O acesso à justiça na perspectiva do Estado Democrático de Direito

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Analisa-se o acesso à justiça na perspectiva do Estado Democrático de Direito, a fim de verificar e compreender o que se endente por acesso à justiça, direito de ação e direito de defesa, bem como traçar as relações existentes entre os conceitos.

INTRODUÇÃO

Muito se fala em justiça; muito se estuda sobre justiça; muito se sente sobre justiça. Porém, não se trata de um conceito que pode ser facilmente definido. Trata-se de uma concepção com elevada carga de abstração e subjetivismo, o que por si só já exprime a complexidade de seu exame.

Estudiosos de várias áreas do conhecimento travam inúmeras batalhas acadêmicas na busca de um conceito de justiça. Filósofos se debruçam sobre o tema há séculos. Atribui-se à Grécia Antiga algumas das primeiras discussões filosóficas[1] sobre o tema.

A Grécia Antiga foi o berço das primeiras discussões filosóficas sobre o direito que vieram a influenciar várias correntes no decorrer da história. Especificamente no que interessa ao tema proposto, foi naquela época que começou a tomar forma a expressão hoje conhecida como isonomia, e cuja concepção, somada a correntes filosóficas como a jusnaturalista, teria grande influência no futuro, no que concerne à questão dos direitos humanos. (CARNEIRO, 2000, p. 04).

Diante disso, o tema “acesso à justiça” encontra dificuldades já na sua essência, isto é, no conceito do que seja a própria justiça, à qual se busca o acesso. 

Não obstante, o princípio jurídico do acesso à justiça representa importante fator no que diz respeito à (qualidade da) tutela jurisdicional prestada pelo Estado, por intermédio do Poder Judiciário, no atual contexto do Estado Democrático de Direito. É o primeiro passo na obtenção da tutela estatal do direito lesado ou ameaçado de lesão (art., 5º, XXXV, CR).

No âmbito do direito, a evolução do conceito ora estudado passou por modificações consideráveis, especialmente sob um aspecto substancial relativo ao seu significado. Diante das dimensões do presente trabalho, limitar-se-á a tecer breves comentários tendo por base a realidade brasileira.

1. Acesso à justiça

Ao se falar sobre a prestação da tutela jurisdicional e sua efetividade, sobretudo no tocante à concretização dos direitos fundamentais, tema assaz estudado pelo direito contemporâneo, imperativo se torna a abordagem acerca do acesso à justiça, já que são conceitos que estão essencialmente interligados.

O entendimento sobre o que consistia o acesso à justiça, há até pouco tempo, compreendia uma conotação um tanto quanto parca e insuficiente, ao menos em relação ao atual cenário do direito contemporâneo, marcado por uma sociedade plural e complexa, carente pela concretização dos direitos assegurados aos seus membros.

Por conseguinte, surgiram propostas hermenêuticas com uma vertente voltada à interpretação e consequente aplicação eficiente e atual do direito, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Tais características se identificam com a proposta do neoconstitucionalismo, segundo o qual “o direito deve ser entendido dentro das respectivas relações de poder, sendo intolerável que, em nome da ‘vontade do legislador’, tudo que o Estado faça seja considerado legítimo”. (CAMBI, 2011, p. 37) [2].

A atuação do Estado, assim como a dos particulares, evoluiu no sentido de que deve pautar-se pelo respeito aos direitos fundamentais e à Constituição, norma fundamental de indispensável observância, e cujos efeitos são irradiantes para todo o ordenamento jurídico. E é sob essa orientação que se apresenta de extrema importância o tratamento do direito fundamental de acesso à justiça.

A despeito dessa conjuntura, interessa apontar as diferenças existentes entre os conceitos de acesso à justiça e acesso ao Judiciário, os quais, por serem expressões parecidas, eventualmente podem ser confundidos e/ou tratados como sinônimos.

Como ensina Portanova (2001, p. 112), a utilização da expressão “acesso à justiça” permite proceder a duas interpretações, levando, desta maneira, a dois sentidos:

O primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo sentido e conteúdo que o de Poder Judiciário, torna sinônimas as expressões acesso à justiça e acesso ao Judiciário; o segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano.

