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Tabelionato de notas: um dinossauro na era digital

15/03/2017 às 13:20
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Os serviços prestados pelos tabelionatos de notas ainda são necessários? Em uma economia de mercado, sem a intervenção estatal, sobreviveriam? Sua demanda é por necessidade ou por imposição legal? Acompanharam a evolução tecnológica?

De que o mercado rege a existência, a permanência e a extinção de determinados serviços/profissões, poucos hão de discordar. O tempo e as alterações tecnológicas são elementos que referendam a afirmação supra. Vide o destino dos operadores de telefonia, acendedores de lampiões e tantos outros, cuja evolução tecnológica suplantou. Contudo, situação bastante peculiar e que, de certa forma, destoa de tal assertiva, diz com certas profissões/atividades, cujo exercício depende de autorização do Estado, sendo prestado por particular. Nesse ponto cremos que a profissão/atividade de tabelião de notas é um bom exemplo, motivo pelo qual sua existência precisa ser analisada, sob o mote da necessidade e da evolução tecnológica.

Partindo desses apontamentos, é de se perquirir: os serviços prestados pelos tabelionatos de notas ainda se fazem necessários? Em uma economia de mercado, sem a intervenção estatal, sobreviveriam? Sua demanda é por necessidade ou por imposição legal? Acompanharam a evolução tecnológica?

Prescreve o art. 7º da Lei 8.935/94, que regulamentou o art. 236 da Constituição Federal (dispõe sobre serviços notariais e de registro), que “Aos tabeliães de notas compete com exclusividade: I - lavrar escrituras e procurações, públicas; II - lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados; III - lavrar atas notariais; IV - reconhecer firmas; V - autenticar cópias.".

Nesse ponto é de se analisar as atribuições sob a realidade atual, observando a necessidade dentro de uma economia de mercado, aliada aos avanços tecnológicos.


I - lavrar escrituras e procurações:

Escritura pública nada mais é do que a expressão de um contrato. Nada que conste em uma escritura não pode estar em um contrato particular, digitado e assinado, com alguma forma convencionada entre as partes. Não é porque a norma impõe a utilização de escritura pública para determinados atos, que tal desnatura a expressão de vontade das partes, envolvendo um objeto, lugar para cumprimento da obrigação etc.

O artigo 108 do Código Civil dispõe que "Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País". Nesse caso, além do valor, o que diferencia a transação de imóvel de 30 salários-mínimos e de 31 salários-mínimos?

Bom que se diga que há leis dispersas que dispensam a necessidade de escritura pública. Cite-se aqui: compromisso de compra e venda de imóveis loteados (Lei nº 6.766/79), compra e venda de imóvel de qualquer valor com financiamento mediante a contratação da alienação fiduciária em garantia, o mútuo com alienação fiduciária em garantia imobiliária, nos termos do SFI (Lei nº 9.514/97, arts. 38 e Parágrafo único do art. 22, com redação dada pela Lei nº 11.076/2004), a compra e venda de imóvel de qualquer valor com financiamento do SFH (art. 1º da Lei nº 5.049/66, que alterou o art. 61 da Lei nº 4.380/64).

Conclusão lógica é que se a escritura pública é desnecessária para a transmissão de imóvel em algumas situações, pode ser dispensada em todas. Logicamente que aqueles que optarem, por livre manifestação de vontade (sem imposição legal) por lançar seus atos de vontade pela referida forma, poderão fazê-lo. O que se combate são as exigências legais de sua utilização, impondo ao contribuinte um serviço.

No que atine a confecção de procurações públicas, há outros meios de autenticação muito mais modernos, que autorizam identificar outorgante/outorgado, bem como os atos delegados.


II - lavrar testamentos públicos e aprovar os cerrados:

Se os tabeliães dependessem da lavratura de testamentos para sobreviverem, por certo já teriam sucumbidos, dado o completo desuso de tal ferramenta. Segundo Aryanne Faustina da Silva [1] “o testamento era encarado pelas sociedades cristã-católicas, como uma forma de obtenção da salvação da alma do fiel. Acreditava-se que seria muito perigoso que um indivíduo falecesse sem que seu testamento fosse redigido”. Tais dogmas foram superados pela diminuição da influência católica. Foram revogados pela existência de outros meios mais modernos de transmissão de propriedade (doação em vida, doação de nua propriedade, com reserva de usufruto etc.).

