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O incentivo fiscal sobre o ISS da construção civil após o advento da Constituição de 1988:

como interpretar?

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17/08/2004 às 00:00
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Com o advento da Constituição de 1988 (art. 41, e seu § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), os Municípios brasileiros que concediam incentivos fiscais de natureza setorial ficaram obrigados a reavaliar sua concessão.

Sumário: 1. A problemática do incentivo fiscal incidente sobre o ISS na construção civil no município de Campo Grande, MS. 2. Considerações sobre a origem do ISS e a legislação que rege este imposto, necessárias à compreensão da questão. 3. Possibilidades de interpretação da legislação que rege os incentivos fiscais sobre ISS da construção civil. 3.1. A dogmática da interpretação no direito tributário brasileiro. 3.2. O difícil caso do Decreto-lei 406/68 e suas alterações. 4. Conclusão.


1. A problemática do incentivo fiscal incidente sobre o ISS na construção civil no município de Campo Grande, MS.

Com o advento da Constituição de 1988, mais especificamente por força da disposição contida no artigo 41, e seu § 1º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias/ADCT [1], os municípios brasileiros que concediam incentivos fiscais de natureza setorial ficaram obrigados a reavaliar a concessão dos mesmos.

O município de Campo Grande, MS, com supedâneo na legislação federal [2] existente antes do advento da Constituição de 1988, assim como muitos outros municípios brasileiros, concedia incentivo fiscal para os serviços de construção civil e obras hidráulicas, consistente, entre outros benefícios, em deduzir do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN) as parcelas correspondentes ao valor dos materiais adquiridos de terceiros, quando fornecidos pelo prestador do serviço. [3]

Este benefício fiscal permaneceu na legislação municipal campograndense até o ano em curso, sem que o município tomasse a iniciativa prevista no § 1º, do art. 41, da ADCT, supramencionado, até que, em 07 de junho de 2002, a municipalidade editou a Lei Complementar n.º 47/2002 [4], suprimindo o indigitado incentivo. Ressalte-se que, como sobejamente se sabe, a alteração tributária promovida vigorará tão somente a partir do exercício fiscal de 2003, em estrita obediência ao princípio da anterioridade.

Ocorre que, evidentemente, os setores atingidos pela modificação ocorrida, em especial aquele costumeiramente denominado de "construção civil", que desde a década de 60 vinham se beneficiando do incentivo fiscal em questão, vêm se insurgindo contra a modificação legislativa promovida pelo município de Campo Grande, tendo já manejado um pedido administrativo de revisão da legislação apontada, como também anunciado que ingressarão em juízo, questionando o mencionado dispositivo legal, pois acreditam que, por força de interpretação da legislação federal que rege o assunto, fazem jus a continuar valendo-se do benefício fiscal que doravante lhes será retirado.

Esta é a questão que pretendemos enfrentar neste trabalho. Com efeito, se no dizer de Humberto Theodoro Júnior "cabe ao juiz interpretar a lei, pois é pela interpretação que a norma abstrata adquire vida" [5], podemos afirmar extensivamente, sem medo, que cabe a todos os que operam o direito interpretar a lei, visto que uma coisa é determinar pela interpretação o sentido útil e adequado da norma, seu alcance, sua extensão e sua adaptação aos casos concretos, e outra coisa é negar vigência à lei e criar, ex novo, regra contrária à do ordenamento jurídico, para atender o senso pessoal de justiça de um ou de outro setor de interesses ou de influência.

Pois bem. Existem, como veremos, sob o viés da hermenêutica jurídica, várias possibilidades de se examinar a questão posta, sendo que duas delas se destacam: a primeira, a interpretação do fisco municipal que, com base no direito pátrio positivado, bate-se pela prevalência da interpretação literal, expressamente prevista no art. 111 do CTN; e, a segunda, a dos setores econômicos atingidos, em especial o da construção civil, que invocam a história da concessão do dito benefício fiscal para o setor – incentivo este, de fato, presente em todas as leis que trataram do assunto desde a Constituição de 46, e que, inclusive, está previsto em projeto de lei que tramita atualmente no Senado Federal.

Assim, sem nos prender a esta ou aquela opinião, faremos uma tentativa de abordar as várias possibilidades de interpretação do tema proposto, objetivando, em especial, oferecer argumentação para que esta ou aquela linha interpretativa possa reforçar a retórica necessária para convencer o seu auditório em particular ou até mesmo firmar-se perante o auditório universal, visto que é muito provável que os demais municípios brasileiros estejam enfrentando ou irão enfrentar algum dia a questão em exame.


2. Considerações sobre a origem do ISS e a legislação que rege este imposto, necessárias à compreensão da questão.

Os Estados modernos preocuparam-se, sobretudo a partir do sexto decênio do século XX, em substituir o Imposto Geral Sobre o Volume de Vendas que possuíam - cada qual, obviamente, com sua denominação própria - por um Imposto Sobre o Valor Acrescido.

Esse novo imposto, diga-se por oportuno, não é cumulativo, pois consiste basicamente em aplicar aos bens e serviços um imposto geral sobre o consumo exatamente proporcional ao preço dos bens e serviços qualquer que seja o número de transações que intervenham no processo de produção e de distribuição anterior à fase da sua imposição. Assim, embora atingindo várias operações da circulação econômica, o imposto pago na operação anterior é sempre dedutível. Foi a fórmula encontrada para combater os efeitos econômicos deletérios do imposto até então existente que incidia sobre o "volume de vendas", dando também aos "serviços" uma concepção econômica de produto.