Assim, ao se considerar os vocábulos justiça e judiciário como sendo expressões equivalentes, dar-se-iam por satisfeitos os anseios do ideal acesso/alcance à justiça pelo simples (apesar de, muitas vezes, não ser tão simples assim...) acesso ao Poder Judiciário, por meio de uma ação judicial, por exemplo, sem se preocupar com os efeitos e deslindes deste procedimento.

Pouco importaria, seguindo esse entendimento, a preocupação em garantir um resultado prático à tutela jurisdicional. A devida observância dos direitos e garantias fundamentais, por intermédio de uma decisão justa, tempestiva e efetiva, poderia não ser fundamental para essa concepção puramente formal de acesso à justiça.

Bastaria o acesso aos tribunais, e a obtenção de uma sentença de mérito, sem se considerar os reflexos deste julgamento na vida real, isto é, suas consequências fora do “mundo jurídico”. Aliás, até pouco tempo era essa a concepção predominante[3].

Evidentemente que se trata de um entendimento um tanto quanto simplificado e pouco abrangente; isso porque, atribuir à expressão “acesso ao Judiciário” o mesmo valor e intensidade que apresenta a expressão “acesso à justiça” não condiz com a atual e desejada concepção do aludido princípio. 

Consequentemente, como ressalta Portanova (2001, p. 112), “a formulação do princípio optou pela segunda significação. Justifica-se tanto por ser mais abrangente, como pelo fato de o acesso à justiça, enquanto princípio, inserir-se no movimento para a efetividade dos direitos sociais”.

Portanto, mesmo o pleno acesso ao Judiciário, por si só, não garante o efetivo acesso à justiça, ainda que o acesso à justiça muitas vezes compreenda e exija o efetivo acesso aos tribunais.

O ingresso ao Poder Judiciário importa o primeiro passo para que, por meio de um (devido) processo (legal), atento aos direitos e garantias processuais (e) fundamentais (contraditório, ampla defesa, decisões devidamente fundamentadas etc.), bem como à realidade social na qual se insere[4], se possa atingir o (mais próximo do) ideal de justiça.

Uma sentença de mérito, apenas, não é suficiente. O pronunciamento judicial necessita ser materialmente (e não apenas formalmente) adequado, efetivo e tempestivo, resultando em consequências reais e positivas na vida do cidadão que teve seus direitos, de qualquer forma, violados ou ameaçados. Somente desta maneira, então, será observado o princípio do acesso à justiça, na sua melhor concepção.

Ligados ao princípio jurídico do acesso à justiça, merecem abordagem os direitos de ação e de defesa, como será visto adiante.

2. Direito de ação

O exame do direito de ação será realizado na perspectiva dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito, conforme o presente texto se propõe, razão pela qual não serão estudadas as teorias tradicionais acerca da ação (dentre as quais se destacam a teoria concreta, abstrata e eclética).

A partir de uma abordagem à luz da Constituição, o direito de ação é considerado um direito fundamental processual, destinado à proteção e concreção de todos os direitos. Da mesma forma, não se limita a ser uma garantia de abstenção estatal (consistente na não vedação do acesso à jurisdição), mas também compreende a necessidade de o Estado como um todo (e não apenas o Estado-juiz) realizar prestações positivas voltadas à sua concreta realização (MARINONI, ARENHART, MITIDIERO, 2016, p. 173-174).

Como ensinam Marinoni, Arenhart e Mitidiero (2016, p. 175):

O legislador tem o dever de instituir técnicas processuais que permitam ao cidadão exercer a ação de maneira efetiva. Ou melhor, o legislador tem o dever de dar ao cidadão as ferramentas que lhe permitam construir e utilizar a ação adequada e idônea à proteção do seu direito material. Isto evidencia que o direito fundamental de ação não se volta somente contra o Estado-juiz.

