Do cumprimento imperfeito ao inadimplemento escasso.

Aplicação prática do adimplemento substancial e tutela dos interesses negociais

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21/02/2017 às 19:15
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4.     A abrangência do cumprimento imperfeito como fator de complexidade: da violação positiva do contrato ao adimplemento substancial.           

No gênero dos diferentes tipos de inadimplementos, o cumprimento imperfeito é o ramo das violações contratuais por prestações incompletas ou defeituosas que pode gerar vários graus de insatisfação para com o credor. A mora, diferentemente deste, configura a ausência de prestação, a prestação tardia e realizada “fora de lugar”. Podendo então o contrato ser lesionado com o cumprimento de uma prestação imperfeita quanto ao modo de execução, seja porque desatende ao exigível para as circunstâncias, seja porque da prestação realizada pelo devedor resultam danos ao credor (violação positiva do contrato). Pressupondo então a existência de prestação sendo que efetivada contrariamente ao disposto em lei ou convencionado entre as partes. Realiza-se pela ofensa direta à própria prestação principal ou decorre do descumprimento da obrigação acessória, sendo esta violação causadora indireta de lesão à prestação principal, gerando, portanto, o seu desfazimento. Merece atenção o fato de que o cumprimento imperfeito somente permite a resolução contratual se demonstrada a violação substancial do contrato com perda do interesse do credor, em contrapartida, quando se realiza o adimplemento substancial da obrigação não há possibilidade de ser exercida a resolução, cabendo no máximo a indenização por perdas e danos.[39]

No que diz respeito à violação positiva do contrato, nota-se a peculiaridade de que além de ser pressuposto o cumprimento da prestação de modo imperfeito, nota-se que esta imperfeição não está em si mesma, mas sim no fato de causar ofensa ao interesse do credor. Abrangendo as hipóteses de execução defeituosa e violação dos deveres laterais a produzir danos específicos ocasionados ao credor pelo fato de ter existido a prestação defeituosa. Diferentemente do ocorrido na Alemanha, no Brasil, percebe-se que o conceito de mora é muito abrangente e flexível o suficiente para reduzir o campo de aplicação das hipóteses de cumprimento imperfeito, embora a distinção considerável entre estas duas hipóteses de inadimplemento. Contudo, a lei é omissa ao deixar de se referir sobre a ofensa quanto ao modo de prestação e sobre a violação aos deveres secundários, não tratando expressamente também sobre a quebra antecipada do contrato, hipóteses que são, em sentido amplo, fora do campo da mora e impossibilidade (inadimplemento absoluto).[40]

A teoria da violação positiva do contrato foi elabora por Hermann Staub em 1902, em razão de diversos debates existentes sobre o Código alemão de 1896 que só conhecia dois tipos de inadimplemento, sendo então lacunoso para uma miríade de casos cuja aplicabilidade de suas normas tornava-se uma aporia. Staub defendeu a teoria da violação positiva do contrato enquanto uma terceira via de inadimplemento quando demonstrado que diversas condutas praticadas por uma das partes na relação obrigacional seriam capazes de romper o vínculo jurídico sem que se pudesse vislumbrar uma violação à prestação principal. No caso brasileiro, não obstante a amplitude abarcada pelo conceito de mora, a teoria da violação positiva do contrato pode-se configurar sem qualquer impedimento. Devido ao fato de que a mora, independentemente de ser restrita ou ampla, relaciona-se exclusivamente ao cumprimento do dever principal, em outras palavras, só é possível se identificar algum inadimplemento relativo quando for violado algum dever principal à conformação da prestação.[41]

Destarte, é vista a violação positiva do contrato como o inadimplemento decorrente do descumprimento culposo de dever lateral, quando este não possuir vinculação direta com o interesse do credor na prestação. A doutrina brasileira entende haver violação positiva do contrato tão somente quando o dever lateral desrespeitado não estiver relacionado imediata e diretamente a prestação principal. A maior proeza de tal teoria foi a concepção dos deveres instrumentais como objeto de um inadimplemento específico apto a resolver o contrato, igualando-se, em termos práticos, à teoria da funcionalização do adimplemento.[42]

É válido pontuar que, embora a incidência do princípio da boa-fé seja um dos fatos jurídicos responsáveis por elevar a complexidade inter-obrigacional e redimensionar a aplicação dos institutos clássicos pertinentes aos contratos, de modo que produza efeitos propriamente normativos e orientadores para a garantia e tutela do cumprimento das obrigações laterais e a proteção contra o abuso de direito realizada pela limitação de direitos subjetivos e suporte argumentativo à doutrinas como as que se referem as formas de cumprimento imperfeitas. Cabe a reflexão de que a boa fé, em sua abstração e generalidade, não constitui o fator gênese de criação destes institutos (não ignorando seu papel colaborativo dentro do contexto de surgimento desses), todavia, seu eixo de orientação e vinculação, servindo objetivamente enquanto regra (de orientação) de conduta.

