Artigo Destaque dos editores

Homem sujeito responsável – diálogo com Levinas e Castanheira Neves

Exibindo página 3 de 4
30/01/2017 às 12:00
Leia nesta página:

RESPOSTAS ADVINDAS DO DIÁLOGO

Da análise realizada, podemos inferir algumas informações de nível mais fulcral, ao que nos parece. Inicialmente, temos que o instituto da Responsabilidade, nos dias atuais vem sofrendo grandes diferenças no seu sentido semântico e na concepção que lhe é dada, em especial no tocante as suas concepções jurídicas.

Responsabilidade jurídica, em especial com a conotação do direito civil, define-se pela obrigação de reparar o dano que se causou por sua falta e, em certos casos, determinados pela lei; já no caso do direito penal seria a obrigação de suportar o castigo. Portanto, a responsabilidade sempre esteve cotejada com a implicação da obrigação, mas que na evolução da concepção filosófica do termo responsabilidade, essa obrigação vem adquirindo concepções diversas, onde acaba por ultrapassar a idéia simples de reparação e punição.

Chegamos a situação limite do sois responsável por tudo e todos. A expressão por hora adquiriu concepção principiológica[68]. Essa é uma conotação que temos clara na visão de ambos os estudiosos que hora nos debruçamos, sendo isso clarividente na construção do Sentido do Direito dada por Castanheira e também por Levinas em seu cotejar a responsabilidade como Justiça.

 Ricoeur nos alerta sobre a diferença semântica que tem passado a concepção de Responsabilidade, onde inicialmente, obteve uma conotação de imputação e retribuição, como base da sua definição, o que perdurou até os dias atuais, onde nos depreendemos com uma responsabilidade sem falta, sem culpa, e outras diversas. Isso fica bem cotejado no desenvolver das idéias de Castanheira Neves, que alerta para o perigo das concepções de uma responsabilidade apenas voltada para o risco, como tem se buscado realizar nessas concepções sociais.

Levinas, da mesma forma, nos retrata uma necessidade de revermos a concepção de responsabilidade embora, em outros termos. Nele vemos que concebe o homem como um ser ilimitadamente responsável pelo outro, em uma relação de subordinação a este, advinda de um sentimento de caridade, de solidariedade.

Contudo, está relação, quando defrontada perante uma relação social (presença do terceiro), deve deixar de ser ilimitada, sendo visto esse terceiro como limitador da responsabilidade anárquica, pois, caso contrário, não poderíamos retratar a igualdade entre as pessoas, que deve ser uma das bases fundamentais do relacionamento ético social, em que pese, essa igualdade não significar uma absorção das diferenças, e, sim um respeito as desigualdades, baseado na igualdade dos homens, enquanto filhos do mesmo Pai e, irmãos entre si, numa relação de igualdade de submissão entre o eu e outro e outro e o terceiro.

Do mesmo modo, Castanheira concebe a Responsabilidade como um limitador da liberdade da pessoa, pois sem esse limitador, não se pode conceber a igualdade, também vista como uma relação fulcral da vida em sociedade, mas que, deve ser promovida com a observação das desigualdades, não a subjugação das mesmas. Além disso, Castanheira também concebe uma alteração da concepção do termo responsabilidade para a concepção de solidariedade. Isto para buscar dizer que a responsabilidade deve ser um sentimento de entrega ao ser mais carente, ao ser que necessita de nosso auxílio, como na parábola do filho pródigo.

Contudo, essa solidariedade não deve ser confundida com a responsabilidade jurídica, sendo na realidade, a solidariedade entendida mais como o sentimento norteador da humanidade, numa conotação semelhante a que nos é dado por Levinas, quando retrata a Responsabilidade Ilimitada. Ou seja, trata-se do sentimento ético que deveria mover a sociedade, ou seja, o do respeito e amor incondicional ao próximo. Mas, esse, deve apenas ser o norteador, o farol, que o homem não pode perder quando em uma relação social e, assim, ser o objetivo da responsabilidade jurídica, em que pese a distinção de sua aplicação. A solidariedade advém da concepção de que o bem do outro será também o meu bem, razão pela qual, este deve ser o fundamento da responsabilidade.

