Curandeirismo e extorsão

13/03/2017 às 12:09
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Em recente decisão, o STJ considerou a ameaça de emprego de forças espirituais para constranger alguém a entregar dinheiro como crime de Extorsão.

Anoto do blog  interesse público, na Folha de São Paulo:

“Em decisão unânime, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou que a ameaça de emprego de forças espirituais para constranger alguém a entregar dinheiro é apta a caracterizar o crime de extorsão, ainda que não tenha havido violência física ou outro tipo de ameaça. 

Seguindo o voto do relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a turma negou provimento ao recurso de uma mulher condenada por extorsão e estelionato.

De acordo com o processo, a vítima contratou os serviços da acusada para realizar trabalhos espirituais de cura. A ré teria induzido a vítima a erro e, por meio de atos de curandeirismo, obtido vantagens financeiras de mais de R$ 15 mil.

Tempos depois, quando a vítima passou a se recusar a dar mais dinheiro, a mulher teria começado a ameaçá-la. De acordo com a denúncia, ela pediu R$ 32 mil para desfazer “alguma coisa enterrada no cemitério” contra seus filhos.

Segundo informa a assessoria de imprensa do STJ, o caso aconteceu em São Paulo. A ré foi condenada a seis anos e 24 dias de reclusão, em regime semiaberto. Foi determinada a execução imediata da pena, por aplicação do entendimento do Supremo Tribunal Federal de que seu cumprimento pode se dar logo após a condenação em órgão colegiado na segunda instância.

No STJ, a defesa pediu sua absolvição ou a desclassificação das condutas para o crime de curandeirismo, ou ainda a redução da pena e a mudança do regime prisional. Segundo a defesa, não houve qualquer tipo de grave ameaça ou uso de violência que pudesse caracterizar o crime de extorsão. Tudo não teria passado de algo fantasioso, sem implicar mal grave “apto a intimidar o homem médio”.

Para o ministro Rogerio Schietti, no entanto, os fatos narrados no acórdão são suficientes para configurar o crime do artigo 158 do Código Penal.

“A ameaça de mal espiritual, em razão da garantia de liberdade religiosa, não pode ser considerada inidônea ou inacreditável. Para a vítima e boa parte do povo brasileiro, existe a crença na existência de forças sobrenaturais, manifestada em doutrinas e rituais próprios, não havendo falar que são fantasiosas e que nenhuma força possuem para constranger o homem médio. Os meios empregados foram idôneos, tanto que ensejaram a intimidação da vítima, a consumação e o exaurimento da extorsão”, disse o ministro.

Em relação à desclassificação das condutas para o crime de curandeirismo, previsto no artigo 284 do Código Penal,o ministro destacou o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo de que a intenção da acusada era, na verdade, enganar a vítima e não curá-la de alguma doença.

“No curandeirismo, o agente acredita que, com suas fórmulas, poderá resolver problema de saúde da vítima, finalidade não evidenciada na hipótese, em que ficou comprovado, no decorrer da instrução, o objetivo da recorrente de obter vantagem ilícita, de lesar o patrimônio da vítima, ganância não interrompida nem sequer mediante requerimento expresso de interrupção das atividades”, explicou Schietti.

Schietti entendeu acertada a decisão do tribunal paulista de considerar na dosimetria da pena a exploração da fragilidade da vítima e os prejuízos psicológicos causados.”

Praticou-se, no caso, o crime de extorsão.

O Código Penal de 1830 não previa a extorsão. O Código Penal de 1890, inspirado no Código de 1889, equiparava, para igual tratamento penal, a extorsão mediante sequestro, a extorsão propriamente dita e a pseudo-extorsão, que definia: “obrigar alguém, com violência ou ameaça de grave dano à sua pessoa ou bens, a assinar, escrever ou aniquilar, em prejuízo seu ou de outrem, um ato que importe efeito jurídico(artigo 362, § 2º).

Dispõe o artigo 158 do Código Penal: “Constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa”.

