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Que constitucionalismo queremos?

Entre reformas constitucionais e promessas não cumpridas

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A crise financeira do Estado desaguou na adoção de medidas voltadas a conter os gastos públicos necessários à efetivação dos direitos sociais garantidos na Constituição da República. Contudo, até onde se pode alterar o Projeto Constituinte? Eis a questão.

As Constituições não decorrem, pura e simplesmente, de uma opção teórica formulada em um determinado momento. Com efeito, nascendo vinculadas às tradições da sua comunidade, elas consubstanciam um conjunto de decisões a respeito do papel do direito e da política na sociedade.

Assim como a revolução das ideias sempre precede as reivindicações das ruas, às Constituições também precedem causas de diferentes matizes. Ademais, na perspectiva da “historicidade dos direitos” [1], as Constituições nunca nasceram de uma única vez (como um “estampido isolado no tempo, ou uma criação do direito a partir do nada”, na expressão de Gomes Canotilho [2]), nem de uma vez por todas.

Sem embargo dos horizontes em que verificados, os movimentos constitucionais clássicos e contemporâneos sempre buscaram dar respostas às questões indefinidas ou mal definidas na sociedade. Nesse sentido, entre conservantismos e progressos as Constituições se sucedem no tempo, enevoadas em auspiciosos projetos de Estado. Uma verdadeira odisseia constituinte.

Nessa ordem de ideias, afigura-se claro que as Constituições são consequências de necessidades permanentes, e elas explicitam os compromissos que uma sociedade se encontra disposta a firmar no seu presente, de modo a, refletindo acerca do seu passado, garantir um futuro melhor [3].

Destarte, entre memórias e expectativas, o momento constituinte se caracteriza como um instante mágico de renascimento do Estado, de sua (re)formulação consoante as novas aspirações da comunidade que ele nasce para servir e dirigir.

Por isso mesmo, como observa Ernane Salles da Costa Junior e Marcelo Campos Gallupo, as Constituições prescrevem palavras de ordem criadora, imprimindo existência àquilo que elas anunciam, mediante promessas [4]. Sem formar projetos conteudísticos, prontos e acabados, as promessas constitucionais se abrem a diferentes concepções de vida, ajustando-se, assim, às expectativas de cada um dos seus destinatários, em regime de total e absoluta pluralidade.

Nesse sentido, as Cartas Constitucionais democráticas contemporâneas possuem um inescondível caráter simbólico, em ordem a revelar o surgimento de um novo Estado, e com ele um novo projeto coletivo de “vida boa”. Por isso, é comum que se veicule no Preâmbulo da obra constitucional, verdadeira antessala da Lei Maior, os objetivos e fundamentos em razão dos quais o povo novamente se emancipa, sai do estado de latência para, uma vez mais, reorganizar o Estado que ele mesmo constitui e chama à existência.

Em nossa crônica político-constitucional, a Constituição da República de 1988 bem representa o que vimos de ressaltar. Além de explicitar os valores que norteiam a Lei Fundamental do Estado, logo no seu pórtico de entrada, o constituinte originário, em verdadeira manifestação superior de compromisso ético-jurídico, veiculou, no art. 3.º da Carta, um rol de objetivos fundamentais revestido de alto caráter compromissório.

Dentre os aludidos objetivos, verdadeiras promessas constitucionais da modernidade, encontra-se o ideal de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem assim o da erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução de todas as formas de desigualdades sociais e regionais.

A toda evidência, e sem olvidar os inúmeros avanços sociais desde a promulgação da Constituição, o Brasil, notadamente os Poderes Legislativo e Executivo, encontra-se em inequívoco estado de endividamento com as promessas que assumiu e que foram veiculadas em nossa Lei Fundamental. Este preço ainda não foi pago, e o futuro prenunciado pela Constituição ainda se afigura distante.

Neste estado de coisas, sem embargo da necessidade de recuperar a saúde fiscal do Estado, revela-se preocupante a aprovação, às carreiras, pelo Congresso Nacional, da Emenda Constitucional da Limitação dos Gastos Públicos, veiculada no que denominado de Novo Regime Fiscal.

Em apertada síntese, com pretensão derrogatória sobre a vinculação constitucional de gastos públicos do Governo Federal, sobretudo na área de direitos sociais como saúde e educação, a indigitada EC 95/2016 limita o montante global de despesas primárias dos Poderes da União, bem assim de outros órgãos de caráter federal independentes, pelo prazo de 20 (vinte) anos.

À revelia das vozes que provêm das ruas, a mencionada proposta implementa o que, no dizer de Lenio Luiz Streck, considera-se como uma constituição dirigente em países de modernidade tardia. É dizer: a reforma constitucional, ora implementada, desafia as promessas que a própria Constituição garante em seu texto, retirando-lhe, pois, o próprio substrato dirigente que assumiu na prancheta constituinte.

A concretizar o projeto dirigente forjado na Constituição, os órgãos representativos caminham em outra direção, substituindo-a, enevoando a sua derrocada em auspiciosos regimes de contenção de recursos. Desconsideram, contudo, que subtrair da Constituição, ainda que de modo não desvelado, a realização das promessas que ela própria garante, é torná-la coisa morta, corpo sem alma a gravitar na imensidão do universo jurídico.

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Como enfatiza Carlos Ayres Britto, ante a Constituição é preciso tocar nas suas normas com delicadeza de quem lida com peças de cristal [5]. A promulgação da Emenda em evidência revela, de modo bastante agudo, mais um ciclo de ruptura na crônica constitucional brasileira em que os órgãos representativos despojam a Constituição da sua identidade constitucionalmente conformada, desatendo-a, sob o pretexto de estar a salvar o País, segundo as novas exigências de (in)certos momentos.


Notas

1 Conforme observa Noberto Bobbio, a historicidade dos direitos se expressa em razão do processo de seu reconhecimento e positivação não ter se concretizado, em termos precisos, em um determinado momento no tempo. Antes, “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez, nem de uma vez por todas”. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 22.

2 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra (PT): Almedina, 2003, p. 1003.

3 A este respeito, Pinto Ferreira salienta que “a Constituição espelha um compromisso entre as tendências progressistas e conservadoras do grupo social, quando não se desgarra para as fórmulas extremistas de solução político-econômica”. FERREIRA, Luis Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. 6. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1983, p. 27.

4 COSTA JUNIOR, Ernane Salles; GALUPPO, Marcelo Campos. A democracia como promessa: entre a imprescindibilidade do cálculo e a experiência aporética da justiça. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; MACHADO, Felipe Daniel Amorim (org). Constituição e Processo: a resposta do constitucionalismo à banalização do terror. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 428.

5 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 99.

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Sobre o autor
Gabriel Junior Januário da Silva

Bacharel em Direito. Advogado, com experiência em Direito Administrativo, Constitucional, Penal e Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Gabriel Junior Januário. Que constitucionalismo queremos?: Entre reformas constitucionais e promessas não cumpridas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5007, 17 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56240. Acesso em: 22 dez. 2024.

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