2. O contrato como realidade concreta: por uma ética material de justiça contratual.
Sabe-se que, segundo a noção da teoria contratual clássica, o contrato é substancialmente entendido enquanto a constituição da vontade harmonizada entre as partes à que se adicionam efeitos, sendo o produto de sua autonomia o consenso ou acordo sobre uma declaração de vontades em comum e destinada a regulamentar seus efeitos jurídicos, havendo então um fragmento do contrato que possa ser indefinidamente reprogramado e um núcleo intocável.[17] A tese voluntarista defende enquanto aspecto fundamental e incapaz de alteração a própria vontade, sendo esta imutável justamente por conta de sua autonomia. Todavia pari passu as modificações sofridas por conta das relações obrigacionais em seu conceito e estrutura, o contrato enquanto instituição basilar do Direito Privado não ficou imune aos influxos da modernidade, especialmente do século XX.
Destarte, supera-se a tese puramente voluntarista em prol de um conceito normativo do contrato, posto que a vontade enquanto categoria abstrata não é um fenômeno real, esta, desde sua formação, está imiscuída de regulamentações jurídicas, normas intervencionistas (que inclusive modificam reflexivamente a presunção de autonomia privada enquanto categoria ideal) que lhe atribuem sentido. A “vontade comum” concretiza-se no propósito prático, todavia, a ela são adicionados efeitos originários tanto do acordado, como em uma predisposição unilateral ou mesmo na lei, sendo boa parte das obrigações impostas e não propriamente fruto da autonomia privada. O consentimento não é um texto normativo autossuficiente, de modo que interage, tipifica e recorre a inúmeras disposições complementares não surgidas da vontade das partes, de modo que a maioria dos conflitos relevantes não são solucionados com a simples leitura da obra dos contratantes. Portanto, o magistrado convoca permanentemente a lei, os princípios gerais, os precedentes judiciários, a fim de desenvolver o programa privado sobre as obras inconclusas realizadas pelas partes, ou para retifica-lo em razão de suas limitações.[18]
No século XIX, auge do liberalismo, coube à teoria do direito dar forma conceitual ao individualismo econômico da época, criando a concepção tradicional de contrato, em consonância com os imperativos da liberdade individual e principalmente do dogma máximo da autonomia da vontade. A liberdade contratual significa, então, a liberdade de contratar ou de se abster de contratar, de escolher o seu parceiro contratual, de fixar o conteúdo e os limites das obrigações que quer assumir, de poder exprimir a sua vontade na forma que desejar, contando sempre com a proteção do direito. O contrato é para o liberalismo econômico do século XIX, um dos mais importantes institutos jurídicos, pois instrumentaliza a movimentação de riqueza na sociedade. De outro lado, nesta economia livre e descentralizada, deveria ser assegurada a cada contraente a maior independência possível para se auto-obrigar nos limites que desejasse, ficando apenas adstrito à observância do princípio máximo: pacta sunt servanda.[19]
A terceira função do dogma da liberdade contratual pode ser denominada função “protetora”. Na visão liberal, o Estado deveria abster-se de qualquer intervenção nas relações entre indivíduos. Por trás da teoria da autonomia da vontade, está a ideia de superioridade da vontade sobre a lei. O direito deve moldar-se à vontade, deve protegê-la, interpretá-la e reconhecer a sua força criadora. O contrato será a lei entre as partes. Cabe destacar, quanto às consequências do dogma da autonomia da vontade, que se o consentimento viciado não obriga o indivíduo, o consentimento livre de vícios o obriga de tal maneira que, mesmo sendo o conteúdo do contrato injusto ou abusivo, não poderá ele, na visão tradicional, recorrer ao direito a não ser em casos especialíssimos de lesão.[20]
Diante deste quadro político e jurídico, entre os séculos XIX e XX, observa-se a passagem de um modelo de Estado Liberal para o Estado Social formando, então, um novo pano de fundo político responsável por impactar transformações no sistema jurídico como um todo, não sendo possível resguardar a incolumidade do Direito Privado sistematizado pela ciência jurídica do século XIX. Com a industrialização e a massificação das relações contratuais, especialmente através da conclusão de contratos de adesão, ficou evidenciado que o conceito clássico de contrato não mais se adaptava à realidade socioeconômica do século XX. Em muitos casos, o acordo de vontades era mais aparente do que real. Quando os contratos pré-redigidos tornaram-se a regra e deixaram clara a desigualdade entre os contratantes (um autor efetivo das cláusulas, e o outro, simples aderente), desmentindo a ideia de que, assegurando-se a liberdade contratual, estaria assegurada a justiça contratual. O novo modelo contratual a ser reconstruído frente a esta nova realidade sociopolítica procurou evitar a atomização do contrato enquanto negócio jurídico cerrado apenas entre os sujeitos que o celebram e imune a controles externos.[21]