Nas palavras de Menezes Cordeiro ao discorrer sobre a aproximação formal quanto ao sentido material implicado nas figuras dos deveres acessórios e da violação positiva do contrato:

“Na lógica comum, essa substancialidade adviria da chamada concretização da boa fé, implicada, como se viu, na gênese dos deveres acessórios. Não foi isso o que sucedeu. A substância dos institutos em jogo não proveio das congeminações abstractas, tecidas em torno da estrutura do vínculo obrigacional, as quais nada ganharam, aliás, em precisão, ao ser conectadas com a boa fé, mas antes da aproximação entre a violação positiva do contrato, ditada pelas necessidades práticas e de natureza periférica, e as representações centrais articuladas na complexidade intra-obrigacional. Há, por isso, que partir de concretizações prévias e, daí, ponderar o sentido da boa fé.”{C}[43]{C}

Substancial é o adimplemento, que mesmo em sua parcialidade, possui nível suficiente a satisfazer o crédito, não se lhe aplicando as consequências da mora, principalmente a da resolução do negócio jurídico. Tal espécie de adimplemento extingue a dívida e libera o devedor, no limite do que foi efetivamente prestado, considerado substancial, e desde que o restante não adimplido, por razões justificáveis ou de litígio, não comprometa a satisfação de toda a dívida, sendo restante não adimplido considerado insignificante ou residual. Construção doutrinária e jurisprudencial que realiza os princípios da função social do negócio jurídico e da equivalência material de direitos e deveres dos participantes, invertendo, desta forma, a primazia do inadimplemento para o adimplemento ou satisfação objetiva e essencial do crédito, segundo o princípio da conservação do negócio jurídico. Tendo por finalidade o restabelecimento da equidade contratual para que não se legitime o enriquecimento sem causa ao se considerar de forma absoluta o princípio do pacta sunt servanda.[44]

O suporte fático orientador a esta doutrina, como fator desconstitutivo do direito de resolução do contrato por inexecução obrigacional, é o incumprimento insignificante. Não haverá inadimplemento imputável para resolver o contrato quando o adimplemento parcial refletir, em sua margem de alcance, a finalidade do avençado, na proporção razoável das obrigações concretizadas. Tal insuficiência obrigacional é relativizada quando confrontada com a função social do contrato, de modo que a resolução contratual por inadimplemento é sopesada em detrimento ao pressuposto do atendimento quase integral das obrigações pactuadas.[45]

Segundo Anelise Becker:

“O inadimplemento é fundamental quando o essencial da prestação não foi cumprido, pelo que não foram atendidos os interesses do credor, facultando-se-lhe a resolução do negócio. Neste caso, esta é legítima porque ele se estará protegendo da possibilidade de adimplindo integralmente, ver-se privado da contraprestação, o que comprometeria a economia do contrato e ensejaria o enriquecimento ilícito do devedor inadimplente. ”{C}[46]{C}

Quanto a questão do inadimplemento, diante das inúmeras formas indeterminadas e imprevisíveis de insatisfação do credor, a doutrina formulou distinções de acordo com o valorado segundo a violação contratual. Se é possível de distinguir o inadimplemento relativo cuja purgação da mora mediante cumprimento viável tardiamente extrema-se do inadimplemento absoluto, no sentido de que a prestação principal se encontraria impossível de ser atendida, por outro lado, pode-se também chegar ao inadimplemento insignificante. Este, partindo se sua reduzida extensividade, contemplo a doutrina do adimplemento substancial enquanto situação inibitória ao exercício do direito formativo de resolução contratual. Destarte, o incumprimento defeituoso depende de uma inexecução qualitativamente deficitária, ou seja, representativa de maior gravidade de acordo com as circunstâncias concretas, não devendo mostrar-se insignificante dada a possibilidade de ensejar a resolução do contrato. Posto que a aplicação da teoria do adimplemento substancial, em seu desfecho lógico, ao manter o contratante atrelado a concretização do contrato, apenas permite-se a solução de sua não integralidade por meio da via reparatória.[47]