Para Guilherme de Souza Nucci(Código penal comentado,8ª edição, pág. 737), a extorsão é uma variante patrimonial muito semelhante ao roubo, pois também implica numa subtração violenta ou com grave ameaça de bens alheios. Explica que a diferença concentra-se no fato de a extorsão exigir a participação ativa da vítima fazendo alguma coisa, tolerando que se faça ou deixando de fazer algo em virtude da ameaça ou da violência sofrida. Assim enquanto no roubo o agente atua sem a participação da vítima, na extorsão o ofendido colabora ativamente com o autor da infração penal.

O objeto da tutela jurídica neste crime é o patrimônio, bem como a liberdade e a incolumidade pessoal.

Os sujeitos ativos podem ser quaisquer pessoas. Sendo funcionário público a simples exigência de uma vantagem indevida em razão da função caracteriza o delito de concussão previsto no artigo 316 do Código Penal. Se o agente constrange alguém com o emprego de violência ou mediante grave ameaça, para obter proveito indevido, não pratica unicamente o crime de concussão, indo mais além, praticando um crime de extorsão(RT 329/100, 435/296, 475/276, 714/375).

É vítima aquele que é sujeito à violência ou ameaça, o que deixa de fazer ou tolerar que se faça alguma coisa, e, ainda, o que sofre o prejuízo jurídico.

Para Heleno Cláudio Fragoso(Lições de direito penal, parte especial, 7ª edição, pág. 306) a ação incriminada é, fundamentalmente, um constrangimento ilegal, que se pratica com o fim de se obter indevida vantagem econômica. Consiste em constranger alguém a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. Diz ele que o processo executivo da extorsão deverá ser a violência ou grave ameaça. Ora, são precisamente os meios de execução  que distinguem este crime do estelionato, pois, neste último, a vantagem indevida se obtém mediante fraude, pois o agente induz o lesado em erro, levando-o, assim, a praticar a ação que pretende.

Ensinou Nelson Hungria(Comentários ao Código Penal, volume VII, pág. 69 e 70) que “uma das mais frequentes formas de extorsão é a praticada mediante ameaça de revelação de fatos escandalosos ou difamatórios, para coagir o ameaçado a comprar o silêncio do ameaçador. É a chantagem, dos franceses, ou blackmail dos ingleses”.

Certamente o constrangimento deve ser praticado com o propósito de obter, para si ou para outrem, indevida vantagem econômica. A questão do momento consumativo deste crime, perante a lei brasileira, levou a Magalhães Noronha(Crimes contra o patrimônio, I, 224) entender ser necessário a consumação, assim como algumas decisões(RF 181/343), para que o agente obtenha efetiva vantagem patrimonial. Nelson Hungria(obra citada, volume VII, pág. 71) e Oscar Stevenson (Direito penal, 1948, 36) entenderam que ser o crime formal, consumando-se com o resultado do constrangimento, sendo, para isso, irrelevante que o agente venha ou não a conseguir a vantagem pretendida.

Para Heleno Cláudio Frangoso(obra citada, pág. 307) não se exige que o agente tenha conseguido o proveito que pretendia. O crime se consuma com o resultado do constrangimento, com a ação ou omissão que a vítima é constrangida a fazer, omitir ou tolerar que se faça, sendo um crime de perigo. Sendo assim o Código Penal brasileiro ficou longe do modelo adotado nos Códigos Penais da Suíça e da Itália e inspirou-se no antigo § 253 do CP alemão, que foi modificado por lei de 29 de maio de 1943. Para essa corrente, o momento consumativo independia da obtenção da vantagem pretendida.

Porém, a nova redação dada ao §253 passou a exigir que surja a vantagem patrimonial, para que o crime se consuma, orientação que é a mesma na Itália. A tendência seria considerar a extorsão um crime material cuja consumação dependeria do efetivo dano ao patrimônio. No Brasil, há jurisprudência no sentido de que é irrelevante que o agente obtenha a vantagem indevida, bastando para a configuração do crime a simples atividade ou omissão da vítima(RT 447/394, 462/393, 513/412, dentre outros).