Ainda, depreendemos que o fundamento do Direito, ou seja, a razão de existir do direito, não é apenas em si o fato de que se vive em um mundo único, com uma multiplicidade humana, sendo que o homem traz em si embutido a necessidade de vida em sociedade. Mas, o que torna o Direito enquanto Direito, é o fato de que este deve possuir uma dimensão ética, o que é dado pela sua concepção de que o homem tem uma dimensão axiológica, ou seja, um valor. É a pessoa (sujeito ético) que garante ao direito o ser de uma forma tal qual se pode depreender dele como Justiça. Essa é a condição fundamental do Direito.

Nisso depreendemos uma semelhança para com a concepção levinasiana de justiça como direito. Ambos têm embutido em si o caráter ético como seu fundamento. Esse caráter ético advém do homem, homem este embutido de um sentimento de caridade, de responsabilidade para com o outro.

Tanto Levinas como Castanheira compreendem que a relação ética se dá num sentimento de responsabilidade e de imperativo numa relação dupla, ou seja, do eu para com o outro apenas. Contudo, a relação de Direito se dá numa existência social, comunidade, com a presença do terceiro. Assim, a Ética advém do imperativo determinante do meu agir para com o outro, já o Direito, pressupõe a existência de no mínimo três pessoas, de uma comunidade, se fazendo necessária até mesmo o julgador.

Ambos depreendem que se faz necessário a existência de Instituições para regular a sociedade, concebendo o Estado Democrático o melhor para tal, pois, neste Estado, teríamos embutido em si a relação ética, não totalitária. Contudo, ambos compreendem que podem existir ordens, instituições, que não concebam o Direito, a Justiça, a Ética, o que gera a ilegitimidade dessas instituições, nos termos de Levinas e para Castanheira, essas instituições carecem de validade, do fundamento de validade, qual seja, a base ética, i. é, do conceber o homem com dignidade e valor, respeitando sua liberdade, igualdade e seu sentido de pessoa, sujeito de direito e de deveres e não apenas objeto do mundo.

O fundamento do Estado e do Direito para Levinas é a responsabilidade ética, ou seja, o homem voltado para a santidade do outro; de forma semelhante, Castanheira concebe que o fundamento de validade do direito são as condições de igualdade, liberdade e responsabilidade do sujeito ético para com o outro.

Ainda, Levinas estabelece uma distinção entre o sujeito ético e o cidadão, de forma que o sujeito ético possui legitimidade para contestar o Estado ilegítimo, pois o Estado existe para o indivíduo, sujeito ético, enquanto o cidadão, por ser uma construção social, não poderia contestar o Estado.

Ressaltamos que, ao nível ético a responsabilidade é ilimitada, contudo, a nível jurídico, essa responsabilidade possui limites, dados pela convivência social, pelo próprio Direito, como ordem regulamentadora, tendo por fundamento desse limite, o respeito pela concepção do homem como pessoa, nos termos acima referidos.

Destacamos que em Castanheira, ao conceber o princípio da responsabilidade como um limitador da liberdade humana, entende que, para ter uma conotação de validade essa limitação também deve ser limitada, por meio de princípios que ele concebe, qual seja, do mínimo e da formalização. Esses têm por base a idéia de que apenas são válidas as regras limitadoras, quando estas forem indispensáveis para a convivência social. Nesse pormenor, as regras de Levinas, em que pese nos fazer subtender tal idéia, não nos parecem tão claras.

Outra semelhança aferida nas concepções desses dois filósofos refere-se ao fato de que a Linguagem é vista como a forma pela qual o homem transcende para o Outro (Levinas), forma pela qual o pólo do suum se vincula ao pólo do comune, ou seja, a forma pela qual transcende para o mundo.

Ainda, nos moldes de Levinas, que concebe a responsabilidade sobre uma conotação ética e outra jurídica diferenciada, Castanheira, concebe a responsabilidade perante três linhas, qual seja, perante a humanidade, o que gera o princípio da responsabilidade, onde o sujeito ético traz em si embutido as concepções de responsabilidade; a responsabilidade perante o Outro, nos mesmos moldes de Levinas, onde há a responsabilidade ética que é o fundamento da justiça, na conotação definida por Solidariedade; e, por ultimo, a responsabilidade perante os outros em uma mediação social, que é a responsabilidade estabelecida através do direito, cujo objetivo é impor limites à liberdade e com isso assegurar-se a igualdade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Depreendemos, contudo, um ponto de distinção entre esses pensadores, no que se refere a natureza da concepção de responsabilidade para o homem. Levinas entende que todo o homem é detentor de uma estrutura ética e, portanto, portador de uma responsabilidade ilimitada inata para com o outro. Castanheira, todavia, crê que o homem sujeito, em que pese viver em sociedade, não tem em si implicada a noção de responsabilidade, pois esta só surge quando analisado o homem com a noção de sujeito ético, ou seja, dotado de valor, enquanto pessoa, e, nesse caso, dono de responsabilidade.