A prestação da tutela jurisdicional pelo Estado quando da violação ou ameaça de lesão a direito, para ser efetiva, deve corresponder ao direito material violado ou ameaçado, chegando o mais próximo possível do estado anterior, ou seja, da não-lesão ou não-ameaça. Ou seja, é imprescindível “(...) a fiel identificação da tutela do direito pretendida pela parte. Vale dizer: é preciso em primeiro lugar olhar para o direito material a fim de saber-se qual a situação jurídica substancial que se pretende proteger judicialmente” (MARINONI, ARENHART, MITIDIERO, 2016, p. 188).

E é justamente por intermédio do direito de ação que o indivíduo vai obrigar a jurisdição, mediante “técnicas processuais adequadas para a efetivação do direito material” (MARINONI, ARENHART, MITIDIERO, 2016, p. 183), a concretizar seu direito.

Portanto, a ação consiste em direito fundamental necessário ao alcance da tutela jurisdicional adequada, tempestiva e efetiva.

3. Direito de defesa

O direito de defesa, assim como o direito de ação e o acesso à justiça, consiste em direito fundamental. A Constituição da República brasileira prevê, em seu artigo 5º, a segurança ao contraditório e à ampla defesa, bem como os meios e recursos a ela inerentes, tanto nos processos judiciais como administrativos.

Trata-se a ampla defesa, portanto, de importantíssimo direito do jurisdicionado, tanto – e principalmente – ocupante do pólo passivo como, também, do pólo ativo do processo[5]. 

É o que se passa a examinar.

3.1. Conceito

Para que seja atribuído um conceito ao direito de defesa, convém recorrer ao ordenamento jurídico pátrio em busca da compreensão deste instituto. E parece adequado investigar aludido direito a partir de sua previsão constitucional.

Como já fora salientado, a Constituição da República Federativa do Brasil prevê, em seu artigo 5º, inciso LV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

Em uma primeira constatação, verifica-se tratar de um direito constitucionalmente previsto (dotado, pois, de constitucionalidade formal e material), e incluso no rol dos direitos e garantias fundamentais, assim como o direito de ação (MARINONI, 2007, p. 20). É garantia assegurada tanto nos processos judiciais como administrativos. 

Também é possível perceber, pela análise desse dispositivo, que o direito fundamental à ampla defesa abrange os meios e recursos indispensáveis ao seu adequado e efetivo exercício.

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Junto à previsão constitucional da ampla defesa, a Constituição garante o contraditório, assim entendido o direito conferido a ambas as partes de participarem (dimensão formal) e influírem (dimensão substancial) na decisão judicial. (DIDIER JR., 2010, p. 52).

O princípio do contraditório é reflexo do princípio democrático na estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório. O princípio do contraditório deve ser visto como exigência para o exercício democrático de um poder. (DIDIER JR., 2010, p. 52).

Nota-se, pois, a conexão entre os princípios do contraditório e da ampla defesa, de modo que “a ampla defesa qualifica o contraditório. Não há contraditório sem defesa. Igualmente é lícito dizer que não há defesa sem contraditório. O contraditório é o instrumento de atuação do direito de defesa”. (DIDIER JR, 2010, p. 55).

Contraditório e ampla defesa não são conceitos idênticos, não são a mesma coisa. São, na realidade, complementares, sendo a defesa o fundamento do contraditório, o qual também é (direito) exercido pelo titular do direito de ação. (MARINONI, 2011, p. 319).

Diante disso, decorre também que a defesa, em que pese ser ampla, não é ilimitada. Porém, não pode ser limitada irracionalmente, eis que “há situações que a limitação é necessária para permitir a efetividade da tutela do direito” (MARINONI, 2011, p. 319), tal como ocorre nos casos de tutela de urgência, onde a defesa é postergada[6].

A eventual restrição do direito de defesa, caso justificada racionalmente, não fere o direito constitucional de defesa. O que importa é evitar que a restrição da defesa, nessa ocasião, redunde em “prejuízo definitivo”, retirando do réu a oportunidade de exercer a defesa em fase posterior à decisão proferida no curso do processo ou mesmo através do exercício de ação autônoma. (MARINONI, 2011, p. 319).