A partir desta reformulação paradigmática, o momento de manifestação da vontade (consenso) perde a primazia enquanto único fato jurídico responsável pela modulação dos efeitos obrigacionais pertinentes ao contrato, de modo que passa a coexistir em grau de relevância com os efeitos externos da relação contrato/sociedade e a consideração socioeconômica dos próprios sujeitos diretamente envolvidos com seus impactos. De modo que o contrato deixa de ser apenas autoregramento da vontade e passa a preencher uma função social e ser regido também pela boa-fé objetiva. Ocorrendo, desta feita, relativizações sintomáticas aos princípios contratuais clássicos: pacta sunt servanda, relatividade dos efeitos dos contratos e autonomia da vontade.[22]
É imperioso salientar que, os princípios sociais dos contratos foram acolhidos pelo atual Código Civil, de modo que sua presença e necessidade de concreção se tornam inegáveis. O CC/2002 mencionou expressamente a “função social do contrato” (art. 421), sendo neste ponto mais incisivo que o próprio CDC. Também foi consagrada expressamente e definitivamente a boa-fé objetiva a ser exigida tanto na conclusão como execução contratual (art. 422). Já o princípio da equivalência material das partes foi integrado implicitamente nos dispositivos disciplinadores do contrato de adesão (arts. 423 e 424) ao estabelecer a interpretação mais favorável ao aderente.[23]
Um dos aspectos mais gritantes e talvez uma das características mais bruscas sobre o novo modelo contratual da atualidade é o crescimento da equivalência material das prestações para com a preservação ao justo equilíbrio contratual em vista de manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, ou para corrigir os desequilíbrios supervenientes independentemente do grau de previsibilidade das mudanças circunstanciais. Destarte, o cumprimento rígido e inflexível da execução contratual seria posta de lado quando, avaliando-se objetivamente segundo as regras da experiência ordinária, sua execução provocar vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para a outra. Sendo cabível chegar à própria consideração deste princípio enquanto um macroprincípio da justiça contratual, cujo enredo de sua incidência abrangeria a boa-fé objetiva, a revisão contratual, o princípio do venire contra factum proprio, o princípio da lesão nos contratos, a cláusula rebus sic stantibus, a invalidade das cláusulas abusivas e a regra interpretatio contra stipulatorem.[24]
É válido analisar como a cultura jurídica germânica reagiu pioneiramente a estes momentos de transição e ruptura bruscas das teorias contratuais clássicas. Houve forte tensão logicamente resultante da evolução rápida entre as tendências tipificadoras e as moralizantes-subjetivas por uma justiça individual do caso concreto, sendo grave preocupação da jurisprudência apurar as motivações individuais do declarante em consideração à justiça concreta do contrato. A partir da transição da teoria da vontade da pandectística para o princípio da confiança ou vigência, intermediada pelo crivo da boa-fé objetiva, ocorre a compatibilização da teoria da declaração da vontade e da conclusão negocial com o fenômeno da evolução social capitaneado pela superação dos negócios jurídicos isolados para os negócios jurídicos em massa. Foi imposto, neste contexto, um recuo essencial quanto a uma concepção dos contratos enquanto atos que só responsabilizam o próprio sujeito que os pratica para uma outra que realça a sua função social.[25]
O acontecimento mais notável e fundamental se deveu ao regresso da jurisprudência ao princípio da equivalência material. Influenciada pelos sucessos imprevisíveis e das dificuldades de abastecimento da primeira guerra mundial e dos primeiros ciclos inflacionistas, a jurisprudência passa então a se orientar segundo a ética material dos contratos, ao mesmo tempo, quando no período da revalorização, ela desviou-se também do princípio da obrigação pelo valor nominal. Não levando ao fundo um regresso consciente ao princípio da equivalência, a jurisprudência oscilou entre as figuras da “impossibilidade econômica”, da “inexigibilidade” e da “dificuldade do cumprimento pontual da obrigação” acabando por preferir a teoria da “base negocial” de Oertmann cuja apresentação subjetivista permitiu compatibilizar a consideração do desaparecimento da equivalência objetiva com o domínio do dogma da vontade das partes. De modo que a jurisprudência, em razão das pressões externas, voltou a adotar as bases aristotélicas da justiça contratual bizantina e escolástica-jusracionalista.[26]