O novo imposto sobre o valor acrescido foi rápida e amplamente difundido, com boa aceitação nos países da Comunidade Econômica Européia que, em geral, em uma única lei, instituíram um único tributo sobre a venda de mercadorias e de serviços, destacando-se a da França (Lei n.º 102, de 31 de março de 1967), a da República Federal Alemã (Lei n.º 545, de 29 de maio de 1967), a da Holanda (Lei de 29 de junho de 1968), a da Bélgica (Lei de 03 de julho de 1969), a de Luxemburgo (Lei de 05 de agosto de 1969) e as da Itália (Lei n.º 825, de 09 de outubro de 1971, e Lei n.º 633, de 26 de outubro de 1972).

A América Latina, por sua vez, adotou de pronto a idéia, sendo exemplo disto, entre outras, a legislação do Uruguai (Lei n.º 13.637, de 21 de dezembro de 1967), do Equador (Decreto n.º 469, de 12 de maio de 1970), do Peru (Decreto-lei de 21 de novembro de 1972) e a da Argentina (Lei n.º 20.63, de 27 de dezembro de 1973).

O Brasil, diferentemente dos demais países, optou por onerar as vendas de mercadorias e de serviços com dois impostos diversos: o primeiro, batizado inicialmente de ICM - Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias -, e o segundo de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, ambos criados respectivamente pelos artigos 12 e 15, da Emenda Constitucional n.º 18, de 1965 [6]. Optou ainda por instituir competências tributárias distintas para arrecadá-los: aos Estados, coube o primeiro, e aos Municípios, o último.

A situação anterior à reforma tributária de 1965 evidencia que a prestação de serviços, como atividade tributável, era alcançada pelos seguintes impostos, admitidos pela Constituição de 46: a) Imposto Sobre Transações (estadual), recaindo sobre certos serviços, como hospedagem, construção civil etc; b) Imposto de Indústrias e Profissões (municipal), incidente sobre o efetivo exercício de atividade lucrativa, abrangendo, dentro de sua área, a indústria, o comércio e a profissão, inclusive todos e quaisquer serviços; e, c) Imposto Sobre Diversões Públicas (municipal), sobre os jogos e as diversões públicas.

Após a mudança de regime ocorrida em 1964, adveio a já mencionada reforma tributária, principiada pela Emenda Constitucional n.º 18, de 01 de dezembro de 1965, que objetivou integrar a política tributária existente com a política econômica do novo Governo, esta última voltada, como se sabe, para uma expectativa de desenvolvimentismo econômico e consolidação de uma unidade nacional.

A reforma, como vimos, no que tange a tributação dos serviços, instituiu o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, fazendo com que o mesmo abrangesse os campos de incidência do Imposto sobre Transações, do Imposto de Indústrias e Profissões e do Imposto Sobre Diversões Públicas, existentes na Constituição de 46, que deixaram então de existir.

Assim surgiu o ISS, com a redação dada pelo artigo 15, da Emenda Constitucional n.º 18, de 01 de dezembro de 1965.

Como a discriminação constitucional de rendas tributárias não cria tributo e, sim, distribui competências, o que se pode afirmar é que a Emenda Constitucional n.º 18, de 1965, não instituiu o ISS, tendo apenas possibilitado a sua criação a partir de 01 de janeiro de 1967 pela maioria dos municípios brasileiros.

Em verdade, o ISS surge como uma nova exação dentro do sistema tributário brasileiro, com a área de incidência específica, não coberto diretamente por qualquer outro tributo. O ISS recai sobre os "serviços de qualquer natureza"; trata-se de um tributo novo, com um fato gerador bastante específico, inexistente até então.

É importante, ainda, dizer que a reforma tributária representa um processo complexo que se iniciou com a Emenda Constitucional n.º 18 à Constituição Federal de 1946, prosseguiu com o Código Tributário Nacional (Lei n.º 5.172/66) e com os vários Atos Complementares e Decretos-lei posteriores para culminar com a Emenda Constitucional n.º 1, de 17 de outubro de 1969. Tal processo de reforma ainda não pode ser considerado encerrado, pois sistematicamente tem recebido adaptações e reajustamento. No que tange ao ISS, durante todo esse tempo, nosso ordenamento jurídico sofreu profundas e sucessivas alterações, num ritmo tão acelerado que ninguém poderia acompanhá-lo, inclusive com as novas alterações introduzidas pela Constituição Federal de 1988, que serão adiante examinadas.

Rememore-se que a Emenda Constitucional n.º 18, de 1965, não permitiu, de plano, a implantação do novo imposto por parte dos municípios, pois havia a necessidade de se aguardar a Lei Complementar que iria estabelecer os critérios para a distinção das atividades sujeitas ao ICM e ao ISS.

Em 25 de outubro de 1966, finalmente surge o Código Tributário Nacional (Lei n.º 5.172), disciplinando a matéria, ao traçar as normas gerais de direito tributário. Nele, o conceito de "serviço", para efeitos da incidência do ISS, ficou sendo o seguinte, in verbis:

"Art. 71. (...)

§ 1º. Para os efeitos deste artigo, considera-se serviço:

I – O fornecimento de trabalho, com ou sem utilização de máquinas, ferramentas ou veículos, a usuários ou consumidores finais;

II – A locação de bens móveis;

III – A locação de espaço em bens imóveis, a título de hospedagem ou para guarda de bens de qualquer natureza."

Assim, com fulcro na Emenda Constitucional n.º 18, de 1965, e no Código Tributário Nacional de 1966, os municípios começaram a implantar o novo imposto, enfrentando dificuldades para fazê-lo, em especial os menores, que não contavam com administração fiscal moderna e bem equipada.