Preza-se, pois, por uma condição de equilíbrio no processo, entre ação e defesa, e não absoluta identidade. Pode-se dizer que isso corresponde à exteriorização do princípio da isonomia na relação entre direito de ação e de defesa.

Como já ressaltado, vale relembrar que ampla não é sinônimo de ilimitada. A ampla defesa, assim como ocorre com o direito de ação, deve ser racionalmente distribuída de modo que possa conferir ao jurisdicionado (no caso de processo judicial) a condição de efetivamente participar e influir sobre a decisão, opondo suas razões e viabilizando o seu acesso à justiça.

Ter ampla defesa não é, evidentemente, possuir uma possibilidade de defesa que supere o limite da dimensão de participação que se deve dar ao réu para que ele possa efetivamente influir sobre o juízo e evitar que a sua esfera jurídica seja invadida de forma não adequada ou necessária. Por ampla defesa se deve entender o conteúdo de defesa necessário para que o réu possa se opor à pretensão de tutela do direito (à sentença de procedência) e à utilização de meio executivo inadequado ou excessivamente gravoso. (MARINONI, 2011, p. 318).

Com isso, outro tema merece atenção, qual seja, o do abuso do direito de defesa.

3.2. Direito de defesa e abuso de direito

Dentre as breves conclusões que podem ser aduzidas do presente trabalho, até o momento, sucede que não se deve confundir o pleno exercício da defesa com o uso abusivo desse direito.

O direito de defesa deve ser exercido de modo racional e equilibrado, de sorte que não extrapole seus limites e fira o direito do autor. (MARINONI, 2007, p. 20). Cabe aos sujeitos do processo, pois, o emprego de “técnicas adequadas à realização concreta dos direitos fundamentais à tutela efetiva e à duração razoável do processo” (MARINONI, 2007, p. 22); isso porque, como é sabido, “a demora do processo sempre prejudica o autor que tem razão e beneficia o réu que não a tem”. (MARINONI, 2007, p. 25).

O abuso do direito de defesa, assim como o dos demais direitos, pode ser examinado sob a perspectiva do direito civil[7], ou seja, pode ser encarado como ato ilícito (vide artigo 187, do Código Civil), passível de indenização ao lesado. Como ressalta Theodoro Júnior (2001, p. 20):

O uso abusivo do direito, isto é, aquele feito com desvio de sua função natural, para transformar-se em veículo do único propósito de lesar outrem, equipara-se a ato ilícito e, como tal, enquadra-se na hipótese prevista no art. 159[8], do Código Civil, acarretando para o agente o dever de reparar integralmente o prejuízo injustamente imposto ao ofendido.

Nem sempre o titular do direito de defesa o utilizará com vistas à sua desejada finalidade. Muitas vezes, ele poderá ser usado mascaradamente com o evidente objetivo de protelar, a fim de manter o bem da vida, objeto do litígio, integrado ao seu patrimônio, mesmo sem razão, pelo maior tempo possível, em prejuízo do autor que tem razão. E o processo, lamentavelmente, pode contribuir com essa malsinada prática lesiva. (MARINONI, 2007, p. 26).

Por razões como essa, há punições processuais para o abuso do direito de defesa, como é o caso das penalidades impostas ao litigante de má-fé. Entretanto, não há de se confundir o abuso do direito de defesa com a litigância de má-fé.

A litigância de má-fé pode ocorrer a partir do uso abusivo desse direito, e o conteúdo do artigo 80, do Código de Processo Civil[9], pode contribuir para sua constatação.

Frise-se que não é possível confundir abuso de direito de defesa com litigância de má-fé. Para efeito de tutela antecipatória, é possível extrair do art. 17 do CPC[10] alguns elementos que podem colaborar para a caracterização do abuso de direito de defesa. Mas isto não significa que as hipóteses do art. 17 possam servir de guia para a compreensão da tutela antecipada fundada em abuso de direito de defesa. (MARINONI, 2007, p. 46).

