Politicamente correto: mordaça ou civilidade?
Ouço muito, por parte de adultos e adolescentes — sendo os últimos doutrinados, e não ensinados ao livre pensar —, sobre 'politicamente correto'. O termo tem sido associado à ditadura comunista. No afã para cercear a liberdade de expressão, "os comunistas criaram este mecanismo protetivo", assim dizem os que são contra o 'politicamente correto'. E o que é 'politicamente correto'?
Para alguns, é ser e agir 'politicamente correto' é não ofender qualquer pessoa; é o respeito às diferenças. Para outros, é uma forma de cercear a liberdade de expressão e de pensamento. O assunto ficou tão sério que, em 2004, foi editado Politicamente Correto & Direitos Humanos. (1)
Transcrevo algumas partes da cartilha:
"A Secretaria Especial dos Direitos Humanos, vinculada à Presidência da República, com vistas a colaborar para a construção de uma cultura de direitos humanos, apresenta a cartilha “Politicamente Correto e Direitos Humanos” como forma de chamar a atenção de toda a sociedade para o que o historiador Jaime Pinsky chamou de “os preconceitos nossos de cada dia”.
Todos nós – parlamentares, agentes e delegados da polícia, guardas de trânsito, jornalistas, professores, entre outros profissionais com grande influência social – utilizamos palavras, expressões e anedotas, que, por serem tão populares e corriqueiras, passam por normais, mas que, na verdade, mal escondem preconceitos e discriminações contra pessoas ou grupos sociais. Muitas vezes ofendemos o “outro” por ressaltar suas diferenças de maneira francamente grosseira e, também, com eufemismos e formas condescendentes, paternalistas.
A ideia do título, “Politicamente Correto”, tem, em parte, um sentido provocador. Foi escolhida com o objetivo de chamar a atenção dos formadores de opinião para o problema do desrespeito à imagem e à dignidade das pessoas consideradas diferentes.
Não queremos promover discriminações às avessas, “dourando a pílula” para escamotear a amargura dos termos que ofendem, insultam, menosprezam e inferiorizam os semelhantes que consideramos “os outros”. Ao contrário, neste glossário, apresentamos em primeiro lugar justamente as expressões pejorativas, para depois comentá-las. Com ele, queremos incentivar o debate, fomentar a reflexão, inclusive pela razão simples de que, para alguns de nossos interlocutores, nós é que somos os “diferentes”."
(...)
Africano – Termo relativo à África, aos seus naturais e habitantes. Sua utilização genérica muitas vezes serve para negar a diversidade de países e povos daquele continente ou para discriminá-los, em geral, inferiorizando.
Aidético – Termo discriminador dos portadores do vírus da Aids, ou Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (HIV). O correto é chamar a pessoa nessa condição de “HIV positiva” ou “soropositiva”, quando não apresenta os sintomas associados à doença, e “pessoa com Aids” ou “doente de Aids”, quando ela já tem aqueles sintomas.
Baianada – Expressão pejorativa que atribui aos baianos inabilidade no trânsito e em outras atividades. Trata-se de um preconceito de caráter regional e racial, ao lado de outros como o que imputa a malandragem aos cariocas, a esperteza aos mineiros, a falta de inteligência aos goianos, a orientação homossexual aos gaúchos etc.
Baitola – Palavra de origem nordestina que, junto com “bicha”, “boiola” e outras é utilizada para depreciar os homossexuais. Em respeito às pessoas que sentem atração ou mantêm relações amorosas ou sexuais com pessoas do próprio sexo, utilize as seguintes identificações: gay – para homens e mulheres; entendido (a) – para homens e mulheres; lésbica – para mulheres; travesti e transexual – para transgêneros; bissexuais – para homens e mulheres.
Branquelo – Por incrível que pareça, existe no Brasil preconceito racial contra pessoas brancas. Mais fortemente, contra membros das colônias européias no Sul do País. “Branquelo” e “branquelo azedo” são duas das expressões pejorativas contra os brancos.
Burro – Xingamento dirigido a quem se atribui falta de inteligência. Conferir às pessoas supostas características de animais é um dos recursos mais comuns para desqualificá-las.