Deve ser salientado que o adimplemento substancial não pode servir de pretexto para o descumprimento sistemático dos contratos, pondo em risco a segurança jurídica. Sua finalidade se realiza ante a valorização do adimplemento quanto a sua substancialidade ou essência, de modo que o negócio jurídico não pode ser instrumentalizado a ponto de promover o ganho indevido a uma parte e lesão a outra, já que em suas raízes encontra-se a expressão da justiça comutativa ou social, ao próprio equilíbrio inter partes. De acordo com sua elaboração por parte da doutrina inglesa no século XVIII, essa enquanto substancial performance, em vista de sua aplicação, são exigidos três requisitos por parte dos tribunais ingleses e americanos: 1. Proximidade entre o efetivamente realizado e aquilo que estava previsto no contrato; 2. A prestação imperfeita deve satisfazer os interesses do crédito; 3. O esforço ou a diligência do devedor em adimplir integralmente. Questiona-se seriamente este ultimo requisito visto que a tendência atual considera o adimplemento substancial sob teorias objetivistas.[48]

Portanto, quanto ao gênero de cumprimentos imperfeitos do dever principal da relação obrigacional, percebe-se que o adimplemento substancial diferencia-se de figuras como a violação positiva do contrato e o inadimplemento antecipado com base justamente na qualidade da violação ou forma de inadimplemento sobre as legítimas expectativas derivadas da estrutura jurídica da obrigação principal. Sendo, portanto, crucial a diferenciação entre adimplemento “ruim” ou insatisfatório e inadimplemento insignificante.[49]

O primeiro violaria os deveres gerais de conduta ou deveres laterais inerentes à relação jurídica obrigacional, de modo que indiretamente lesaria a própria qualidade da prestação principal, perecendo, por consequência, a satisfação do interesse do credor ou causando até impossibilidade de cumprimento da obrigação principal por perecimento de seu objeto. Enquanto que o segundo violaria o princípio da pontualidade pertinente ao adimplemento, havendo, então, um descumprimento meramente formal na estrutura da obrigação principal, não obstante, ainda seria possível a sua realização em consonância com a concretização da finalidade do negócio jurídico e a subsequente satisfação do interesse do credor. Percebe-se, pois, que estas duas modalidades de inadimplemento diferenciam-se de acordo com a qualidade da lesão à prestação principal e a sua possibilidade de realização à partir da violação do avençado entre as partes.

Cabe pontuar que, esta distinção, embora aparentemente nítida, quando tratada frente ao caso concreto facilmente leva a situações fronteiriças, ou seja, passa a demandar critérios mais estáveis e precisos de identificação e aplicação destas diferentes teorias. Levando-se em consideração que o adimplemento ruim ou insatisfatório pode, à depender de seu contexto, transmutar-se em inadimplemento insignificante, desde que não sejam violados definitivamente os legítimos interesses que surgem da respectiva relação obrigacional, cabendo então reparação. Desta feita, tal forma de violação contratual (adimplemento insuficiente) seria uma hipótese de configuração fática com consequências dentre as quais pode estar situado o desenho do adimplemento substancial. Deste feita, encontra-se a aplicação da doutrina do adimplemento substancial ante uma nebulosidade muito sensível, visto que à depender do caso concreto, um modelo de inadimplemento pode muito bem ser considerado como outro.[50]

No contexto do ordenamento jurídico brasileiro, por não existir positivação expressa e qualquer forma de regulamentação legal à respeito da doutrina do adimplemento substancial. Percebe-se que este constitui-se segundo processos hermenêuticos realizados pelos tribunais com base nos princípios gerais do Direito Privado. Desta feita, sua natureza jurídica decorre especialmente da incidência do princípio da boa-fé objetiva e da função social dos contratos (derivada à partir da função social da propriedade), sendo que, por conta da alta generalidade e abstração pertinente a estas cláusulas gerais, cabe aos órgãos de aplicação definir os parâmetros pertinentes a concretização normativa deste instituto.

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A boa-fé, enquanto um dos princípios mais influentes no direito contratual contemporâneo representa um standard comportamental nos contratos, enquanto modulador das condutas dos contratantes. Exigindo condutas dotadas de probidade, honestidade, lealdade e confiança em todas as fases contratuais, proibindo-se a adoção de posturas contraditórias pelas partes (proibição do venire contra factum proprium). Sendo exercidas pela boa-fé objetiva, basicamente uma tríplice função primordial: cânone de interpretação do negócio jurídico, limita o exercício de direitos subjetivos e impõe norma de conduta aos contratantes no processo obrigacional.[51]