O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 96, onde se diz que: “crime de extorsão consuma-se independentemente de obtenção da vantagem indevida”. Mesmo formal é possível se pensar na hipótese de tentativa, uma vez que o crime não se perfaz em ato único. Ocorre a tentativa quando a ameaça não chega ao conhecimento da vítima(RT 338/103), quando esta não se intimida(RT 525/432) ou quando o agente não consegue que ela faça, tolere que se faça ou deixe de fazer alguma coisa(RT 481/363, 498/357, dentre outros).

O ato juridicamente nulo, que nenhum benefício de ordem econômica pode produzir, não configura o crime de extorsão. Haverá um crime impossível, sendo o agente punido por constrangimento ilegal. Bem alerta Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, volume II, 25ª edição, pág. 235) que pode-se figurar a hipótese de que o agente obtenha uma vantagem econômica pela prática de ato nulo(o pai resgata um documento em que há confissão da dívida de filho menor, que foi coagido a assiná-la, para honrar o nome da família).  

A vantagem obtida no crime de extorsão há de ser indevida, pois se o agente tivesse direito haveria configuração de um crime de exercício arbitrário das próprias razões(RT 422/300, 467/391, 586/380). De toda sorte, deve a conduta visar a uma vantagem econômica injusta.

Distingue-se a extorsão do roubo. Para a extorsão deve haver para a vítima alguma possibilidade de opção, o que não ocorre quando dominada por agentes, é obrigada a entregar as coisas exigidas. No roubo, o mal é a violência física iminente e o propósito contemporâneo, enquanto na extorsão o mal é de ordem moral, futuro e incerto, como futura é a vantagem a que se visa(RT 454/430).

Por sua vez, na extorsão, há a entrega da coisa, conquanto não a queira entregar. No estelionato, a vítima, de boa vontade, faz a entrega da coisa por estar iludida, sendo o seu consentimento viciado(RT 505/357). Já se entendeu que responde por extorsão, o agente que se intitula policial para, mediante ameaça, obter vantagem ilícita dos particulares(RT 586/309). É irrelevante se com a ameaça ou a violência concorrer ainda a fraude. Responde por extorsão que, fazendo-se fazer por fiscal, sob pretexto de irregularidades em estabelecimento mercantil, ameaça o comerciante de fechar-lhe a casa, obtendo, desse modo, ilícita vantagem patrimonial (Julgados TACSP, 25/1-71).

No crime de extorsão é admitida a continuidade quando se trata de crime contra diversas pessoas(RT 554/377). Já se entendeu que se a vantagem econômica é obtida de forma parcelada, ocorre uma única ação desdobrada em atos sucessivos, o que impede o reconhecimento da continuidade delitiva, sendo caso de crime único(RJTDACRiM 21/93-94).

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O tipo subjetivo é o dolo , na vontade de constranger, mediante ameaça ou violência, ou seja, a vontade de coagir a vítima fazer, deixar de fazer, tolerar que se faça alguma coisa, dolo específico, a vontade de obter uma vantagem econômica ilícita, constituindo esta corolário da ameaça ou violência(RT 381/150).

Muito diverso é o crime de curandeirismo.

Art. 284 - Exercer o curandeirismo:

- prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;

II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;

III - fazendo diagnósticos:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

Parágrafo único - Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica também sujeito à multa.

Mais um crime de menor potencial ofensivo sob o qual pode ser utilizado o benefício da transação penal.

O Código Penal de 1890 dispunha; “Ministrar ou simplesmente prescrever, como meio curativo para uso interno ou externo, e sob qualquer forma preparada, substância de qualquer dos reinos da natureza, fazendo, assim, o oficio denominado curandeiro”. A pena era de prisão celular, por um a sete meses, e multa.