3. O adimplemento da obrigação: da estrutura para a funcionalidade.
O contrato possui um ciclo vital, em outras palavras, não existem contratos eternos, o vínculo contratual é efêmero e naturalmente se extingui. Enquanto negócio jurídico, o contrato passa a existir, e operando dentro das condições de validade, produz efeitos. Desta feita, o modo normal de extinção dos contratos se dá pelo exaurimento dos seus efeitos, realizando então sua causa final à partir do adimplemento obrigacional.[27]
Todavia, nem sempre o contrato extingue-se por realizar sua finalidade, ou seja, sem que suas obrigações tenham sido cumpridas. Havendo causas anteriores, contemporâneas e supervenientes responsáveis por provocar sua extinção anormal. Dentre as inúmeras causas de extinção contratual, a resolução ocorre mediante a inexecução ou incumprimento de uma das partes quanto as suas obrigações inerentes ao respectivo contrato.[28]
Resolver o contrato é extingui-lo por ato ou pedido judicial de uma das partes em virtude do inadimplemento da outra, causando, inclusive, efeitos retroativos. Sendo, então, a modalidade mais forte de extinção voluntária posto que encerra todos os efeitos contratuais até o momento da constituição do próprio contrato. Nota-se que, além do inadimplemento em sentido estrito, ou pela impossibilidade superveniente do objeto do contrato, a doutrina construiu outra hipótese apta a ensejar a resolução contratual, denominada adimplemento insatisfatório ou violação positiva do contrato cuja prestação realizada pela parte contratual devedora, segundo os elementos da obrigação, não satisfaz à parte credora, em virtude do adimplemento negligente ou descuidado.[29]
Sendo válido também pontuar que no direito brasileiro, o contratante pode exigir em caso de inadimplemento pela outra parte a resolução do contrato com as suas perdas e danos. Não obstante, por si só, o inadimplemento não gera diretamente a resolução contratual, pois a parte prejudicada pode preferir exigir o cumprimento da prestação inadimplida em juízo, quando seja possível a sua execução, sendo oferecida pela lei a alternativa de pedir execução forçada da obrigação ou a resolução do contrato, podendo qualquer uma dessas ser cumulada com pedido de indenização por perdas e danos materiais e morais.[30]
Neste sentido, inadimplemento, para além do sentido estrito e puramente técnico do não cumprimento da prestação principal da relação jurídica, define-se como o não cumprimento por uma das partes de qualquer dever emanado do vínculo obrigacional. Seria a não realização de qualquer prestação debitória sem que se tenha verificado alguma causa típica de extinção da relação obrigacional. Quanto à causa do descumprimento, é cabível uma distinção objetiva e subjetiva do inadimplemento. Subjetivamente se compreende o comportamento culposo do obrigado em direção contrária ao devido pela obrigação. Objetivamente é vista de forma estrita a situação de ausência de satisfação dos interesses decorrentes da relação, independentemente do comportamento culposo de qualquer uma das partes. Desta feita, no concernente à responsabilidade pelo descumprimento obrigacional, o adimplemento pode ser imputável ou inimputável à qualquer uma das partes, ocorrendo a primeira hipótese na medida em que o comportamento do obrigado contribuir significativamente para o descumprimento da obrigação.[31]
O inadimplemento, a priori, pode ser categorizado enquanto inadimplemento absoluto e mora. Há inadimplemento absoluto quando a prestação não mais puder ser realizada, ou não houver mais sentido em sua realização, ou seja, quando não puder mais satisfazer o credor. Tendo então como causa os fatos e atos relativos ao objeto da prestação (designado comumente por impossibilidade) e fatos concernentes à relação entre a prestação e o interesse do credor. Distinguindo-se a impossibilidade pertinente ao inadimplemento absoluto enquanto as causas fáticas (quando o objeto da prestação perecer) ou jurídicas (prestação inviabilizada por norma jurídica), a quem ela se apresenta em relativa (subjetiva) ou absoluta (objetiva) e conforme o conteúdo da prestação em total ou parcial. Sendo relativa (ou subjetiva) a impossibilidade quando somente ocorrer sobre o devedor, podendo terceiro realizar a prestação, e absoluta (ou objetiva) quando a prestação for inviabilizada para qualquer sujeito. E finalmente, pode ser total a impossibilidade que recaia sobre a totalidade da prestação e parcial quando apenas um fragmento da prestação (que pode ter vários objetos ou apenas um objeto cindível) se tornar inviabilizado.[32]