A partir de 01 de janeiro de 1967, entretanto, o ISS já era exigido nos mais diversos recantos do País, embora alguns municípios, por dificuldade ou desconhecimento, deixassem de lançar mão da competência fiscal que lhes cabia e era específica.

No início do exercício de 1967, novas normas vieram alterar o Código Tributário Nacional, no que tange o sistemática do ISS, em especial: a) o Ato Complementar n.º 34, de 30 de janeiro de 1967 [7], que ampliou o conceito e a enumeração do que se considerava "serviço" para efeito de cobrança do ISS (art. 3º, alteração 7ª); apresentou novo conceito de atividade mista (art. 3º, alteração 8ª); regulou a base de cálculo do tributo para os casos de atividade mistas e de execução de obras hidráulicas e de construção civil (art. 3º, alteração 9ª) e estabeleceu a alíquota máxima para a cobrança do imposto em relação a certos serviços (art. 9º); b) o Ato Complementar n.º 35, de 28 de fevereiro de 1967, que excluiu as sub-empreitadas, realizadas em obras ligadas ao Poder Público, da incidência do ISS (art. 3º) e altera a regra da base de cálculo do tributo para os casos de execução de obras hidráulicas e de construção civil (art. 4º); e, c) o Ato Complementar n.º 36, de 13 de março de 1967, que trouxe o conceito de "local da operação para efeito de ocorrências do fato gerador" do ISS nos casos de prestação de serviço em mais de um município (art. 6º).

A Constituição de 1967, por sua vez, conservou a competência municipal sobre o ISS, com a seguinte expressão:

"Art. 25. Compete aos municípios decretar imposto sobre:

(...)

II – serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência da União ou dos Estados definidos em lei complementar."

A partir de então - março de 1967 - a Constituição passou a exigir que os serviços que constituíssem hipótese de incidência do ISS fossem definidos em Lei Complementar, sendo que o Código Tributário Nacional não deveria apenas "estabelecer critérios de distensão", mas sim, definir os serviços alcançados pelo ISS.

Posteriormente, surgiu o Decreto-lei n.º 406, de 31 de dezembro de 1968, que estabeleceu normas gerais de Direito Financeiro, aplicáveis aos Impostos Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Sobre Serviços de Qualquer Natureza, revogando, expressamente, todas as disposições relativas ao ICM e ao ISS que contavam do Código Tributário Nacional. De fato, o legislador procurou simplificar as normas relativas ao ISS, deixando-as claras. A hipótese de incidência fiscal passou a ser a prestação de serviços constantes de uma lista, in verbis:

"Art. 8º. O imposto, de competência de municípios, sobre serviços de qualquer natureza, tem como fato gerador a prestação, por empresa profissional ou autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista anexa."

A referida lista legal continha 29 itens. A atividade de "caráter misto" foi suprimida com o estabelecimento de duas regras simples: os serviços incluídos na lista ficaram sujeitos apenas ao imposto municipal dos serviços, ainda que sua prestação envolvesse fornecimento de mercadorias (art. 8º, § 1º); os serviços não especificados na lista cuja prestação envolvesse o fornecimento de mercadorias ficaram sujeitos ao Imposto de Circulação de Mercadorias (art. 8º, § 2º) e a base legal do imposto recebeu novas regras (art. 9º).

No mesmo ano de 1969, nova alteração é concretizada em relação ao ISS. O Decreto-lei n.º 834, de 08 de setembro de 1969, veio alterar o Decreto-lei n.º 406, de 1968, modificando a redação e a regra de alguns de seus artigos (do art. 8º, § 2º; art. 9º, §§ 2º e 3º), inclusive a lista de serviços, que passou a ter 66 itens.

A Emenda Constitucional n.º 01, de 17 de outubro de 1969, de sua parte, ao apresentar a nova discriminação de rendas tributárias, manteve a forma de distribuição do ISS, prescrevendo, in verbis:

"Art. 24. Compete aos municípios instituir imposto sobre:

(...)

II – serviços de qualquer natureza não compreendidos na competência tributária da União ou dos Estados definidos em lei complementar."

O ISS, assim, passou a ter os seus contornos consolidados não só constitucionalmente, mas também na legislação infraconstitucional.

A partir de então, salvo o exame da legislação municipal pertinente, o ISS resume-se, no âmbito nacional, ao regramento estabelecido pela Constituição em vigor e pelo Decreto-lei n.º 406/68, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-lei n.º 834/69. Contudo, o Decreto-lei n.º 406/68, veio a sofrer três substanciais modificações, quais sejam, a que foi trazida pela Lei Complementar n.º 22, de 09 de dezembro de 1974, alterando a redação de seu art. 11; a que foi trazida pela Lei n.º 7.192, de 05 de janeiro de 1984, acrescendo mais um item a lista de serviços (o item 67 – profissionais de relação públicas); e, a mais substancial e de maior importância para o tema objeto deste trabalho, a que foi trazida pela Lei Complementar n.º 56, de 15 de dezembro de 1987, que, pelo seu art. 1º, alterou e substituiu a lista de serviços anterior, passando-a de 67 itens para o considerável número de 100 itens.

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Esta última alteração, aliás, foi a que retirou os serviços de construção civil e obras hidráulicas constantes dos itens 19 e 20 e os remeteu para os itens 33 a 35 da lista de serviços atual, causando toda a confusão interpretativa que hoje existe.

A Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, por fim, ao proceder a discriminação da competência para instituir impostos, manteve a dos municípios em relação ao ISS [8].

Esta é a descrição histórica dos caminhos percorridos pelo ISS até os nossos dias, caminho este que se presta não só para compreender a sua teleologia, mas, sobretudo, para podermos fazer uma análise sobre a dificuldade de interpretação quando se trata de fazê-lo incidir sobre os serviços de construção civil, com ou sem os incentivos fiscais que o acompanham desde sua origem.


