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Desnecessidade de posse física para o deferimento da guarda

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SUMÁRIO: 1.1 sustos; fantasmas; exorcismos; 1.2 o caso concreto; 2. o questionamento; 3. a perplexidade diante do texto normativo; 4. posse de fato; posse física; 5. guarda; direitos, deveres; hipótese de cabimento; 5.1. hipóteses de cabimento no § 1º do art. 33; 6. dissimilitude entre as expressões "posse de fato" e "posse física"; 6.1. posse de fato sem posse física; 7. a expressão "posse de fato" no ECA; 8. como deve ser entendida a expressão "posse de fato"; 9. conclusão


1.sustos; fantasmas; exorcismos

Os operadores do direito sabem que nem sempre são as filigranas do Direito que nos perturbam. Muitas vezes é a vastidão do colossal e substancioso ordenamento positivo, em sua forma mais espalhada e espalhafatosa, com textos normativos superpostos e obscuros, somando-se às sucessivas e malfadadas intervenções normatizadoras do poder executivo e seus mirabolantes e ruinosos planos econômicos etc., que, literalmente, tiram o sono do profissional.

Nestes casos – porque, por mais prodigiosa que seja a memória e mais brilhante o indivíduo, todos temos limites –, a solução é partir para uma cuidadosa pesquisa atrás dos pontos perdidos do enredo, até que, preenchidas as lacunas do conhecimento, consigamos levar o processo a seu "grande final", a sentença.

Mas, a despeito desse fantasma comum da judicatura, existem outros que, mesmo eventuais e menos ruidosos, gostam de nos pregar os seus sustos. Para afugentar estes últimos não basta a dose usual de interpretação decisória, pois reclamam exercício suado de hermenêutica ("Mas esta casta de demônios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum" – Mateus 17 : 21).

1.1.o caso concreto

Julguei recentemente um pedido de guarda formulado por avô em face uma de suas netas. O detalhe (= o problema) era que a menor não vivia em sua companhia, antes permanecia na casa dos pais.

Com efeito, as testemunhas confirmaram que a menina não estava na posse física do avô, acrescentando, no entanto, que era este quem "respondia pelas despesas dela".

Instado a se manifestar, o INSS alegou que o pedido de guarda objetivava apenas os efeitos previdenciários inscritos no § 3º do art. 33 do ECA, e pretendeu ver o pedido indeferido.

O Ministério Público também pugnou pelo indeferimento, alegando, em suma, que o fato de a menor permanecer na companhia dos pais era impediente de reconhecer-se qualquer das situações prescritas no ECA art. 33 e §§, juntando jurisprudência neste sentido.

Ao final da instrução, a "realidade dos autos" esplendia que: (1) apesar de avô e neta viverem na mesma cidade, moravam em casas diferentes; (2) a neta, com alguma regularidade, freqüentava a casa do avô; (3) era efetivamente o avô o responsável pelas "despesas" da menina (escola, roupas, remédios, brinquedos etc.).

Anote-se, por fim, que os pais da menor eram favoráveis ao pedido.


2.o questionamento

Inquietado, comecei a meditar no assunto, para não fazer injustiça e prejudicar quem quer que fosse.

No centro do debate estava a questão de saber se a posse física (= contado físico) do pretenso guardião sobre a menor era requisito necessário ao deferimento da guarda, ou, refinando o problema, se a permanência da menor na companhia dos pais era fato que impediria sua sujeição ao guardeamento do avô.


3. a perplexidade diante do texto normativo

A guarda não implica em perda ou suspensão do pátrio poder, e, portanto, em tese, os dois institutos podem incidir harmoniosa e concomitantemente sobre um mesmo e único bem. O problema era saber se a permanência da menor na casa dos pais era fato, por si só, impeditivo de que ao avô fosse deferida a sua guarda.

Cumpre esclarecer que a discussão envolve uma certa perplexidade diante da expressão "posse de fato", encontrada no ECA art. 33, § 1º. Como veremos, a guarda tem como hipótese de cabimento sobretudo duas situações em especial: (1) para regularizar a posse de fato, § 1º do art. 33; (2) como medida liminar ou incidental nos procedimentos de tutela e adoção, § 2º do art. 33.

A quase totalidade dos pedidos de guarda, no entanto, fundamenta-se na primeira parte do § 1º - "regularização da posse de fato". Desta forma, é sobremaneira importante saber a qual situação concreta a lei se refere quando utiliza a expressão posse de fato – considerando que, a despeito de sua importância, a Lei 8069/90 não enunciou como deveria ser entendida ou quando estaria caracterizada.


4. guarda; posse de fato; posse física

É preciso observar, com atenção, que a vagueza do texto normativo, quanto cunhou a expressão posse de fato, contaminou todo o instituto da guarda. Ao dizer que a guarda deve ser utilizada para regularizar a posse de fato, omitindo-se, no entanto, de esclarecer o que era esta posse de fato – o texto normativo criou uma miragem.