No que diz respeito à questão do adimplemento substancial. A boa-fé objetiva constitui importante diretriz para a interpretação, integração de lacunas e imprecisões nos contratos, como limitação ao exercício desproporcional de direito subjetivos e para o adimplemento das obrigações. Devendo as partes comportar-se de modo a respeitar os interesses do outro parceiro contratual no esforço de conduzir a obrigação para o adimplemento, pois este é o fim almejado para toda relação obrigacional. Em vista de realizar, pois, outro fim otimizado pela boa-fé objetiva, a teoria da confiança, que visa proteger as expectativas dos contratantes em suas relações contratuais. De modo que ao se interpretar as declarações de vontade pertencentes ao negócio jurídico, leva-se em conta, para além da vontade meramente expressa, a sua legítima expectativa produzida, analisando todo o contexto e elementos circunstanciais complementares ao negócio jurídico, a fim de se obter o significado da declaração de vontade apto a ser inferido por seu receptor. Não se levando em conta, dessa forma, apenas a vontade do emissor da declaração de vontade, como também a expectativa legitimamente gerada para com o receptor desta.[52]

Neste contexto, percebe-se que, uma das principais razões da boa-fé objetiva servir enquanto fundamento jurídico para a concretização da doutrina do adimplemento substancial está na proteção do devedor da relação jurídica quanto ao abuso de direito ou uso abusivo do direito de crédito pelo credor. Exercer um direito não é apenas ater-se a sua estrutura formal, mas cumprir o fundamento axiológico-normativo onde este direito está constituído. Portanto, a caracterização do ato abusivo depende dos limites estabelecidos ao exercício do direito subjetivo e, no reconhecimento da relatividade do direito, desde que se faça uma valoração adequada sobre a conduta.  Concluindo-se que o indivíduo, no exercício de um direito que lhe foi outorgado ou posto à disposição, deve conter-se dentro dos limites da ética, do contrário, passa a caminhar do lícito para o ilícito e do exercício regular para o exercício abusivo de seu direito.[53]

 Já no que diz respeito à função social do contrato, pressupõe-se que a propriedade é o segmento estático da atividade econômica, enquanto o contrato é seu segmento dinâmico. Assim, a função social da propriedade afeta necessariamente o contrato, como instrumento que a faz circular. De modo que é inviável a pura aplicação dos princípios liberais contratuais do Estado Liberal, visto que, pelo ponto de vista constitucional, há uma tutela explícita da ordem econômica e social. O art. 170 da Constituição estabelece que toda atividade econômica (o contrato é seu instrumento) submete-se à primazia da justiça social, devendo, então, os interesses individuais das partes contratantes serem exercidos em conformidade aos interesses sociais (quando estes se apresentarem no caso concreto). Tal princípio possui como ponto de choque mais comum a liberdade de contratar, esta entendida enquanto um desdobramento do princípio da autonomia privada, não servindo apenas de limite externo ou negativo, como também limite positivo, determinando até o próprio conteúdo da liberdade contratual.[54]

Ante à incidência do princípio da função social do contrato sobre casos de resolução contratual em razão do inadimplemento mínimo causado por uma das partes, faz-se necessário a análise tanto dos elementos pertinentes ao negócio jurídico com efeito entre as partes (intrínseco) como externo (extrínseco). A harmonização entre os princípios da autonomia privada e função social do contrato provoca invariavelmente um controle externo sobre o negócio jurídico ao invocar sua causa (compreendida enquanto finalidade) que representa uma função socioeconômica sendo fonte normativa da determinação de limites impostos aos direitos subjetivos em vista de servir enquanto ultimo recurso a garantir requisitos mínimos e necessários a serem seguidos por qualquer contrato. A causa ou finalidade do contrato, neste contexto, coíbe os excessos no exercício dos direitos subjetivos, exaltando a função socialmente relevante do negócio-tipo em questão.[55]

Neste sentido, representa a teoria do adimplemento substancial uma limitação ao direito de resolução do contratante não inadimplente, limite este que toma forma quando o incumprimento se quantifica quando de menor gravidade, não perecendo, desta feita, a função socioeconômica da contratação. Logo, quando substancialmente adimplida a obrigação, o pedido de resolução não trará nenhum benefício legítimo ao próprio credor, apenas prejudicando o devedor, cujos esforços por satisfazer a totalidade da obrigação serão desconstituídos até o status quo ante. Em tal hipótese, o direito à resolução seria formalmente válido, porém, seu exercício se configuraria de forma abusiva, ofendendo o sentimento de justiça dominante na comunidade social.[56]

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Sobre o autor
Rodrigo Tenório

Graduando da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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