Cabeça chata – Termo insultuoso, racista, dirigido contra os nordestinos, em especial, os cearenses.
Crioulo – Antiga designação do filho de escravos, hoje é um termo pejorativo e discriminador do indivíduo negro ou afrodescendente.
De menor–“De menor” ou “menor” são expressões carregadas de forte preconceito e discriminação, geralmente associadas às crianças e adolescentes pobres, negras, em situação de rua ou que cometem atos infracionais. O termo “menor” constava do antigo Código de Menores, substituído em 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Desde então, a palavra foi banida do vocabulário dos defensores dos direitos da infância. Palavras adequadas: criança, adolescente, garoto (a), guri (a), moço (a), menino (a), jovem, piá etc.
Encostado – Forma pejorativa de chamar o aposentado, o trabalhador licenciado por doença ou incapacidade, e também o desempregado.
Gilete – Expressão depreciativa das pessoas cuja orientação sexual é dirigida tanto a homens como a mulheres. O termo adequado é bissexual
Ladrão – Atualmente, o termo é mais aplicado a indivíduos pobres. Os ricos são preferencialmente chamados de “corruptos”, o que demonstra que até os xingamentos têm viés classista.
Mulato – Filho de mãe branca e pai negro, ou vice-versa. Mestiço de branco, negro ou indígena, de cor parda. Originariamente, na língua espanhola, a palavra se referia ao filhote macho do cruzamento de cavalo com jumenta ou de jumento com égua, daí a sua carga pejorativa. Transposto para o português já com o sentido de mestiço, o termo serviu à ideologia do branqueamento da raça negra e entrou no imaginário popular, pela literatura nativista, para designar a pessoa sedutora, lasciva, inzoneira, sonsa, cheia de artimanhas ditas “tropicais”, outro estereótipo.
Mulher da vida ou mulher de vida fácil – Eufemismos para caracterizar a profissional do sexo, prostituta.
“Mulher no volante, perigo constante” – Frase preconceituosa contra as mulheres, a quem se atribui menos habilidade no trânsito em comparação com os homens, contrariando, aliás, os levantamentos estatísticos.
Peão – O trabalhador braçal, do campo ou da cidade. O termo tem conotação pejorativa quando é utilizado para inferiorizar alguém na hierarquia das classes sociais, como na frase “Isso é coisa de peão”, para significar que se trata de atitude de alguém rude, bruto, “inculto”.
Pobre – Embora se refira à condição econômica de quem não dispõe dos meios necessários para garantir suas necessidades básicas de moradia, alimentação e vestuário, esse termo, óbvio, é também utilizado para inferiorizar as pessoas, como se pobreza fosse um fenômeno natural e não uma construção social. O conceito correto de pobreza é relativo às condições econômicas e sociais médias do meio em que o indivíduo considerado vive. Uma pessoa que recebe salário mínimo pode ser pobre numa grande cidade por ter rendimento inferior ao que necessita para pagar o aluguel e a cesta básica. Outra pessoa com o mesmo rendimento, numa cidade interiorana ou na zona rural, pode não estar em situação de pobreza, por não depender exclusivamente de sua renda pessoal, ou por contar com uma rede de proteção social, formada pelos parentes, por exemplo. Não se pode considerar pobre uma comunidade indígena que vive em sua terra tradicional, de acordo com os seus costumes ancestrais. Por outro lado, é pobre outra comunidade indígena, que foi expulsa de sua terra e obrigada a viver na periferia de um centro urbano, mesmo que as suas casas estejam equipadas com geladeiras, televisores e outros equipamentos modernos.
Preto de alma branca – Um dos slogans mais terríveis da ideologia do branqueamento no País, que atribui valor máximo à raça branca, e mínimo aos negros. “Apesar de ser preto, é gente boa” e “É negro, mas tem um grande coração” são variações dessa frase altamente racista, segregadora.
Traveco – Expressão usada para discriminar as travestis. Tratamentos respeitosos são “travestis” ou “transsexuais”.
Vadia – Palavra usada para discriminar as prostitutas. Ver o verbete “Mulher da vida”.