Para resolver a entropia, ao que parece, na prática, o caminho mais curto foi equiparar as expressões posse de fato e posse física (ou quase isto). Mas, ressalto: mesmo que, normalmente, a posse de fato envolva também a posse física, a lei não estabelece expressamente esta paridade.

Por este motivo, antes de outras considerações, temos que enfrentar e esclarecer se existe verdadeira sinonímia entre as expressões posse de fato (ECA art. 33 § 1º) e posse física (= contato físico), já que boa parte do problema estará resolvido ao final desta decantação.


5. guarda; direitos, deveres; hipótese de cabimento

Como vimos, o caput do art. 33 não dá os contornos necessários à real compreensão da serventia e aplicabilidade do instituto da guarda. Ele se preocupa em apresentar os deveres e enunciar alguns direitos do guardião. Arrola como deveres do guardião a prestação de assistência (a) material, (b) moral e (c) educacional ao menor. E diz que o guardião tem direito a (a) opor-se aos pais do menor e (b) opor-se a terceiros.

Mas, atente-se, no caput do art. 33 não está dito o que, efetivamente, é a guarda. Não está dito, p.ex., a sua destinação, nem quais são os requisitos para o seu deferimento.

É somente no § 1º que se esboça uma aplicação, um sentido prático no instituto, esclarecendo-se que "a guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros".

Sabe-se, então, após a leitura do § 1º, que a guarda se destina a "regularizar a posse de fato". Mas surge outra indagação: regularizar a posse de fato é uma aplicação per se stante do instituto ou esta regularização somente se dará atrelada aos casos de tutela ou adoção?

5.1. hipóteses de cabimento no § 1º do art. 33

A melhor interpretação é a que entende existirem duas hipóteses de cabimento da guarda no § 1º do art. 33, (i) regularizar a posse de fato, (ii) como medida liminar ou incidental nos procedimentos de tutela e adoção. Esta parece ser a interpretação correta, porquanto: (1) não sendo assim, todas as outras situações em que estivesse cabalmente caracterizada a posse de fato mas não fosse o caso de menores em procedimento de tutela e adoção, ficariam descobertas; (2) porque a primeira parte do texto normativo enuncia uma idéia acabada, explicitando a destinação do instituto da guarda – regularizar a posse de fato –, e a segunda parte é apenas exemplificativa de uma situação onde esta posse de fato poderá ocorrer.

Note-se: tanto é meramente exemplificativa – a possibilidade de deferimento da guarda como medida liminar ou incidental nos casos de tutela e adoção, que este deferimento não é obrigatório, sendo mesmo vedado nos casos de adoção por estrangeiros (última parte do § 1). Aliás, lá está dito que, como medida liminar ou incidental nos casos de tutela ou adoção, a guarda pode ser deferida, isto é, não será necessariamente deferida. E o raciocínio se completa com a leitura do § 2º, que diz ser possível o deferimento da guarda fora dos casos de tutela e adoção, para atender a situações peculiares ou suprir a falta eventual dos pais ou responsável.


6. dissimilitude entre as expressões "posse de fato" e "posse física"

Quanto às diferenças entres as expressões posse de fato e posse física, observe-se: (a) não está escrito na lei que ambas designam a mesma situação; (b) na prática, uma pode existir sem a outra.

Que o texto normativo não sinonimiza as expressões, é fácil comprovar: basta lê-lo. Ademais, a Lei 8.069/90 não traz em nenhum dos seus quase 300 artigos a expressão posse física. A própria palavra posse somente aparece em dois lugares: (1º) no § 1º do art. 33, que é o enunciado sob exame; (2º) no art. 124, XV, onde enumera entre os direitos do adolescente privado de liberdade o de "manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guardá-los...".

6.1. posse de fato sem posse física

Conceber que a posse de fato e a posse física não são, na prática, a mesma coisa, exige alguma reflexão. Mas, veja-se, v.g., a situação da mãe que sai para trabalhar e deixa seu filho com a babá: (a) certamente, ainda que por um breve período, ela deixa de ter a posse física do filho – quero dizer que ela perde o "contato físico" com ele – e este raciocínio não encontra maiores resistências, mas, (b) concebendo-se como verdadeiro o entendimento de que posse física e posse de fato são a mesma coisa, chegaríamos ao absurdo de concluir que – tendo a mãe perdido a posse física e, por conseguinte a posse de fato do filho – a babá deveria (poderia) obter judicialmente a guarda da criança.

De nada adiantaria obtemperar que, no exemplo dado, a mãe não perderia a posse física do filho porque esta posse admitiria um certo lapso de ausência. Caberia, então, a pergunta sobre a extensão deste lapso. Quanto tempo esta mãe poderia ausentar-se sem perder a posse física do filho? Dias, semanas, meses?

Creio que a mãe que trabalhe, e.g., em uma cidade, deixando seu filho em outra, aos cuidados de empregados ou parentes durante toda uma semana, perca efetivamente a posse física do filho (= perde o contato físico com ele) no período em que está fora. Mas creio também que, desde que esta mãe o esteja monitorando, assegurando-lhe, ainda que à distância, assistência (material, moral, educacional etc.), não perca a posse de fato sobre ele.