3. Possibilidades de interpretação da legislação que rege os incentivos fiscais sobre ISS da construção civil.

Interpretar, como sabemos, é apreender o conteúdo espiritual da norma, seja para fixar-lhe corretamente o sentido, seja para determinar-lhe o respectivo campo de incidência. Assim, cabe àquele que interpreta pesar os elementos envolvidos em determinar o sentido a que se propõe a norma objeto de avaliação, afim de que se veja materializado os ideais do sistema jurídico correspondente e, por conseguinte, os ideais da sociedade que o mesmo regula.

O processo hermenêutico é uma necessidade do direito assim como o direito é necessário à sociedade. Sua aplicação alcança toda e qualquer norma, independente do conteúdo que apresenta, do modo como se expressa e se formaliza e até mesmo da clareza com que expõe seus termos.

Na formulação de Gadamer, "o intérprete não procura aplicar um critério geral a um caso particular: ele se interessa, ao contrário, pelo significado fundamentalmente original do escrito de que se ocupa". [9]

Considerando que a norma jurídica está sempre vinculada à valores, uma vez que regula comportamentos ou determina meios para alcance dos fins, deve-se ter em mente que o problema jurídico deve ser compreendido. [10]

O direito, como ciência do espírito, não se exaure com o conhecimento advindo da compreensão fundada na possibilidade da repetição dos fenômenos, a exemplo das ciências empíricas, capazes de regular com algum rigor a ocorrência de seus fenômenos. Ao contrário, utilizando as palavras de Hans Kelsen em sua Teoria Pura do Direito [11] - com base no ensinamento filosófico de Kant -, o mundo jurídico se regula pelo ser e dever ser, sujeitando-se à compreensão do sentido que ocasiona o agir humano, dentro de um contexto histórico.

Assim, o direito é uma norma individual, uma vez que é dependente das decisões dos juizes para que efetivamente obriguem, sendo apenas parâmetro para a conduta, sem impor qualquer dever, como afirma Margarida Lacombe: "O direito apresenta-se jungido à própria hermenêutica, na medida em que a sua existência, enquanto significação, depende da concretização ou da aplicação da lei em cada caso julgado." [12]

A lei, obra humana e, portanto, passível de falhas, tem a necessidade de ser interpretada mesmo no caso da lei cujo sentido se acha claramente revelado em seu texto. Com efeito, aqueles que convivem com o manuseio da legislação sabem que, por vezes, uma lei aparentemente clara contém sentido que, à primeira vista, não se mostra. O texto legal pode parecer claro e, contudo, possuir um sentido que não se patenteia de imediato. A descoberta das razões históricas e sociológicas da lei, bem como a revelação dos objetivos do legislador, esclarecem um pensamento que não estava expresso em palavra.

Tal orientação, porém, nem sempre foi obedecida ao longo da história. Houve época em que o provérbio in claris cessat interpretatio, isto é, a clareza da lei dispensa a interpretação, prevalecia de maneira absoluta.

Não por menos é que o imperador Justiniano (482-565 da Era Cristã), autor da compilação de leis denominada Corpus Juris Civilis, inseriu a seguinte cláusula no Terceiro Prefácio do Digesto: "Quem ousar tecer comentários à nossa compilação de leis cometerá crime de falso, e as obras que compuser serão apreendidas e destruídas".

Esta norma encontrou, contudo, forte oposição na doutrina, a começar por Ulpiano e Celso. No Digesto, Livro 25, Título 4º, fragmento 1º, § 11, Ulpiano adverte: "Embora claríssimo o édito do pretor, não cabe descuidar de sua interpretação". Celso, por sua vez, afirmava: "Saber as leis não consiste em conhecer-lhes as palavras, mas sua força e poder". [13]

Séculos mais tarde, por sua vez, Frederico II (1712-1786), rei da Prússia, apelidado o Grande, que realizou profundas reformas no comércio, na indústria e na agricultura, promovendo a tolerância religiosa e uma ampla reforma legislativa, ao elaborar seu Corpus Juris Fridericiani, seguiu os passos de Justiniano, proibindo a interpretação do Estatuto Geral da Terra.

Na França, em 1790, um decreto estabelecia que a Assembléia Legislativa seria o único órgão competente para interpretar a lei, criando o chamado referendo legislativo. Os juízes ficavam autorizados a confiar ao legislador a solução dos casos dependentes de interpretação da lei. Mais: os casos que ensejassem contradições da jurisprudência sobre a interpretação da lei aplicável não apenas poderiam, mas deveriam ser levados à apreciação do legislador.

Ainda naquele mesmo ano, foi criado, também na França, o célebre Tribunal de Cassação, que, não integrando o Poder Legislativo, funcionando sim como um simples apêndice deste, tinha por missão cassar toda sentença que ferisse a lei. Somente uma restrição se fazia ao órgão: ele não podia conhecer do mérito das questões propostas.

A repulsa à interpretação da lei também esteve presente no Código Civil Francês de 1804, encomendado por Napoleão Bonaparte aos mais brilhantes juristas de sua época. O próprio Napoleão, diga-se de passagem, legou-nos uma frase célebre, que exemplifica bem o seu pensamento: "Os intérpretes corrompem a lei, os advogados a matam!". [14]

Vale lembrar, entretanto, que, se todas as normas jurídicas merecem a atenção do intérprete, nem por isso se deve interpretar exageradamente. Se a lei é clara, deve o intérprete aplicá-la, revelando seu sentido, porém sem sutilezas inúteis que viriam a complicar, gratuitamente, o entendimento do texto.

O que é interpretar a lei, afinal? Interpretar a lei é determinar o sentido e o alcance desta. Clóvis Beviláqua nos diz que interpretar a lei é revelar o pensamento que anima suas palavras [15]. Como se percebe, ele se refere, expressamente, ao pensamento da lei, à sua alma, e não à sua letra pura e simples.

Interpretar é apreender o conteúdo espiritual da norma, seja para fixar-lhe corretamente o sentido, seja para determinar-lhe o respectivo campo de incidência. Interpretar a lei, enfim, é comprendê-la.

3.1. A dogmática interpretativa no direito tributário brasileiro.

É princípio constitucional geral sumamente conhecido o princípio da legalidade, ou seja, aquele que afirma que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF). Deste importante enunciado, decorre uma significativa premissa do Estado moderno: a da legalidade da tributação - conhecido como princípio da reserva legal -, considerado como regra fundamental do direito público.

A importância deste conceito é baseada no fato de que as constituições de diversos países o fizeram constar em seu corpo, dando essência à organização democrática onde somente o parlamento, como representante do povo, pode criar impostos.

A simples menção da reserva da lei em um caráter geral já levaria a idéia de que ninguém seria obrigado a pagar tributo que não viesse antecedido de lei. No entanto, esse princípio é reforçado em matéria tributária, surgindo o que os autores chamam de princípio da estrita legalidade, inserto no art. 150, I, da CF. [16]

Para se criar ou aumentar um tributo, não é suficiente lei qualquer. Deve a lei considerar também o princípio da tipicidade tributária, definindo o fato cuja ocorrência criará o dever de pagar o tributo, estabelecendo o aspecto mensurável da hipótese de incidência sobre o qual incidirá a alíquota e indicar o sujeito passivo.

A palavra lei, como tantas outras usadas na linguagem jurídica, é plurissignificativa. Ora é empregada em sentido amplo, significando toda e qualquer norma jurídica, ora em sentido restrito, significando somente a norma jurídica produzida pelo órgão ao qual a Constituição atribuiu a função legislativa.

O Código Tributário Nacional, afastando as dúvidas, deu à palavra legislação o significado de lei em sentido amplo: "a expressão ‘legislação tributária’ compreende as leis, os tratados e as convenções internacionais, os decretos e as normas complementares que versem, no todo ou em parte, sobre tributos e relações jurídicas a eles pertinentes" (art. 96).

Em todo o CTN, a palavra lei só é empregada em seu sentido restrito, enquanto a palavra legislação tem o significado abrangente que lhe atribuiu o artigo acima. A interpretação, a cujo propósito editou normas, não é apenas da lei, mas da legislação, como se verifica de seu artigo 107.

A classificação mais duradoura, criada por Savigny [17], estabelece quatro métodos de interpretação, a saber: histórico, lógico, sistemático e literal. O método literal visa compreender a lei em função do sentido e da configuração das palavras no texto. Não quer dizer restringir seu sentido, mas sim estudar sua semântica, sua sintaxe e organização, sob os ditames da fraseologia. É o tipo de interpretação exigida pelo CTN, em seu artigo 111, inciso II, quando a questão versar sobre isenção. [18]

Com esse enunciado, o legislador quis retirar das mãos do juiz possíveis critérios valorativos para aplicar a norma tributária. Não existiria, mesmo para solução de casos difíceis, o marcante poder discricionário do juiz no caso de não haver uma norma exatamente aplicável. Negando, de certa forma, a tradição positivista da função judicial, defendida por Hart [19], que, no caso de não haver uma norma exatamente aplicável, o juiz deve decidir discricionariamente.

3.2. O difícil caso do Decreto-lei 406/68 e suas alterações.

Nos dias atuais, dentro da ordem tributária nacional, temos um caso particularmente interessante como objeto de interpretação, passível de entendimentos conflitantes dependendo da dogmática adotada. É o caso do Decreto-lei 406/68, na parte relativa ao Imposto Sobre Serviços, mais especificamente quanto à incidência do incentivo fiscal aos setores da construção civil e obras hidráulicas.

Após uma ordem progressiva de alterações e evolução necessárias ao direito, mais comum ainda a sistemas pertinentes à ordem econômica, sempre instável, como os relativos aos tributos, o Decreto-lei 406/68 sofreu diversas modificações em seu conteúdo.

Editado em 1968, logo em 1969 sofreu sua primeira alteração pelo Decreto-lei 834, em especial quanto aos artigos diretamente referentes a lista de serviços que trazia anexa. Em 15 de dezembro de 1987, ainda sob a égide da Constituição anterior, foi modificado novamente, desta feita pela Lei Complementar 56, que alterou a lista de serviços existente, incluindo novos itens e reformulando a disposição dos mesmos, sem alterar os artigos que lhes faziam remissão.

Exatamente nesse ponto, com a nova disposição de seus itens, houve uma certa perplexidade de setores da economia quanto à base de cálculo para a cobrança do ISSQN, em especial no caso da construção civil, uma vez que o Decreto-lei 406/68 e o 834/69 conferiam a esse segmento a dedução do valor dos materiais fornecidos pelo prestador dos serviços já tributados pelo imposto, tudo para obtenção da base de cálculo, o que, com o advento da Lei Complementar 56/87, foi omitido, uma vez que o artigo 9º, § 2º, concedia esse benefício fazendo referência aos itens 19 e 20 de uma lista que lhe seguia anexada, e a mencionada Lei Complementar passou a dispor os mesmos nos itens 33 a 35, sem, contudo, alterar a remissão do artigo 9º, § 2º a eles. Mais perplexidade ainda foi o fato de que tal supressão não foi mencionada na exposição de motivos e que os itens agora dispostos sob os números 19 e 20 em muito pouco se beneficiam com as deduções concedidas no caput do artigo, o que, por si só, não justificaria a sua existência legal.

Os interessados nos benefícios fiscais em questão não se quedaram inertes, como já era de se esperar. No entanto, as argumentações em geral apresentadas pelos mesmos até o presente momento não têm alcançado o possível erro do legislador quando da edição da Lei Complementar n.º 56/87, mas sim a questão relativa à recepção ou não do Decreto-lei 406/68 pela Constituição de 1988, bem como questões relativas a interpretações de leis municipais, o que demonstra prática deficiente em levar ao judiciário critérios mais amplos de hermenêutica para solução de casos difíceis, ou, quem sabe, uma impotência do judiciário, refletida da sociedade, em posicionar-se contra os preceitos do sistema jurídico brasileiro ainda predominantemente positivista.

Embora as discussões no âmbito do judiciário ainda sejam escassas, nada impede a doutrina de levantar dúvidas. Assim, se adotarmos como ponto de partida o Código de Napoleão, nada mais nos restaria a não ser privilegiar a interpretação gramatical, considerando o direito como algo pronto e acabado, não cabendo ao intérprete, nem mesmo na função de juiz, contestar o que diz a letra da norma e seu sistema, não importando tão pouco o entendimento de que a interpretação só poderia advir sobre a lacuna da lei, vez que não há que se falar em lacuna no Decreto-lei em análise.

Se, por outro lado, considerássemos toda a história da isenção fiscal que vinha sendo concedida ao setor da construção civil, percebemos que referido benefício vem sendo mantido ao longo da evolução das normas jurídicas, representando uma vontade do grupo social em ver esse setor beneficiado, seja porque promove um objetivo da sociedade, seja porque evita um mal (o desemprego), arcando a sociedade como um todo com sua atividade. Tanto assim o é que, até o advento da Lei Complementar 56/87, o mesmo era expressamente concedido, e que, conforme Projeto de Lei n.º 328/99 [20], em tramitação no Senado Federal, parece ser esta a vontade do legislador.

Desse modo, teríamos uma regra que se confronta com princípios e diretrizes políticas, valores estes que não são necessariamente expressos pelo poder criador da norma específica, mas que fazem referência à justiça e a eqüidade, dando razão de se decidir em determinado sentido sobre a regra.

Estaríamos portanto, considerando valores que a norma em si não realiza, dentro de uma visão positivista. Não há discussão sobre o fato de se essa norma de escalão inferior respeita norma de escalão superior, sendo validada pelo sistema, ou se é reconhecida como coercitiva. Temos uma norma criada formalmente pelo Estado, que já pesou os interesses e princípios envolvidos na sua elaboração, que estabelece uma moldura fechada para sua aplicação correta, independente de ser justa ou não.

Reacendendo as teorias de Savigny, nos inspiraríamos na valorização da tradição, do sentimento e da sensibilidade, em lugar da razão, que não seria capaz de tudo gerar. Teríamos como valor, pois, as manifestações espontâneas, devido à individualidade e variedade do próprio homem, demonstrando ao mesmo tempo um enorme amor ao passado, que não apenas explica o presente, mas também gera motivações para o futuro. Dessa forma, a história possuiria um sentido irracional, de modo que não é possível compartilhar do otimismo iluminista, que vê na razão uma força propulsora e transformadora do mundo, capaz de sanar todos os males da humanidade. O Direito aqui seria visto não como mero produto racional, mas antes um produto histórico e espontâneo peculiar a cada povo.

Para Savigny, considerando a tradição, a ciência do Direito não apenas produz os mesmos efeitos de unidade e sistematização que a codificação, mas ainda tem vantagem sobre esta na medida em que não petrifica o Direito através da uma rigidez cega, tornando-o mais maleável e adaptável. O Direito para Savigny tem suas bases no costume, devendo, pois, exprimir o sentimento e o espírito do povo. Não pode, pois, ser universal e imutável, tampouco criado arbitrariamente pelo legislador. [21]

Nesse ponto de vista, atualmente temos uma norma que vai de encontro a toda a tradição que o sistema jurídico sempre atribuiu à cobrança do ISS ao setor da construção civil, vez que, no decorrer de sua história como regulador desse serviço, considerou como se mais justo fosse a dedução do valor dos insumos e das subempreitadas para estabelecer a base de cálculo do tributo em questão.

Assim, ao interpretar a lei, o juiz deve se colocar em espírito na posição do legislador e repetir em si a atividade daquele que elaborou a norma, para que assim esta surja de novo em seu pensamento,tarefa esta que não consiste na mera constatação de um fato empírico dado pela vontade psicológica do legislador histórico, mas que representa uma atividade espiritual própria, que pode inclusive levar o intérprete para além do que o legislador histórico tenha concretamente pensado e concretamente formalizado.

Para ver atendido este entendimento, toda a argumentação se formula com base em princípios extremamente gerais, princípios que, segundo Dworkin [22], informam as normas jurídicas concretas, de tal forma que a literalidade da norma possa ser desatendida pelo juiz quando viola um desses princípios que, neste caso específico, se considera importante. E estaríamos indo não só contra a literalidade da norma exposta no Decreto-lei 406/68, que não mencionou a dedução para o tributo, mas também contra o princípio expresso no artigo 111 do CTN, que impõe interpretação literal no direito tributário quando se trata de conceder isenção fiscal, tudo em nome da tradição que foi fatalmente interrompida por uma mera formalidade equivocada do legislador, acreditando ser justa sua manutenção.

