sentido tradicional da responsabilidade (ético e jurídico), que a socialização tende a apagar. Ter-se-ia uma convergência da responsabilidade civil e da penal, nesse campo, voltando-se para as penas com fim preventivo.

Por essa situação posta, nosso jus-filósofo nos apresenta três possíveis perspectivas que estejamos vivendo na atualidade, sobre os quais faz sua reflexão para soluções do problema da Responsabilidade jurídica. Numa visão imediata, pode-se considerar que estejamos perante um recuo temporal, que nos levará ao desaparecimento da dimensão ética de tradição cristã-européia, tanto do direito quanto da pessoa, do homem.

Ainda, estamos frente a uma possível separação radical do direito da ética; ou, por fim, estamos perante um quadro que nos levará a superação do próprio direito, segundo um módulo científico-tecnológico que substituísse a dominação dos homens pela administração das coisas[63].

Para a solução desses questionamentos, no mundo moderno apresentam-se diversas aporias, cujos sistemas tendem a querer dar uma solução ao problema da responsabilidade, com paradigmas que tentam e tentaram solucionar a questão. Inicialmente tivemos a visão advinda do Individualismo Liberal[64], que coloca o fundamento da responsabilidade na culpa, tendo por critério de análise o Dano, própria da idéia de liberdade.

Ou seja, a conseqüência para a má utilização do livre-arbítrio seria o poder de determinar seus atos. Mas, isso apenas teria validade para os casos da esfera civil, pois na esfera penal se continuava a análise da culpa, com essência ética, com a pena com caráter expiatório e repressivo. Após essa fase, passa-se para o providencialismo social, onde se trocou a idéia de responsabilidade pela idéia de reparação, onde a pessoa foi sucedida pela sociedade, sendo que todos os problemas dos homens passam a ser problemas sociais, sendo responsabilidade da sociedade resolve-los.

Trata-se do passar da fase da responsabilidade subjetiva para a fase da responsabilidade objetiva, pelo risco e não pela culpa, trocando-se a perspectiva do agente para a perspectiva da vitima. Essa mudança foi uma evolução ou um fracasso? Para Castanheira, isso foi um fracasso, pois não o homem não mais se reconhece em sua pessoalidade, o que gerou a crise do Welfare State.

Esses paradigmas modernos, que se apresentaram falhos, trouxeram embutidas alternativas para os dias atuais, consubstanciadas nas idéias do neoliberalismo ou neocontratualismo, assim como as soluções apresentadas pelo sistema social, sendo que ambas[65] apresentam visões extremas, onde aquela dá um exagerado enfoque ao pólo do suum e esta ao pólo do commune, sem que nenhuma delas realmente traga a solução para a sistemática da responsabilidade atual.

A hipervalorização do individualismo com a conseqüente hipertrofia do sujeito, excluindo a comunicação social e os vínculos normativos e, com isso, a responsabilidade. Já a hipervalorização do social e do funcionamento do sistema gera a hipertrofia da sociedade com a exclusão do sujeito, do homem.

 O cerne da problemática da responsabilidade jurídica atual encontra-se na resposta as seguintes perguntas: é ou não o homem responsável? Tem ou não tem sentido a responsabilidade no direito e como seu problema – sendo este o seu problema específico e irredutível?[66]

Essas respostas, se analisarmos bem o conteúdo anteriormente exposto, já nos foi apresentada, sendo clarividentemente positiva, sendo este o “pensamento novo” que Castanheira quer nos apresentar, qual seja, a recompreensão do sentido da responsabilidade no âmbito do Direito.

Senão vejamos: O homem é responsável? Para tal resposta necessitamos relembrar quem é o homem, a que homem nos referimos? O homem-sujeito (sujeito) ou o homem-pessoa (pessoa)? O primeiro, como exposto, é uma entidade antropológica, caracterizado por ser originarium e Autor, detentor de uma identidade, uma ipseidade e personalidade, que o faz ser reconhecido perante si próprio e perante os outros como um ser livre; é um ser-com-outro, pois tem por sua condição de existência a vida em comunidade, o viver com os outros, em uma relação dialética promovida pela linguagem.

Por sua vez, o homem-pessoa é uma aquisição axiológica, pois, além das características antropológicas, deve se dar a este homem o seu valor, o reconhecimento deste valor, sua dignidade. É por meio desta dignidade que o homem se torna pessoa, reconhecido como tal, detentor de um estatuto ético, ou seja, sujeito e não objeto perante o mundo. Portanto, essa pessoa, que vive em comunidade e com os outros, detentor de um fundamento ético, é detentora de direitos e de deveres, estando aí o fundamento de sua responsabilidade. Assim, o homem-pessoa é responsável.