Na lição de Nelson Hungria(Obra citada volume IX, pág. 154) enquanto o exercente ilegal da medicina tem conhecimentos médicos, embora  não esteja devidamente habilitado para praticar a arte de curar, o charlatão pode ser o próprio médico que abastarda a sua profissão com falsas promessas de cura, o curandeiro é o ignorante, sem elementares conhecimentos da medicina, que se arvora em debelador de males corpóreos.

Assim pratica o crime de curandeirismo e não homicídio culposo aquele que convence doente de grave moléstia a deixar o hospital em que se achava internado para tratamento, prometendo-lhe a cura através de unções de manteiga, vindo o mesmo a falecer(RT 458/365).

Já se decidiu pelo concurso formal entre curandeirismo e estupro na conduta do curandeiro que, sob pretexto de possuir poderes sobrenaturais e afastar a vítima de “encosto” dos maus espíritos, mantém com ela conjunção carnal(RT 255/334).

O sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa, porém, não o médico, nem pessoa que tenha conhecimentos médicos, embora não legalmente habilitada. O crime é sempre praticado por curandeiro, pessoa ignorante, rude, sem conhecimento médico qualquer e que se cuida à  cura de doenças por meios extravagantes e grosseiros, como ensinava Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 269).

A habitualidade é elemento constitutivo do crime, nela residindo o perigo para a saúde pública. Não se admite a tentativa.

A ação criminosa consiste em:

a)      Prescrever(receitar, recomendar, ministrar ou aplicar qualquer substância vegetal(vegetal, animal, mineral), pertença ou não a qualquer farmacopeia oficial, tenha ou não virtudes medicinais;

b)      Usar palavras, gestos ou qualquer outro modo para contemplar a atividade misteriosa e o recurso à magia;

c)       Fazendo diagnósticos, não se exigindo qualquer ação de cura, pois o simples diagnóstico se configura em crime(RT 516/345).

Discute-se a confusão entre o curandeirismo e a prática religiosa. A esse respeito, mister que se lembre a lição de Nelson Hungria(obra citada, volume VI, pág. 155-156):

“ Sem dúvida alguma, há de tolerar-se o espiritismo como religião ou como filosofia. Não se pode vedar a crença nos seus postulados(existência de Deus, da alma e do “corpo etéreo”, imortalidade do espírito e sua evolução por estágios sucessivos, comunicação entre este mundo e dos espíritos, reencarnação, etc); mas o que é de todo inadmissível é que, por certos fenômenos, já explicados pela ciência e que nada têm a ver com o sobrenatural, sejam empiricamente provocados, quando não simulados, por meio de truques já completamente desacreditados para o fim de tratamento de enfermidades”.

Há o entendimento de que se deve distinguir “o que é feito por devoção religiosa daquelas práticas que infringem a disposição penal”. Desta forma se a cura é pedida comunitariamente, através de orações, pura questão de fé, a prática não configura o delito de curandeirismo, em respeito à liberdade de culto que é assegurada pela Constituição(RT 446/414, 452/406, 577/384, 642/314). Os chamados “ passes”, que fazem parte do ritual e são espécie de benção para fins espirituais, não propriamente para fins curativos, não constituem o curandeirismo(RT 340/274, 404/282). Por certo, não constitui crime a prática do espiritismo como religião, como disse Antonio Motta Neto(Curandeirismo. Justitia 91/385).

Já se entendeu que é crime de curandeirismo o uso de passe ou a indicação ou doação de remédio aos doentes chamados benzedores, ainda que gratuitamente, não excluindo o ilícito a circunstância de ser o infrator um místico, um idealista, um caridoso(RT 205/704).

O tipo subjetivo é o dolo genérico, consistente na vontade conscientemente dirigida ao exercício do curandeirismo. Se houver fim de lucro, haverá aplicação adicional de pena de multa. Se ocorrer morte ou lesão corporal, de natureza grave, que ocorrerão como eventos  preterdolosos, aplica-se o artigo 258 do Código penal. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

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Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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