Veado – Uma das referências mais comuns e preconceituosas aos homossexuais masculinos. As expressões adequadas são gay, entendido, homossexual.
LENDAS DO AMANHÃ
Antes de 1988, a carga de discriminação e de preconceito era, sim, praticada.
As mulheres eram meras "costelas" (de Adão). E o estupro marital um "direito" do homem, em algumas jurisprudências (ANDREUCCI, 2012, p. 526). Alguns invocam a Bíblia para legitimar "costela de Adão". (2)
Sexualidade, somente a biológica, ou seja, órgãos sexuais e não vontade sexual;
Negros e sua subcultura (musical, indumentária, religião). Um perigo aos "civilizados". Tanto é verdade, que capoeira já considerada prática criminosa (Art. 399, do DECRETO N. 847 – DE 11 DE OUTUBRO DE 1890);
Limitação ao saber e discriminação (Luís Gonzaga Pinto da Gama);
Sem diploma universitário é não ser proficiência (o caso dos jornalistas sem diploma). Nota. Assis Chateaubriand, Assis Chateaubriand, Roberto Marinho, Hélio Costa, Bóris Casoy. Todos não tinham diploma universitário. (3)
Nordestino, bando de ignorantes e ladrões. Tal fato era visivelmente constatável na extinta comunidade Orkut. (3) Porém, no Facebook o ódio também se fez. (5)
Interessante observar que quem é contra a conduta ‘politicamente correto’, não perde tempo em procurar uma delegacia para denunciar crime contra a honra (arts. 138 a 140 do Código Penal). Analisando.
A mulher, antes da CRFB de 1988, era uma prostituta, mesmo nas "melhores famílias". Fácil de entender. Os pais procuravam — as mulheres, culturalmente, dependiam dos homens para sobreviverem — um "bom partido". Esse deveria cuidar "bem" da esposa — não sei se os pais choravam de alegria ou tristeza, pela despedida da filha; e também não sei explicar o choro da filha quando o "bom pretendente" enfiava a donzela na carruagem. Ora, se o estupro marital era um direito do homem, o famoso "casa, comida e roupa lavada" garantia que a mulher "pagasse" seu débito conjugal (sexo em troca do "lar doce lar"). Se uma prostituta de rua chamasse uma donzela da sociedade de "puta"? Bom, fatalmente (seletividade penal) a donzela teria o direito de defender sua honra, subjetiva e objetiva. A prostituta "maculou" a honra da doce donzela.
Imagine. Duas pessoas: com formação acadêmica (A); sem formação acadêmica (B). A chama B de analfabeto, por este não saber o que (semântica) é "imaculada". Em outro momento, B chama A de analfabeto, por este não saber o que é "xibiu de apito". (6) Antes de 1988, quem responderia por crime contra a honra? Quem seria condenado? Necessário dizer que nos séculos XIX e XX o “labeling approach” foi aplicado como forma de conter os "perigosos" cidadãos.
DIREITOS HUMANOS E PROTEÇÕES
Contemporaneamente, os direitos humanos ganharam força normativa, jamais vista na História brasileira. Um arcabouço protetivo foi incorporado na legislação brasileira, e se encontram eminentemente materializados:
Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (1965);
Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1979);
Protocolo Facultativo à Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (1999);
Convenção sobre os Direitos das Crianças (1989);
Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) – Pacto de San José da Costa Rica;
Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência (1999);
Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais "Protocolo de São Salvador", concluído em 17 de novembro de 1988, em São Salvador, El Salvador.