Essas são algumas das inferências por nós compreendidas, as quais nos trouxeram a resposta para alguns dos questionamentos inicialmente realizados.

Por certo, enquanto pessoa detentora de valor, de dignidade, que tem em si embutida a necessidade de transcender para o outro de uma forma não subjugadora, dialógica, o Homem é responsável, i. é, deve ser sujeito de Deveres tanto quanto de Direitos, numa relação de sujeito para com o mundo e para com o outro, sendo que esse dever, essa obrigação não se condiciona a reciprocidade.

Somos responsáveis independentemente do outro ser responsável para conosco. Essa é a dimensão ética dada ao termo, que para ambos os estudiosos nos remete a verdadeira concepção de justiça, justiça esta que deve ser sempre o desejo de perfectibilidade que devemos buscar enquanto realizadores do Direito, a visão de solidariedade que deve motivar a humanidade e, com isso, a justiça.

É nesse sentido que entendemos que o realizador e o aplicador do Direito, deve, acima de tudo, ser responsável pela realização de um Direito Justo. Isso fica bastante claro no pensamento de Levinas quando diz que a Justiça como Direito ou a Responsabilidade ético-jurídico-política, deve buscar sempre, mesmo que apenas como ideal, atingir a Justiça que excede a Justiça, ou seja, um Direito que retrate uma sociedade absolutamente justa e pacífica.

Nesse sentido, Castanheira Neves, em seu texto Justiça e Direito, quando expõe sobre o papel do juiz e dos juristas, deixa clarividente essa necessidade do agir responsável por parte desses profissionais:

“Além do mais, e sobretudo, porque só dos tribunais é lícito esperar a neutralidade ideológica – condição da afirmação autónoma do direito, como temos vindo a ver – desde que, por um lado, saibam eles assumir essa intentio que está na sua própria vocação, por outro lado, lhe sejam asseguradas as indispensáveis condições de independência social e institucional – em todos os seus aspectos, independência perante as forças sociais e o poder político – e, por último, factor este decerto também fundamental, o pensamento jurídico não se furte ao seu autêntico dever, à indeclinável responsabilidade ético-social de coadjuvar com o seu esclarecimento axiológico-normativamente crítico à função judicial na afirmação, revelação e determinação constitutiva do direito. Caberá aqui aos juízes assim como ao pensamento jurídico, aos juristas em geral, relativamente ao direito e à justiça, uma responsabilidade e um esforço análogos, já em intenção de validade já em função crítica, àqueles que MANNHEIM aponta à «intelligentsia» relativamente à verdade – para todos é dever e tarefa o saberem vencer criticamente os obstáculos que lhes impeçam, ali o acesso à verdade, aqui a realização da justiça. Pelo que, se a intenção do direito, tal como a pudemos compreender, é uma intenção axiológico-normativa universal, não partidária e justificada pela sua própria validade, bem se pode dizer que o juiz – se verdadeiramente o for ou na medida em que pela sua voz fale autenticamente o direito – é o «representante originário da soberania ainda não delegada do povo»; proclamando o direito, reconhece todos e cada um dos membros da comunidade, na sua dignidade, na sua liberdade, na sua igualdade, na sua participação e na sua responsabilidade social.

E, deste modo, o verdadeiro Estado democrático assim como o verdadeiro Estado-de-direito, não será o Estado simplesmente de legalidade, mas aquele em que a última palavra de validade e a própria medida do poder é o direito. O Estado de justiça e de jurisdição, se quisermos.”[69]

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Tatiana Orlandi

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá - UEM. Mestre em Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra - Portugal.<br>Advogada, Professora Universitária na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, câmpus Toledo. Coordenadora de Curso de Direito - PUCPR - Toledo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ORLANDI, Tatiana. Homem sujeito responsável – diálogo com Levinas e Castanheira Neves. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4961, 30 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55272. Acesso em: 18 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos