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Valoração da prova e livre convicção do juiz

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12/08/2004 às 00:00
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VI) DECISÃO E FUNDAMENTAÇÃO:

Deixando-se deliberadamente de lado a discussão acerca da proibição da valoração de provas cuja produção seja proibida, partimos de um conjunto probatório pronto a ser utilizado pelo julgador, cuja eficácia para os fins do processo seja já incontroversa.

A partir daí se desenrola o processo de apreensão, avaliação e valoração da prova, de molde a criar no espírito do julgador a certeza que o há de levar à decisão, seja num ou noutro sentido. FIGUEIREDO DIAS assinalava a componente de personalidade que existe na convicção a ser formada, referindo-se à atividade cognitiva que se há de desenvolver, eivada de elementos "racionalmente não explicáveis" e mesmo componentes "puramente emocionais" [35].

De fato, o ato decisório decompõe-se em duas fases distintas: a primeira, a fase decisória propriamente dita, em que atuam as componentes psicológicas e instintivas referidas por FIGUEIREDO DIAS; a segunda, a fase de fundamentação, como forma de justificar a decisão tomada, em que estão presentes critérios de lógica na argumentação e demonstração da validade da decisão proferida [36].

Referindo-se a esta bipartição, SALAVERRIA oferece exemplo que vale a pena reproduzir: o juiz de primeira instância absolve Tício da acusação de ter matado Caio porque – segundo ele – um homem com aparência tão beatífica não pode fazer nada de mal; por sua vez, o juiz de apelação o condena, sob o argumento de que pessoas sem filhos são necessariamente egoístas e deles é de se esperar sempre o pior [37]. De fato, um dos dois proferiu decisão correta, porque ou Tício é inocente ou é culpado. Mas a justificação da decisão é, em ambos os casos, incorreta.

Com relação à primeira fase do processo decisório, trata-se de matéria afeta à Psicologia, a ser tratada possivelmente no mesmo domínio do estudo da criatividade. Dois são os componentes a serem aqui considerados: o perfil psicológico do julgador, que condiciona sua concentração na atividade de cognição e seleção do material que repute aproveitável para a atividade decisória e seu "estado de espírito" relativamente ao "conhecimento da verdade".

Do estudo do primeiro componente se ocupou ALTAVILLA, em seu "Psicologia Judiciária". No capítulo dedicado ao estudo do juiz como um dos atores no palco formado pelo desenrolar do processo penal [38] nota que, para o observador voltado para a averiguação dos motivos e das circunstâncias em que ocorreu um delito, a atividade de seleção de elementos que repute relevantes é inibitória quanto à percepção espontânea daqueles outros elementos que pareçam estranhos à sua indagação. E conclui que esta atividade é condicionada pelo temperamento da pessoa. ALTAVILLA traça um perfil psicológico do juiz criminal, identificando vários tipos distintos de personalidade que influenciam na atividade de percepção e seleção dos fatos. Dentre os perfis identificados preponderam o do tipo analítico, que tem uma compreensão do conjunto mas se deixa levar por detalhes que acabam por desviá-lo de uma síntese conclusiva, e o sintético, que tende a generalizar situações e a desprezar pontos essenciais em benefício de sua experiência, confundindo analogias com identidades.

Do estudo do segundo componente ocupou-se MALATESTA, no volume I de seu "A Lógica das Provas em Matéria Criminal" [39]. A respeito do convencimento do juiz, diz que este deve ser natural, "tal como surge da ação genuína das provas" e não artificial, produzido por razões "estranhas à sua intrínseca e própria natureza". Para ele estas razões estranhas, que perturbavam a naturalidade do convencimento, originavam-se do exame indireto daquelas: o fato de o juiz basear seu convencimento no exame das razões das partes, e não das provas em si, ou de ter de atribuir a uma prova valor prévia e legalmente estabelecido e, finalmente, razões surgidas "da própria alma do magistrado", em que sua vontade é influenciada por seu temperamento ou suas paixões.

Nota que a vontade pessoal do julgador pode fazê-lo afastar determinados detalhes e se fixar em outros, e que a força do temperamento, das paixões e inclinações podem facilmente conduzir a falsos juízos. Por fim, cita PLATÃO e concorda que, para se chegar à verdade, há de se expurgar o espírito de paixões [40].

Com relação à segunda fase do processo decisório, importa notar que a fundamentação é a justificação da decisão, quando o julgador a sustenta, lançando mão de elementos fáticos e jurídicos de molde a embasar a conclusão. Portanto, a justificação não é, como prega a concepção psicologista, uma mera descrição dos processos mentais que levaram o julgador a decidir de determinada maneira; é, antes, exercício de lógica jurídica [41].

A justificação presta-se a dúplice papel, quais sejam, o de convencer as partes e o público da justiça da decisão e possibilitar o controle do ato decisório, na instância ad quem, pela via recursal. Pode-se ainda acrescentar que, sendo o juiz detentor de um poder, num regime democrático deverá prestar contas do modo como dele se desincumbe, o que deverá fazer através da motivação de sua decisão. Não por outros motivos o nº 2 do art. 374 do Código de Processo Penal português exige a fundamentação da sentença como pressuposto de sua validade, não se confundindo esta com a simples enumeração dos meios de prova de que se utilizou o julgador para decidir.

Portanto, quando se diz que o princípio da livre convicção supõe a utilização de critérios lógicos e racionais de apreciação, de acordo com as regras de experiência etc. [42], o que se quer dizer é que a fundamentação da decisão é que deve ser lógica e racional, eis que o ato decisório, em si (os processos mentais que levaram à decisão), foge ao âmbito do direito e, portanto, não é passível de controle.


VII) LIMITAÇÕES À LIVRE CONVICÇÃO:

Acima se deixou claro que modernamente as legislações estabelecem como regra na questão da valoração da prova o sistema da livre convicção (o que pressupõe a motivação da decisão pelo julgador). Mas exceções existem, quando a própria lei pré-estabelece um valor a determinadas provas, desta forma obrigando o julgador.

Neste sentido, estas exceções podem ser classificadas, a princípio, como limitações ao livre convencimento do julgador, uma vez que o uso que na prática fará daquele dado probatório específico é-lhe impingido. O Código de Processso Penal português estabelece a presunção de validade dos documentos autênticos ou autenticados, da confissão sem reservas do argüido e da prova pericial. Dos dois últimos nos ocuparemos agora, vez que a presunção de validade de documentos autênticos ou autenticados não apresenta, a princípio, maiores dificuldades.

VII.I) Confissão do Argüido:

O art. 344 do Código de Processo Penal português estabelece dois regimes distintos no que diz respeito à confissão do argüido na Audiência de Julgamento:

a) a confissão integral e sem reservas, em delitos apenados com até três anos de prisão;

b) a confissão integral em crimes apenados com mais de três anos de prisão, a confissão não integral, ou com reservas, ou de molde a causar dúvidas quanto à veracidade dos fatos ou sanidade mental do acusado.

No primeiro caso, o n.º 2 do referido artigo do Código de Processo Penal determina se considerem como provados os fatos confessados, passando-se, de imediato, às alegações orais e determinação da sanção aplicável, no caso de condenação.

Pode-se dizer que, neste caso, está-se na presença de uma clara limitação ao sistema de livre convicção do juiz. Considere-se, no entanto, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.10.95 [43]:

SUMÁRIO:

I. A confissão em processo penal pode revestir duas modalidades: a) a confissão integral e sem reservas e b) confissão parcial e com reservas.

II. Em qualquer das hipóteses, o tribunal mantém intacta a sua liberdade e, consequentemente, pode admitir ou não a confissão.

Longe de estar em desacordo com o dispositivo legal, o que o julgado estabelece é que, evidentemente, é lícito ao órgão julgador aferir dos requisitos formais do ato, seja no que diz respeito ao consentimento de vontade do argüido, seja de sua condições de higidez mental, e até mesmo aferir da veracidade da confissão: havendo motivos bastantes para duvidar da mesma, deve o órgão julgador determinar a produção de provas no interesse do esclarecimento da verdade, é o que estabelece a letra b do n.º 3 do art. 344 do CPP.

Logo, não se pode dizer que o art. 344 do Código de Processo Penal estabeleça uma limitação absoluta à livre convicção do julgador; antes, traça diretrizes, com base nas quais este terá parâmetros para valorar essa prova.

Interessante seria indagar até que ponto a referida disposição legal, que parece constituir tentativa de conciliação entre sistemas que admitem plenamente a confissão como prova bastante – como o anglo-americano (mais no sentido de negociação, bem entendido), e sistemas que não lhe emprestam esta amplitude probatória – como era o caso do anterior regime do Processo Penal português (art. 174 do Código de Processo Penal de 1929) ou do Processo Penal brasileiro (art. 197) [44] – não se presta também a elemento de política criminal.

O julgamento de delitos de menor gravidade - e, por isto mesmo, apenados mais brandamente - dispensaria a produção de provas, podendo- se partir para a suspensão da execução da pena de prisão (art. 50 do Código Penal português). Esta providência poderia implantar um regime de negociação entre acusação e defesa, que estaria ainda mais evidente se se estendesse o momento processual de decretação da suspensão condicional do processo até a Audiência de Julgamento, evitando-se, assim, a condenação [45].

A estas propostas se podem opor críticas no sentido de que o argüido poderia ser incentivado a assumir a culpa pela prática do delito (até mesmo para não se percorrer todos os trâmites processuais próprios da instrução criminal), desta maneira renunciando à garantia da ampla defesa. No entanto, deve-se ter em conta que a administração da justiça criminal torna-se hoje cada vez mais complexa pelo aumento incontrolado da criminalidade, tendência que se verifica por toda a parte.

VII.II) Prova Pericial:

O art. 166 do Código de Processo Penal fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. Quer dizer que a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do art. 165).

O posicionamento atual do Código de Processo Penal vem de posição defendida por FIGUEIREDO DIAS, para quem os dados de fato do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador – "que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer" – enquanto que o juízo científico expendido só é passível de crítica "igualmente material e científica". Exceções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar sua divergência [46].

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É de se presumir não detenha o juiz conhecimentos técnicos suficientes para argumentar validamente no nível da fundamentação constante do parecer técnico. Mas, como homem, pode não estar convencido da conclusão do perito, ou, até mesmo estar convencido do contrário. Até que ponto é válido impor-se-lhe a conclusão técnica? Não é este, precisamente, o maior motivo de crítica ao sistema da prova legal, que norteia esta disposição referente à prova pericial como exceção ao princípio do livre convencimento?

A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de fato em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.

Negado valor ao laudo pericial por alguma dessas razões, as conseqüências são diferentes.

a)quanto à validade, deve-se aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais. Assim, por exemplo, se as partes foram notificadas do despacho que ordenou a prova (n.º 2 do art. 154), ou se os peritos prestaram o devido compromisso (n.º 1 do art. 156).

Também fica a cargo do julgador examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.05.95, no Recurso n.º 47783, confirmou decisão do Tribunal Colectivo Judicial da Comarca de Faro que negava validade a um exame pericial sobre impressões digitais dos argüidos colhidas no local do arrombamento, pondo em dúvida o local da colheita e a forma como os vestígios foram colhidos [47]:

SUMÁRIO:

A presunção a que alude o n.º 1 do art. 163 do Código de Processo Penal apenas se refere ao juízo técnico-científico e não propriamente aos factos em que o mesmo se apóia. Assim, a necessidade de fundamentar-se a divergência só se dará quando esta incide sobre o juízo pericial.

Da fundamentação do Acórdão sob exame:

"Poderá, ainda, acrescentar-se que o Tribunal recorrido, numa outra óptica, sequer chegou verdadeiramente a pôr em causa o juízo científico constante do exame, mas apenas o sítio e o modo como os vestígios foram colhidos, chamando sobretudo a atenção para o facto de que a inspeção foi feita em casa do ofendido, estando este ausente.

Portanto, sob este prisma, o Tribunal duvidou da forma como foram obtidas as impressões digitais dos argüidos, mas aí estava no campo da livre apreciação da prova, nos termos do art. 127.º, do Código de Processo Penal, o que está fora da sindicância deste Tribunal (neste sentido, o Acórdão deste Tribunal de 28-05-92, no processo 42.748).

Não há, portanto, que assacar à decisão recorrida qualquer nulidade ou erro notório na apreciação da prova, pelo que o recurso do MP não merece acolhimento."

Acerca da decisão podem-se fazer duas observações: a primeira é que a situação foi tratada pelo Supremo Tribunal de Justiça como divergência da matéria de fato, quando na verdade acreditamos se tratar de defeito no procedimento do exame, o que se haveria de resolver no âmbito das nulidades.

Ainda no domínio dos vícios de forma, a doutrina não parece levar em conta essa possibilidade, possivelmente porque tais defeitos sejam passíveis de correção. Mas que acontece se, por exemplo, o laudo pericial sobre que se funda a decisão não vier assinado, possivelmente por esquecimento, ou se vier rasurado? A solução passa, obrigatoriamente, pelo examinar se se trata de mera irregularidade ou de nulidade, e, neste último caso, se é sanável ou não.

A segunda observação que se pode fazer do Acórdão é que a conseqüência da divergência do Tribunal recorrido com o laudo pericial sub judice foi a sua não valoração, e conseqüente absolvição dos argüidos.

a)com relação à matéria de fato em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não foi posto em causa o juízo de caráter técnico-científico expendido pelos peritos. É a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163 do Código de Processo Penal, e a questão que ora se examina não é a da sua validade, mas a da ampliação do seu âmbito de aplicação.

b)quanto à conclusão em si, esta pode se cingir efetivamente ao âmbito da matéria posta a exame ou pode excedê-la. No primeiro caso, a conclusão obriga o julgador, que só pode dela divergir se fundamentar, nos mesmos moldes (ou seja, lançando mão das regras, conceitos e procedimentos afetos à matéria) a sua divergência. No segundo caso, a conclusão pode ser refutada por ele, por não se tratar de juízo técnico-científico.

Considere-se o exemplo de um homicídio em que o laudo constata que um determinado número de projéteis alojou-se num determinado órgão da vítima, causando hemorragia, e conclui dizendo que esta hemorragia foi a causa da morte. Esta conclusão é científica, é baseada nos conhecimentos de anatomia do legista, que considerou que o estrago causado pelo projétil naquele órgão foi de molde a torná-lo imprestável para a sua função. Mas a situação seria diferente se o perito concluísse que, pelo número de projéteis e locais de entrada e saída dos mesmos, não houve por parte do agente a intenção de matar.

Neste último caso a conclusão extrapola o domínio da técnica médica, o que vem sendo decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, como no Acórdão de 03-07-96, no Recurso n.º 48.728 [48].

SUMÁRIO:

I-O juízo médico-legal sobre a intenção de matar não é um juízo técnico, científico ou artístico, nem juízo de técnica médica, mas apenas um juízo de probabilidade sobre essa intenção. II- Por isso, não lhe é aplicável o disposto no art. 163 do C. P. Penal.

Ainda, o Acórdão de 25-10-95, no Recurso n.º 47.028, em que o perito, após constatar a espécie de debilidade mental de que sofria o argüido, considerou-o como incluído no conceito de "perigosidade" [49]:

SUMÁRIO:

Aceitando o tribunal colectivo o juízo científico quanto à inimputabilidade do argüido tem, todavia, o poder de livre apreciação quanto aos elementos de facto que revelem a sua perigosidade.

Assim fundamenta o STJ o seu entendimento a respeito:

"O argüido é, portanto, um indivíduo com uma personalidade anormal, do tipo debilidade mental.

Formulado este juízo científico, do qual o Tribunal Colectivo não discordou, o senhor perito emitiu, por fim, este parecer:

‘Em nosso parecer é de prever que o examinando persista no comportamento anti-social que vem manifestando e que a falta de sentido crítico não deixa corrigir, o que permite a sua inclusão no conceito de perigosidade.’

(...)

O Tribunal Colectivo manteve intacto o juízo científico quanto à perturbação mental de que o argüido sofre e quanto à sua inimputabilidade.

Discordou do perito apenas quanto á perigosidade riminal.

É que, para a aplicação da medida de segurança não basta a declaração de inimputabilidade e a prática, pelo inimputável, de factos previstos como crime. É necessário que elementos de facto revelem a perigosidade.

Quanto a esses elementos de facto o Tribunal Colectivo tinha o poder de livre apreciação. Em resultado dessa livre apreciação chegou a esta conclusão de facto: o argüido ‘é considerado pessoa pacífica e não violenta’."

Vê-se que ambas decisões tratam a questão como divergência de fatos que embasam a conclusão a que chegou o laudo pericial, e não, como parece mais apropriado, como uma extrapolação do âmbito técnico científico do parecer.

Uma outra questão pode ser posta: dos fatos em que se fundamenta o parecer técnico pode haver discordância? Em se tratando de fatos, qual a forma de demonstrar esta discordância? No exemplo anteriormente citado, se fossem menos projéteis a hemorragia se teria verificado ou não? Se tal ou qual órgão não tivesse sido atingido, a hemorragia seria fatal ou não?

Veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-11-94, no Recurso n.º 47.275: [50]

SUMÁRIO:

I-

II-

III-

IV- Assim, concluindo-se no relatório pericial que o argüido tem uma imputabilidade diminuída por ser portador de um síndroma depressivo crônico, com impulsividade para se refugiar no uso excessivo de álcool, que potencia a sua tendência para actuar sem pensar, não pode o tribunal decidir que não existe tal imputabilidade diminuída, "por os pressupostos referidos serem comuns à generalidade dos cidadãos que, dia a dia, são julgados nos tribunais e, designadamente, os que têm hábitos alcoólicos."

O laudo pericial não acatado pelo tribunal recorrido dizia que a impulsividade do argüido para se refugiar no uso excessivo de álcool potencia a sua tendência para atuar sem pensar; o tribunal a quo considerou que o uso do álcool, neste caso, não autorizava a se falar em imputabilidade diminuída, pelos fundamentos constantes acima. Esta conclusão não foi aceita pelo órgão recursal.

Digamos que a questão se prendesse não à imputabilidade do argüido, mas ao uso de álcool: se se pudesse concluir, como o argüido bebe, sofre de distúrbio mental, e em virtude disto sua imputabilidade é diminuída. Ora, a divergência aí se prenderia ao uso da bebida. O argüido bebe ou não bebe em demasia? Como provar este fato? Através de prova testemunhal? E, neste caso, a prova testemunhal pode invalidar o laudo pericial (em que se realizaram eventuais medições do nível de álcool no sangue)?

Cremos só poder ser esta a hipótese de casos inequívocos de erro a que se refere FIGUEIREDO DIAS, em passagem citada anteriormente, porque se se tratasse de conclusão da perícia em si, isto quereria dizer ser lícito ao julgador discordar dela, sem conhecimento técnico para tanto (e sem poder realizar nova perícia sobre o mesmo objeto ou sobre os mesmos aspectos dos considerados na perícia de que discorda [51]) possibilidade, já se viu, negada pelo art. 163 do Código de Proceso penal.

Finalmente, com relação à técnica judicante no que diz respeito à valoração da prova pericial, em nome de uma sistematização da matéria pudessem possivelmente os tribunais se referir a divergência de fato e de mérito – para não dizer de direito – abarcando a primeira denominação tudo aquilo que não se referisse à conclusão técnico-científica ou artística a que chegou o perito.

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Sobre o autor
Getúlio Marcos Pereira Neves

juiz de Direito em Vitória (ES), mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Getúlio Marcos Pereira. Valoração da prova e livre convicção do juiz. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 401, 12 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5583. Acesso em: 24 abr. 2024.

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