No âmbito do Direito Pátrio:
LEI Nº 7.716, DE 5 DE JANEIRO DE 1989 (crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional);
LEI Nº 13.185, DE 6 DE NOVEMBRO DE 2015 (Institui o Programa de Combate à Intimidação Sistemática — Bullying);
LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006 (Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher);
LEI Nº 13.146, DE 6 DE JULHO DE 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência);
LEI Nº 6.001, DE 19 DE DEZEMBRO DE 1973 (Estatuto do Índio);
LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008 (ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”);
DECRETO Nº 7.037, DE 21 DE DEZEMBRO DE 2009 (Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3);
LEI Nº 8.742, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1993 (Organização da Assistência Social);
LEI Nº 12.288, DE 20 DE JULHO DE 2010 (Estatuto da Igualdade Racial).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frequentemente é possível assistir, em pleno início do século XXI, no Brasil, o darwinismo social, a eugenia e a seletividade penal. "Costela de Adão" (homem superior à mulher) e "Trabalho ou chicote no lombo" (superioridade branca) são comuns. A discriminação e o preconceito são camuflados pelo status social. Se um pária consegue uma posição social considerada positiva, de certa maneira consegue ser "aceito", socialmente. Destituído do status — dinheiro, poder político, celebridade, ou pertencente a uma religião dita "suprema" —, as engrenagens da Máquina Antropofágica começam a triturar o infeliz "desigual", pois não soube sobreviver entre "pessoas evoluídas".
Para concluir, disponibilizo um vídeo que permite obter ilações sobre o termo "politicamente correto". Através do que foi escrito neste texto, e do que é apresentado no vídeo, é possível verificar que o modo de vida nos EUA se baseava nos utilitarismos "Costela de Adão", "Fé ou Fogueira Santa", "Mulher e cinto de castidade" e "Liberdade de expressão com uma arma na mão". Mudanças ocorreram nos EUA desde a década de 1950. Desagradaram, continuam desagradando àquelas que querem os EUA antes de 1950. No Brasil não é diferente. A CRFB de 1988 representou, e ainda representa, uma Carta de Maldades. Dizem, tais utilitaristas, que: a mulher ficou "masculinizada", "libertina", quem é contra o feminismo; a bandidagem — geralmente moradores de comunidades — desafiam o Estado e a sociedade do bem; os LGBTs estão "atrevidos demais" e "corrompem" as famílias; a religião, católica ou/e protestante, está perdendo seu efeito beneficiador (evolução espiritual ou salvação da alma) para religiões pagãs.
O link abaixo consta vídeo sobre a Escola de FrankFurt. É necessário assistir com mente limpa de qualquer pré-concepção e comparar com a realidade contemporânea do Brasil e no mundo sobre reivindicações aos direitos humanos: LGBT, feministas etc.
REFERÊNCIAS:
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Minicódigo penal anotado. 5ª ed. Rev e atual. De acordo com as Leis n 12.650, 12.653 e 12.654/2012 — São Paulo: Saraiva, 2012.
RICCI, Camila Milazotto. A seletividade do Direito Penal. Disponível em: https://www.fag.edu.br/upload/arquivo/1362060988.pdf
SALES, Ana Paula Correa de. A criminalização da juventude pobre no Brasil e a ascensão de um Estado de Direito Penal Máximo. Disponível em: https://gredos.usal.es/jspui/bitstream/10366/121138/1/DSC_CorreadeSalesAnaPaula_%20Tesis.pdf
SILVA, Rodrigo Medeiros. As Políticas de Ação Afirmativa e Seus Reflexos na Atual Conjuntura. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/viewFile/2172/Rodrigo
NOTAS:
(1) — Queiroz, Antônio Carlos. Politicamente correto e direitos humanos/ pesquisa e texto:Antônio Carlos Queiroz._Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004. 88 p.1.
(2) — Estudos da Bíblia. Os deveres da esposa. Disponível em: https://www.estudosdabiblia.net/200448.htm
(3) — TOPNEWS. Jornalista sem diploma. Disponível em: https://www.topnews.com.br/noticias_ver.php?id=1001
(4) — Orkut. Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=orkut+odeio+nordestino&biw=1177&bih=486&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwi-19anypDSAhXFfZAKHQMEA0UQ7AkIJg
(5) — Facebook. Disponível em: https://www.google.com.br/search?q=odeio+nordestino+facebook&biw=1177&bih=486&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa=X&ved=0ahUKEwjA_-2myZDSAhVDxpAKHZptBjMQ7AkILw
(6) — Cultura Nordestina. Lista de palavras e expressões nordestinas. Disponível em: https://culturanordestina.blogspot.com.br/2007/11/dicionario-nordestino.html