Dentro dessa perspectiva, poderia se argumentar que o legislador quis interromper esse critério de tributação quando da criação da LC 56/87 (alterou a lista de serviço), mantendo a norma de exceção quanto às regras dos §§ 1º e 3º.

O § 1º não tinha necessidade de ter sido alterado, permanecendo a redação do DL 406/68 quanto ao alcance antes dado para a prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte. O mesmo não ocorreria com o § 3º do artigo 9º, que precisou ser adequado a nova lista de serviços. Nesse sentido, o legislador alterou sua redação unicamente para manter a base de cálculo diferenciada para os serviços dispostos nos itens da nova lista da LC 56/87, pois foram alterados substancialmente a numeração dos itens da lista anterior. Assim, a referida Lei Complementar deu nova redação ao § 3º, in verbis: "... os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa... ", pois os números eram 1, 2, 3, 5, 6, 11, 12 e 17, pela redação anterior.

Com esse entendimento, vislumbrando que o legislador estava atento em alterar a remissão dos itens nos artigos pertinentes, como fez com os parágrafos acima, pode-se concluir que a vontade do mesmo era manter inalterada a redação do § 2º, ou seja, deduzindo o valor dos insumos e subempreitadas somente sobre os itens 19 e 20 da lista que trazia anexa, nos quais passaram a constar serviços de limpeza de chaminés e saneamento ambiental e não mais os serviços relacionados ao setor da construção civil. Sua vontade era tirar o benefício dado a este setor, independente de toda a tradição existente, formalizadas em diversos momentos anteriores e mesmo previstas nas futuras alterações ainda a serem discutidas, como o Projeto de Lei n.º 328/99, que tramita no Senado Federal, já mencionado.

Sustentar essa conclusão não seria necessariamente aceitar que os direitos existentes são apenas os reconhecidos pelos sistema jurídico. Isso em nada confrontaria a existência de direitos morais junto aos direitos jurídicos, uma vez que a intenção do legislador teria sido a extinção da dedução concedida.

Mas, mesmo sem a necessidade de se basear neste aspecto da intenção do legislador, teríamos como conclusão, seguindo esta linha de raciocínio, a retirada do benefício como a resposta correta, pois o juiz sempre encontra a resposta correta no direito preestabelecido, que, no caso, está claro na norma. O juiz carece de discricionariedade e, portanto, de poder político. A verdadeira resposta corresponde à teoria que é capaz de justificar do melhor modo os materiais jurídicos vigentes, ou seja, aceitar a letra fria do Decreto-lei alterado, em conformidade com o princípio da interpretação literal do CTN, não criando na função jurisdicional a de concretização dos objetivos sociais, respeitando a divisão clássica dos poderes preconizados por Montesquieu.

Embora existam no caso contradições entre a norma posta e a tradição, o juiz não tem discricionariedade porque está determinado pelos princípios, no caso, o da interpretação literal das normas tributárias. Deste modo, não se nega a tese de que toda norma está fundada em um princípio e ao mesmo tempo confirma-se a de que os juizes não podem criar normas retroativas.

Caso se admita a discricionariedade judicial, então mesmo os direitos individuais tão defendidos por autores como Dworkin estariam a mercê dos juízes. A tese da discricionariedade supõe retroatividade, como é plenamente sabido.

Esta seria a mesma posição se se adotar a dogmática proposta pela escola da Jurisprudência dos Interesses, que entende que a pesquisa histórica é de suma importância na busca dos valores defendidos pela lei, mas que não se fundamenta em encontrar a vontade psicológica, mas uma vontade normativa condizente com as palavras da lei e seus interesses. [23]

Embora o interesse da sociedade possa ser fortemente no sentido favorável à concessão do benefício fiscal àquele determinado setor econômico, a letra da lei não pode ser colocada de lado, pois o legislador é o intérprete primeiro dos valores vigentes correspondentes à sociedade: "a aptidão da decisão judicial tem, portanto, de ser medida, primeiro que tudo, pelos juízos de valor expressos pela comunidade jurídica na forma da lei. O juiz está subordinado à lei." [24]

Mesmo admitindo a função axiológica do juiz ao decidir onde há lacunas, o caso em questão não se coaduna com ela, pois a expressão da lei é clara e o juiz está obrigado a obedecer o direito positivo, como ensina Recaséns Siches. [25]

A disputa de interesses que se apresenta aqui põe de um lado o setor da construção civil se se levar em consideração a tradição e colocar-se contra a letra da lei e, do outro a sociedade, que, embora busque ver realizado os interesses de justiça, necessita da segurança jurídica nas relações que cria, o que lhe impossibilita compactuar com qualquer decisão do judiciário que vier a ser contrária à norma formalizada. Ao juiz a disputa entre as partes mostra um conflito de interesses, mas a valoração estabelecida pelo legislador deve prevalecer sobre a valoração individual do magistrado, sobretudo em casos como o que está posto em questão.

Dentro dessa aplicação do valor na decisão judicial, e na tentativa de fazer prevalecer a idéia de que o tributo é também fruto de um processo encadeado no decorrer do tempo, podemos reconhecer o direito como parte de um campo do conhecimento que tem por referência básica a cultura, um somatório de crenças e tradições transmitido de geração em geração, a ponto de produzir valores aceitos. Esse é o entendimento da Jurisprudência dos Valores.

Pode-se encontrar nesse valor os fenômenos efetivamente ocorridos e que demonstram um interesse geral. É um valor que de fato é reconhecido pela comunidade cultural a qual pertence o julgador do caso e que é constatado através da experiência, embora não formalmente revestido de validade normativa.