Assim, até o momento, sucede que não se pode confundir o pleno exercício da defesa com o uso abusivo desse direito.

3.3. A obrigatoriedade do direito de defesa

Em que pese se tratar de direito fundamental, no processo civil o direito de defesa não é obrigatório. É – e deve sempre ser[12] – oportunizado. Todavia, o réu não pode ser obrigado a se defender; não se trata de um de seus deveres.

A regra do art. 344, CPC, segundo a qual “se o réu não contestar a ação, será considerado revel e presumir-se-ão verdadeiras as alegações de fato formuladas pelo autor”, não obstante comportar exceções, indica que a defesa não é obrigatória no âmbito do processo civil. Como constata Marinoni (2011, p. 325)[13]:

A defesa, no processo civil, é apenas oportunizada, não sendo obrigatória. O réu não possui o dever de apresentar defesa. O art. 285, segunda parte, afirma que “do mandado constará que, não sendo contestada a ação, se presumirão aceitos pelo réu, como verdadeiros, os fatos articulados pelo autor”. E os arts. 223, caput, 225, II, e 232, V, dizem que a comunicação de citação pelo correio, o mandado de citação por oficial de justiça e o edital de citação devem fazer a “advertência a que se refere o art. 285, segunda parte”. Tais regras tem base no art. 319, que estabelece que, “se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor”.

Apesar de não corresponder a um dever, o direito de defesa não pode ser tratado com negligência, sob pena de sérios riscos aos (demais) direitos do demandado.

Eventual alegação de que a ausência de citação do réu – ou seja, a falta de lhe conferir oportunidade de se defender ou, ao menos, de optar por não se defender, tendo em vista que a citação corresponde ao “ato processual de comunicação ao sujeito passivo da relação jurídica de direito processual (réu ou interessado) de que em face dele foi proposta uma demanda, a fim de que possa, querendo, vir a defender-se ou manifestar-se” (DIDIER JR., 2010, p. 477) – não lhe traz prejuízos não aparenta adequada. Partilhando desse mesmo entendimento, ou seja, de que a simples falta de contestação não isenta o réu de ônus, Marinoni (2011, p. 326) é assente ao afirmar que:

É certo que, diante de tal contexto, seria possível argumentar que o réu que não contesta não sofre sequer ônus. Mas não é bem assim. A não apresentação de contestação retira do réu a principal oportunidade de oferecer ao juiz os argumentos de defesa. Só por isso não é razoável pensar que o réu nada sofre ao não contestar.

O direito de defesa, portanto, deve ser sempre conferido ao réu, como expressão do caráter democrático do processo. Deve-lhe ser atribuído o direito de participar do processo, de ser ouvido, de influenciar no julgamento que também lhe afetará. Ou, ainda, por não ser obrigatório no processo civil, de optar por não exercê-lo.

4. O acesso à justiça na perspectiva do Estado Democrático de Direito

Inicialmente, importa a análise do princípio do acesso à justiça sob a perspectiva do novo constitucionalismo, pautado pela supremacia da constituição e dos direitos fundamentais, voltados para a plena realização do ser humano.

O Estado, por intermédio de seus órgãos, e pelos instrumentos por ele utilizados, deve estar voltado à justiça; ela mesma, fácil de sentir e difícil de conceituar. E a Constituição nos dá algumas pistas, tanto substanciais como procedimentais, para sua construção.

Primeiro, vem a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR). Todo ser humano deve ser tratado com dignidade. Isso se dá, dentre outros, por intermédio da liberdade e da solidariedade (art. 3º, I, CR) entre os cidadãos (art. 1º, II, CR), pelo desenvolvimento nacional (art. 3º, II, CR), pela erradicação da pobreza e da marginalização, com a conseqüente redução das desigualdades (art. 3º, III, CR), e pela promoção do bem comum, pautado na tolerância e na harmonia social (Preâmbulo e art. 3º, IV, CR). Parece utopia? Pode ser. Mas, como ensina Eduardo Galeano, a utopia serve para nos fazer caminhar.