Tomando como base este exemplo – da mãe que trabalha em outra cidade e fica durante a semana sem contato físico com o filho – e entendendo que, a despeito dela não estar eventualmente na posse física do filho (= contato físico) não perde, necessariamente a posse de fato sobre ele, começa-se a se delinear uma nova feição para a expressão posse de fato. Creio que a essência do instituto da guarda impõe atribuir-se à situação posse de fato uma natureza amparadora/assistencial.


7. a expressão "posse de fato" no ECA

Frise-se que não se tenciona descobrir o melhor significado para a expressão posse de fato dentro de um universo polissêmico; visa-se a descortinar o que pode ser extraído e entendido desta expressão segundo a perspectiva do ECA. Assim, devem ficar de fora, sem nenhum prejuízo, reflexões sobre as teorias que pretendem explicar a posse e considerações sobre as figuras da mera detenção e do fâmulo, entre outras.

Para saber o que pode ser entendido como posse de fato sob o prisma do ECA, apesar do pouco subsídio do texto normativo, podemos recorrer ao exame dos deveres que o art. 33 enumerou como ínsitos ao instituto da guarda, quais sejam: a prestação de assistência material, moral e educacional.

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Veja-se, ao fazer a opção por estes três estandartes, o Estatuto especificou os que considerava mais relevantes. Ora, se quando enumerou os deveres do guardião o ECA não grafou entre eles expressamente a manutenção da posse física, não deve ser entendido que a posse de fato a pressuporia, sob pena de permitir que a interpretação do § 1º, onere, injustificadamente, o enunciado na cabeça do artigo. Pode-se até entender estar imbricada na idéia de posse de fato a conveniência de uma vigilância do guardião sobre o guardeado – como corolário dos deveres de assistência material, moral e educacional –, mas, a toda evidência, esta vigilância não necessariamente tem que ser exercitada através de contato físico que justifique a inafastabilidade do requisito da posse física.

De toda maneira, ainda que se reconheça a conveniência da posse física, teríamos que considerá-la um minus em relação às demais obrigações implícitas na guarda – assistência material, moral e educacional.


8. como deve ser entendida a expressão "posse de fato"

Ressaltando o que realmente importa no esqueleto do instituto, que são os deveres do guardião, creio que já dá para assentar, sem sustos, que a expressão posse de fato deve gizar aquelas situações que têm como pano de fundo uma relação estável e efetiva de assistência/amparo do guardião para com o guardeado; independentemente da presença da posse física (= contato físico). Não é outra a intenção da lei.

Até porque, provado, no nosso caso concreto, que era o avô quem patrocinava a assistência material, moral e educacional à neta, estava também provado que ele era o "guardião de fato" da menor. Aos pais tocava apenas a posse física. Como proteger esta posse física, porém despida dos demais atributos da guarda, e deixar sem reconhecimento jurídico a situação da "guarda de fato" exercida pelo avô, apenas pelo fato dele não ter a posse física da menor?

Sob este ponto de vista, podemos dizer que o instituto da guarda reclama a verificação de uma situação de guarda. Esta situação de guarda é perfeitamente reconhecível pela presença estável e permanente (não transitória) de alguns requisitos fáticos/jurídicos: 1) necessariamente, a prestação de: (a) assistência material; (b) assistência moral; (c) assistência educacional; 2) EVENTUALMENTE, a existência de posse física.


9. conclusão

Sob o prisma apresentado, na hipótese de cabimento da primeira parte do § 1º do art. 33 do ECA: (1) a guarda é instituto destinado a regularizar juridicamente uma situação fática de natureza amparadora/assistencial, que se mostre socialmente estável e permanente no tempo, envolvendo o pretenso guardião e uma criança ou adolescente; (2) a expressão/situação posse de fato abrange os casos em que restar comprovada uma efetiva vinculação assistencial/amparadora do pretenso guardião para com o menor, ainda que prescindindo da posse física.

Pensada desta forma, a guarda não encontrará óbices para ser deferida a avô que, comprovadamente, preste assistência material, moral e educacional à neta, ainda que esta não viva sob sua companhia, permanecendo na casa dos pais.

Por fim, a alegação de que, no caso concreto, buscava-se apenas os benefícios previdenciários deve ser lançada no limbo onde se encontram e se interseccionam os impulsos e a conduta ética e moral de cada indivíduo, sem interferência do Poder Judiciário. O mais é exercício de conjectura, e, se for o caso, motivo para choro e ranger de dentes no final dos tempos.

Em razão destes argumentos, naquele caso, acolhi o pedido.

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Sobre o autor
Sérgio Humberto de Quadros Sampaio

juiz de Direito na Bahia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SAMPAIO, Sérgio Humberto Quadros. Desnecessidade de posse física para o deferimento da guarda. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 409, 20 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5561. Acesso em: 4 nov. 2024.

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