Estaríamos assim considerando o direito como um elemento da experiência compreendido por meio de sua idéia, que não pode ser diferente da idéia de justiça, um fenômeno cultural que busca realizar o justo e se refere a realidade por valores, com ensina Radbrush [26].

"Compreender uma norma jurídica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance. A sua aplicação requer o valorar do caso a julgar em conformidade a ela, ou, dito de outro modo, acolher de modo adequado a valoração contida na norma ao julgar o ‘caso" [27].

Para se adotar a teoria de Robert Alexy [28], por sua vez, seria necessário fazer-se uma distinção entre princípio e regra, na qual ambas são normas jurídicas. Segundo o autor, o critério mais freqüentemente utilizado é o da generalidade, onde os princípios são normas com alto grau de generalidade e as regras, com baixo grau.

No caso em exame, podemos entender a existência de uma regra que fere pelo menos um princípio geral, princípio este que pode ser cumprido em diferente grau e que a medida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais mas também das possibilidades jurídicas.

A questão torna-se então saber se este princípio tem a possibilidade jurídica de ser aplicado ao caso concreto, uma vez que a força da regra no caso é grande. Juntamente a isso, teríamos ainda o conflito de princípios, entendendo que a necessidade de interpretação literal não pode ser preterida.

Assim, ocorre a colisão de princípios, uma vez que o exercício do direito concedido ao ente público se confronta ao direito, em tese, adquirido e ainda válido do setor da construção civil, originando dois juízos de dever-ser jurídico contraditórios.

Teríamos então que pesar os princípios confrontados e determinar sob quais condições um precede ao outro e estabelecer qual irá ceder, sem que se lhe declare a invalidade ou inclua nele uma cláusula de exceção.

Claro que todas essas argumentações parecem ruir diante da clareza da norma sobre o tributo em questão e da explícita determinação do CTN de como a interpretar. No entanto, se aceitarmos o direito não como uma simples disposição jurídica, mas consistente em instituições jurídicas, considerando suas origens e evoluções, compactuaríamos na recusa do dogma legalista e, compromissados com a justiça, caminharíamos, se fosse o caso, inclusive, no sentido contrário à lei.

Caso optássemos pela aceitação do Direito Livre, teríamos o juiz como um elemento que não está fundado em leis, mas que sabe avaliar fatos presentes na sociedade, e temos o Estado como criador de normas que geralmente não coincide com o direito da sociedade.

Assim, a letra da lei, além de correr o risco de ser injusta, proporciona a instabilidade ao invés da segurança, pois não acompanhou o interesse da sociedade.

Talvez, ao se declarar essas diversas possibilidades de fazer coincidir a norma relativa ao tributo, tentando demonstrar que a sua vontade implícita não se exaure no texto literal, esteja-se preterindo uma tradição jurídica muito maior que o benefício dado ao longo do tempo para o setor da construção civil e maior ainda que conceitos de como se alcançar a justiça, ou seja, que todo o sistema jurídico ainda se faz sentir como fundamentado na idéia legada por Kelsen e seu formalismo exposto na Teoria Pura do Direito.

Segundo esse entendimento, nosso sistema jurídico tem como dogma estrito a lei. A noção de justiça está baseado na idéia de segurança jurídica, e a interpretação correspondente seria apenas "uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior" [29]. Busca-se, assim, responder à questão de saber qual o conteúdo que será dado a uma norma individual aplicada a um caso concreto.

Para Kelsen, a função da ciência do direito é bem mais restrita que a dada pelas escolas anteriores. Sua preocupação primordial fixa-se na questão da criação, aplicação e vigência da lei, e isso compreende o esquema piramidal que desenvolveu, onde a norma do escalão superior determina a do escalão inferior, embora não de forma completa, pois sempre existe uma margem que possibilita várias formas de executá-la, a cargo do aplicador.

Assim, temos um problema maior que a simples interpretação do DL 406/68.

Como já foi dito, o Decreto-lei original e todas as suas alterações posteriores se encontram no período temporal anterior ao advento da Constituição Federal de 1988, logo, toda interpretação deve considerar as novas normas e princípios estipulados neste novo ordenamento jurídico.

Com o advento da atual carta política, foi estabelecida nova competência para cada ente público da federação, e nessa distribuição, a Constituição proibiu a concessão de isenções pela União Federal de tributos que se instituem por competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (artigo 151, III). E é exatamente isso o que faz o Decreto-lei 406/68: a união concede isenção em tributo que não é de sua competência.

No entanto, a interpretação dos tribunais tem sido no sentido de não aceitar essa disposição para o Decreto-lei em questão. Veja-se que, conforme manifestação no Recurso Extraordinário 170.662-7/PR, o Ministro Néri da Silveira entende que a vedação não teve o alcance de revogar automaticamente as isenções em curso.

Mas isso em pouco altera a situação quanto à tributação do ISS determinada no Decreto-lei 406/68 nos dias de hoje. Isso porque o artigo 41, § 1º, do ADCT, determina a reavaliação de todos os incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, considerando-os revogados se não confirmados até dois anos após a promulgação da Constituição, ou seja, até 05 de outubro de 1990.

Dentro dessa nova ordem jurídica, torna-se praticamente impossível buscar um modo de interpretação sobre o Decreto-lei 406/68 na tentativa de vê-lo ainda deduzindo a tributação do ISS para o setor da construção civil, uma vez que sua validade foi comprometida pelo decurso do tempo.

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Sobre o autor
Sergio Fernandes Martins

Procurador Geral do Município de Campo Grande/MS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Sergio Fernandes. O incentivo fiscal sobre o ISS da construção civil após o advento da Constituição de 1988:: como interpretar?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 406, 17 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5570. Acesso em: 24 abr. 2024.

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