Como responsável, essa pessoa está investida em responsabilidade, ou seja, por meio do compromisso ético que essa pessoa assume, pois para ser reconhecido como pessoa, ter sua dignidade, deve também reconhecer o outro como pessoa, numa relação de reciprocidade, e também frente a interpelação ética realizada pelos outros para si, chamando-o a ser pessoa, a ser responsável.

Nisso consiste o estar investido de responsabilidade, isto é, ante a relação de reciprocidade, a pessoa deve sempre ter consciência de sua responsabilidade para com os outros e para com si próprio. Isso implica na correlatividade de direitos e de deveres (o reconhecimento que tenho dos outros me gera direitos, mas, o reconhecimento que os outros obtêm de mim, impõe-me deveres). Assim, a condição axiológica de pessoa, implica necessariamente o investir-se de responsabilidade.

Essa responsabilidade se dá em três níveis, ou seja, perante a humanidade - «princípio da responsabilidade» - entendida no assumir a humanidade, condição de existência da pessoa, por isso, advinda com a vida que é concedida ao homem; perante o outro - «relação ética» - traduzida pela responsabilidade que devemos ter para com as demais pessoas, com o Outro, nos termos levinasianos anteriormente exposto, onde além da relação com o outro não podemos esquecer a relação como os outros homens, estando aí o fundamento da justiça; e, perante os outros pela mediação social - «responsabilidade através do direito» - entendida como aquela que nos é imposta pelo direito, advindo de seu imperativo (sê pessoa e respeita os outros como pessoa), nos termos que já estabelecemos quando tratamos das condições de emergência do direito.

Poderíamos sintetizar esta responsabilidade como o limitador necessário da liberdade, através do qual se proporcionará a igualdade das pessoas, nos sentidos principiológicos anteriormente estabelecidos.

 Nessa correlação os próprios princípios do Direito, podem ser considerados os princípios norteadores da Responsabilidade Jurídica, quais sejam, da igualdade (todo o homem-pessoa é igualmente responsável); corresponsabilidade (desdobramento do princípio da responsabilidade – traduzidos no neminem laedere, gera três conseqüências normativas: a) responsabilidade perante as condições da existência comunitária – isto significa que temos que nos responsabilizar pelos atos que põe em cheque a coexistência comunitária, violando preceitos que implicam prejuízo social. Tem correlação com a responsabilidade penal e com as responsabilidades sociais; b) responsabilidade por reciprocidade – própria da responsabilidade que resultam de vínculos assumidos ou compromissos, responsabilidade civil obrigacional ou contratual; c) responsabilidade pela integração comunitária – correlaciona-se ao abuso de direito, onde há um prevalecer injusto do direito de um sobre o direito do outro, pois caso não se tenha esse respeito a igualdade das pessoas fica ferida).

No tocante a essa responsabilidade, Castanheira nos alerta para o caso das situações sociais inevitáveis que só possam ser resolvidas a custa ou pelo sacrifício de um dos participantes da situação, nesse caso, deve-se buscar verificar a existência de duas condições, quais sejam, a possibilidade de reversibilidade de posições; e compensação que o sacrificado obtenha indiretamente da mediação comunitária pela potenciação de um enriquecimento comunitário.

Isso tudo culmina com a concepção de Castanheira para que façamos uma alteração do termo de definição, onde trocaríamos a concepção de Responsabilidade para o termo Solidariedade. “Solidariedade para com os carecidos e as vítimas sociais, e também do destino, a que a sociedade e nós todos nela sejamos chamados. Só que – ponto essencial – distinguindo bem responsabilidade (jurídica) e solidariedade (humana). E nesse caso não terá sequer de convocar-se uma responsabilidade que seja compreendida a exorcizar o absurdo da dor humana na assunção de uma culpa originária que nos solidarize, simplesmente aí – e uma vez mais naquele não já jurídico, mas transjurídico princípio responsabilidade radical que é o Anspruch des Seins no homem e para o homem -, humanidade, responsabilidade e solidariedade identificam-se. De novo e como sempre o amor está para além da justiça e consuma-a – só o dom acaba por dar sentido e admite a reivindicação do outro. E então, como o Pai, mataremos o vitelo gordo em honra do filho que talvez não o merecesse, segundo os nossos limitados e tão cegos juízos, mas que todo o homem-pessoa só por o ser, nessa outra filiação que era também ou era sobretudo a do assaltado e ferido no caminho de Jericó, sempre justifica”[67].

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Sobre a autora
Tatiana Orlandi

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra - Portugal.<br>Advogada, Professora Universitária na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, câmpus Toledo. Coordenadora de Curso de Direito - PUCPR - Toledo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ORLANDI, Tatiana. Homem sujeito responsável – diálogo com Levinas e Castanheira Neves. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4961, 30 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55272. Acesso em: 27 abr. 2024.

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