Já a mora, em via de regra, manifesta-se por um retardamento, sendo a imperfeição no cumprimento da obrigação em tempo, lugar e forma. Não realizada a prestação, porém, sendo ainda possível seu cumprimento e satisfação do interesse do credor, não há impossibilidade (inadimplemento absoluto), mas sim mora debitoris ou creditoris (conforme o caso). Mora, desta feita, é o retardo culposo no pagamento regular da obrigação (mora solvendi) por parte do devedor ou a recusa injustificada ou simples omissão de atos do credor no recebimento da prestação, sem impossibilidade de solução posterior. Desta feita, distingue-se a mora do inadimplemento absoluto de acordo com a possibilidade ou impossibilidade de ser ainda cumprida a obrigação, todavia, esta possibilidade ou impossibilidade deve necessariamente referir-se ao credor no que diz respeito à possibilidade ou não de receber a prestação.[33]
Feitas estas considerações, cabe discutir e correlacionar a extensão do instituto da resolução contratual frente as possibilidades alternativas de cumprimento e complementação das prestações contratuais em consonância as implicações práticas de um conceito muito elástico de inadimplemento obrigacional. Em vista de se precisar os limites e pontos de choque desses institutos sobre o crivo questionador de sua possível abrangência quanto a possibilidade de provocar situações de abuso de direito e prejuízo, até mesmo mútuo, para qualquer uma das partes em relações contratuais cuja execução não ocorre de maneira exata de acordo com o previsto. Tendo, neste aspecto, a doutrina do adimplemento substancial como forma de refrear o uso abusivo da resolução contratual e mitigar a aplicação prática indiscriminada dos conceitos de inadimplemento obrigacional.
Tal doutrina tem seu nascedouro no sistema common law inglês, conhecido enquanto “substancial performance”, possuindo enquanto caso paradigmático o Bonee v. Eyre julgado em 1779 por Lord Mansfield. Seu surgimento ocorreu baseado na distinção entre tipos de obrigações diferentes, a “condition” e a “warranty”. Esta seria um mero elemento acessório do negócio jurídico como um todo, funcionando enquanto obrigação secundária, enquanto que a condition garantiria o direito à resolução por ser sua própria prestação um pressuposto ou condição do próprio negócio jurídico celebrado. No caso Bonee v. Eyre o pedido de resolução foi negado pelo fato de que a obrigação descumprida não foi uma condition.[34]
Com o passar do tempo, este novo instituto desenvolveu-se e foi adotado em diversos outros ordenamentos jurídicos. Chegando ao ponto em que a própria Convenção de Viena sobre Compra e Venda Internacional de Mercadorias estabelece em seu art. 25 que apenas se configura fundamental a violação causadora de prejuízo que prive a parte substancialmente daquilo que lhe era legítimo esperar do contrato.[35]
No sistema jurídico brasileiro, percebe-se que a doutrina do adimplemento substancial não é positivada expressamente pelo atual Código Civil de 2002 nem pelo Código do Direito do Consumidor. Funcionando enquanto uma regra implícita construída a partir de uma interpretação integradora dos princípios gerais contratuais, especialmente, da função social do contrato e da boa-fé objetiva. Apenas possível sua normatividade legítima no Direito Privado brasileiro por conta da série de evoluções decorrentes tanto no direito obrigacional como contratual.
Partindo segundo o antes já trabalhado, sabe-se que a noção tanto de adimplemento como de inadimplemento não mais se resumem a realização de apenas uma prestação momentaneamente feita cuja pontualidade extingue a partir de seu feito todo o vínculo jurídico entre as partes. Tais conceitos tornam-se mais elásticos e estendem-se para além da prestação principal. A própria compreensão de obrigação passa a transcender o dever específico de realização da prestação principal, superando a noção tradicional de submissão do devedor ao credor, e assim, a se realizar enquanto a totalidade dinâmica de uma relação jurídica voltada para uma finalidade cujo passar pelo tempo engloba um complexo de atos, posições e situações jurídicas correlacionados, abarcando então não só os direitos e deveres à prestação principal mas todos outros direitos e deveres anexos existentes antes, durante e depois a sua eventual formação.
Mais do que isso, a concepção contemporânea de relação jurídica, de acordo com o princípio da boa-fé, é a de uma ordem de cooperação, em que se aluem as posições tradicionais do devedor e do credor. A este não se deixa de reconhecer a posição de sujeito ativo da relação, não lhe cabe precipuamente efetivar a obrigação principal, todavia, em virtude da ordem de cooperação, lhe são incumbidos outras ordens de deveres vinculantes e dotados de sanção própria, como, por exemplo, a preclusão da pretensão de exigibilidade sobre a obrigação principal.[36] A realização da finalidade ultima da obrigação não se limita, portanto, a satisfação do interesse do credor compreendida estritamente como a prestação da obrigação principal.
Orientado estritamente pelo princípio da pontualidade, na visão tradicional, o adimplemento resumia-se a um ato pontual do devedor. Deste era indiferente o antes e o depois, para o Direito das Obrigações. Em sua releitura funcional e dinâmica como relação que se desdobra no tempo, urge reconhecer a forma processual de atos encadeados que tendem ao adimplemento do dever. Não obstante a utilidade científica decorrente da análise cindida das fases da obrigação enquanto Schuld (débito) e Haftung (responsabilidade), as partes vivenciam a obrigação como um processo constante com efeitos psicológicos e econômicos que se prolongam para além do adimplemento pontual. Ao devedor exige-se não apenas a prestação no momento justo, como também sua efetuação a tempo e de modo a alcançar de forma mais plena o propósito comum essencial a existência do negócio jurídico. Já ao credor, em vista de perseguir a finalidade em comum, compete não atentar contra a relação que o conecta ao devedor, enquanto o resultado alcançado ainda puder ser obtido.[37]
Contemporaneamente, a funcionalidade passa a ser caráter essencial ao adimplemento, para que este realize os efeitos essenciais do negócio jurídico celebrado concretamente entre as partes. De modo que o adimplemento não se dirige para a satisfação arbitrária do credor, todavia, para o atendimento de sua função socioeconômica, identificada com o próprio avençado entre as partes. Transcende-se a estrutura (forma e conteúdo) do negócio para se perquirir a sua função, impondo-se o atendimento a uma “causa em concreto”, ou seja, aos interesses efetivamente perseguidos pelas partes com a regulamentação contratual. É o acolhimento a esta função concreta do negócio que define o adimplemento, suplantando-se o cumprimento meramente estrutural da prestação principal contratada. Portanto, o cumprimento meramente estrutural da prestação principal não configura adimplemento visto que se exige atenção à função concreta do negócio celebrado. Todavia, a inadequação formal do devedor ao débito, tal como estruturalmente avençado pelas partes, não provocará inadimplemento, a partir do momento cujo escopo especificamente pretendido pelas partes com a constituição do vínculo obrigacional for atendido.[38]
Dentre estas novas construções doutrinárias responsáveis por proteger pragmaticamente as legítimas expectativas das partes, percebe-se que há uma margem de confusão considerável entre a prestação que viola formalmente a estrutura da relação obrigacional mas realiza plenamente o adimplemento, satisfazendo o credor, e o inadimplemento que possui em seu âmago a plena realização da prestação principal, contudo, de acordo com a conduta da parte devedora, fica impossibilitada a satisfação dos legítimos interesses da parte credora, lesando, então, a finalidade do negócio jurídico. Desta feita, cabe precisar o conceito e momento de formação destes fatos jurídicos por oposição, ou seja, salientando as suas características diferentes e seus aspectos causadores.