No plano processual, e consequentemente no tocante ao acesso à justiça, sem desviar a atenção dos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil acima esboçados, a Constituição prevê a inafastabilidade da jurisdição quando da lesão ou mesmo ameaça de lesão a direito (art. 5º, inc. XXXV, CR).

Não obstante, e se necessário ao acesso à justiça, ao Estado incumbe prestar assistência jurídica (que engloba tanto o plano judicial como também o extrajudicial) integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, inc. LXXIV, CR).

Ao Judiciário cabe, portanto, a prestação da tutela jurisdicional, que deve ser procedida mediante um devido processo legal (art. 5º, inc. LIV, CR), o qual pressupõe a observância das garantias do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inc. LV, CR) e uma razoável duração de seu trâmite (art. 5º, inc. LXXVIII, CR). Seus julgamentos devem ser públicos e suas decisões devidamente motivadas (art. 93, inc. IX, CR), sob pena de nulidade do ato jurisdicional (PEREIRA, 2015, p. 148).

Tudo isso, em respeito ao Estado Democrático de Direito[11].

5. Direito de ação e de defesa como corolários do acesso à justiça.

A evolução do presente trabalho permite chegar à conclusão de que há manifesta sintonia entre o acesso à justiça, o direito de ação e o direito de defesa, eis que estes últimos decorrem daquele.

O direito de defesa e o direito de ação são corolários do acesso à justiça. O princípio democrático impõe haja diálogo entre as partes do processo. Ao se exercer o direito de ação em face de alguém, esse alguém exercerá seu direito de defesa, a fim de também participar e influir na decisão final – o que fundamenta o contraditório. Ambos, portanto, praticando o seu direito de acesso à justiça.

Assim, acesso à justiça consiste em princípio informativo tanto da ação como da defesa, “na perspectiva de se colocar o Poder Judiciário como local onde todos os cidadãos podem fazer valer seus direitos individuais e sociais”. (PORTANOVA, 2001, p. 113).

Isso porque a questão do acesso à justiça se originou da necessidade de integrar as liberdades clássicas, inclusive as de natureza processual, como os direitos sociais. O direito de acesso à jurisdição – visto como direito do autor e do réu – é um direito à utilização de uma prestação estatal imprescindível para a efetiva participação do cidadão na vida social, e assim não pode ser visto como um direito formal e abstrato – ou como um simples direito de propor a ação e de apresentar defesa –, indiferente aos obstáculos sociais que possam inviabilizar o seu efetivo exercício. (MARINONI, 2011, p. 316).

O acesso aos tribunais não poder oferecer obstáculos econômicos e sociais de modo a impedir o acesso à jurisdição – e à justiça –, “já que isso negaria o direito de usufruir de uma prestação social indispensável para o cidadão viver harmonicamente na sociedade”. (MARINONI, 2011, p. 316), e implicaria na legitimidade da decisão prolatada.

Além disso, o processo não se restringe a ser apenas um meio de se assegurar o cumprimento das garantias fundamentais (contraditório, ampla defesa etc.). É mais que isso. O processo é mecanismo de transformação social, de minimização das desigualdades e da exclusão. A jurisdição, assim como as demais funções do Estado, objetiva promover a justiça social. (PAULA, 2002, p. 207).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Optou-se por apresentar meras considerações finais ao presente artigo, como forma de impor um fecho ao assunto ora abordado. Isso porque, a bem dizer, as conclusões obtidas já foram expostas no item anterior.

Ademais, tendo em vista a importância do tema, não se pretendeu esgota-lo, tampouco considerar como suficientes os pontos de vista aqui apresentados. São necessários mais estudos e discussões, a fim de que se possa, cada vez mais, aperfeiçoar o tão importante acesso à justiça.


REFERÊNCIAS


BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito. O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 240: 1-42, Abr./Jun. 2005.


_____________. O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso imprevisto. Revista Fórum. Revista da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro. Ano 11 – Número 35 – Abril-Maio-Junho de 2013.


CAMBI, Eduardo Augusto Salomão. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. 2. ed. ver. e atual. São Paulo: RT, 2011.


CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. Acesso à justiça: juizados especiais cíveis e ação civil pública: uma ova sistematização da teoria geral do processo. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2000.


DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento. vol. 1. 12. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2010.


MARINONI, Luiz Guilherme. Abuso de defesa e parte incontroversa da demanda. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007.


_____________. Teoria geral do processo. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.


MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria do processo civil. vol. 1, 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.


NALINI, José Renato. Novas perspectivas no acesso à justiça. Revista CEJ, V. 1 n. 3 set./dez. 1997. Disponível em http: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/viewArticle/114/157.


PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. A jurisdição como elemento de inclusão social: revitalizando as regras do jogo democrático. 1. ed. Barueri: Editora Manole, 2002.


PEREIRA, Fabrício Fracaroli. A jurisdição como instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 67, dez.2015-abr.2016.


PORTANOVA, Rui. Princípios do processo civil. 4ª ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.


THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano moral, 4ª edição – atual. e ampl. – São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001.


Notas:

[1] “Dos três grandes filósofos dessa época, conhecida como época de ouro da filosofia antiga, foi Aristóteles o formulador do que hoje entendemos por teoria da justiça”. (CARNEIRO, 2000, p. 05).
[2] Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito (BARROSO, 2005, p. 11). 
[3] “Por acesso à Justiça vinha-se entendendo, até recentemente, o acesso aos tribunais” (NALINI, --, p. --).
[4] “Quando se insiste na necessidade de o juiz atribuir sentido ao caso levado à sua análise, deseja-se, antes de tudo, dizer que ele não pode se afastar da realidade em que vive” (MARINONI, 2011, p. 97).
[5] “Convém lembrar, ainda, que a ampla defesa é ‘direito fundamental de ambas as partes’, consistindo no conjunto de meios adequados para o exercício do adequado contraditório” (DIDIER JR., 2010, p. 56).
[6] “A antecipação da tutela e a tutela cautelar, em razão da urgência que as acompanha, contentam-se com a verossimilhança da alegação ou com a chamada fumaça do bom direito (fumus boni iuris). Sendo o direito do autor mais provável que o do réu, e estando evidenciado o perigo na demora, não há como negar a tutela urgente, ainda que o réu não tenha exaurido o seu direito de defesa.” (MARINONI, 2011, p. 365).
[7]Ou mesmo sob o manto das demais áreas do direito como, p. ex., o direito penal, quando do uso abusivo do direito de defesa resulta a prática de um crime.
[8] O autor se refere ao Código Civil de 1916. Na lei atual, aludido dispositivo corresponde ao artigo 186.
[9] CPC, Art. 80.  Considera-se litigante de má-fé aquele que: I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II - alterar a verdade dos fatos; III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - provocar incidente manifestamente infundado; VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
[10] O autor se refere ao Código de Processo Civil de 1973. Na atual diploma legal, o assunto está previsto no artigo 80.
[11] “Constitucionalismo significa Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. Democracia, por sua vez, traduz a idéia de soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. O constitucionalismo democrático, assim, é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular. E é, também, um modo de organização social fundado na cooperação de pessoas livres e iguais” (BARROSO, 2013, p. 33).
[12] A doutrina excetua a necessidade de oportunidade de citação, entendida o ato de comunicação de que contra o sujeito recai uma demanda com a finalidade de que ele possa se defender (se assim desejar), nos casos em que há “absoluta ausência de prejuízo” (DIDIER JR., 2010, p. 478), com fundamento no artigo 282, §§ 1º e 2º do CPC, no caso em que a sentença é proferida em favor do réu, como, p. ex., quando do indeferimento da petição inicial. Até porque, quando não há ataque (ou quando o ataque é inepto), não há necessidade de defesa.
[13] Porém, fazendo menção aos dispositivos do CPC de 1973.

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Sobre os autores
Adelle Rojo

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM); Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Mestranda em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM).

Fabrício Fracaroli Pereira

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM), pós-graduado em Direito do Estado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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