Se outrora a prática testamentária foi importante, não é mais. É fino exemplo de revogação temporal/cultural, que, de certa forma, exprime a própria atividade de tabelião. E, se a atividade vira supérflua, seu executor tende a desaparecer.


III - lavrar atas notariais:

Aqui há dificuldade de se indicar o que venha a ser ata notarial, simplesmente porque seu uso é diminuto ou inexiste. Buscando-se uma conceituação (disponível em http://www.atanotarial.org.br/artigos_detalhes.asp?Id=6) tem-se que

“Ata notarial é o instrumento público no qual a pedido de pessoa capaz o tabelião formaliza um documento narrando fielmente tudo aquilo que verifica com seus próprios sentidos sem emissão de opinião, juízo de valor ou conclusão, ou seja, narra e materializa os acontecimentos em sua essência, constitui prova para ser utilizada quando conveniente, de modo que a veracidade (juris tantum) somente poderia ser retirada através de sentença transitada em julgado (…) "Instrumento público no qual o tabelião ou preposto autorizado, a pedido de pessoa capaz ou representante legal, materializa fielmente em forma narrativa o estado dos fatos e das coisas, de tudo aquilo que verifica com seus próprios sentidos sem emissão de opinião, juízo de valor ou conclusão, portando por fé que tudo aquilo presenciado e relatado representa a verdade, consignando-os em livro de notas".

Por sua vez, o art. 384 do novo CPC (sem correspondência com o Código de Processo Civil de 1973), buscando tirar do limbo tal normativo, declinou que “A existência e o modo de existir algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único.  Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial”.

Aqui não cabe indicar se tal normativo é fruto de lobby da categoria ou algo do gênero. O fato é que é letra morta, cuja aplicabilidade, salvo melhor juízo, não ocorrerá. Há outros meios mais modernos que a própria tecnologia oferece para comprovar fatos que o tabelião pode atestar. Demais disso, há agentes públicos com fé pública que já efetivam tais labores (oficial de justiça, dentre outros). Em suma, é um monstrengo enxertado que não terá o condão de pôr em evidência a atividade de tabelião de notas.


IV - reconhecer firmas e

V - autenticar cópias:

Ditos serviços, na mesma linha das escrituras públicas, somente são necessários porque a própria lei assim impõe. Na prática, tais atos já estão superados pela tecnologia. Um certificado digital executa o mesmo procedimento do que um reconhecimento de firma, com a vantagem de ser ágil e menos oneroso, o mesmo se processando com a autenticação de cópias. A utilização de banco de dados próprios supre tal demanda, de modo que, se todas as exigências legais que impõem o reconhecimento de firma e autenticação de cópias fossem suprimidas, as práticas já adotadas supririam os atos, não havendo prejuízo aos princípios que regem a norma dos tabelionatos (publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos).

Reconhecer firma, além de ser um ato arcaico, com dispêndio de tempo, é por deveras oneroso, fazendo parte de um passado remoto. Ainda não é de todo sepultado por um apego, demasiado, ao papel e, como dito, por imposições legais, em uma desmedida intervenção estatal.


Dito isso, é de analisar a principiologia que rege os serviços notariais.

Segundo consta do Art. 1º da “Serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”. Analisando referidos princípios, sob o mote tecnológico, tem-se que:

Publicidade: longe dos elaborados conceitos jurídicos de publicidade (no mais das vezes talhados ainda no milênio passado), na era digital, publicidade é estar público 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. Não se confunda estar disponível, com estar público. No primeiro caso, pagando determinadas quantias (cuja modicidade está longe de ocorrer, conforme abordado infra), tem-se ao alcance determinado ato notarial. No segundo caso, é tomar conhecimento de algo no momento em que se deseja, bastando para isso ter acesso à Rede Mundial de Computadores, no mais das vezes, sem qualquer pagamento.

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Autenticidade: na mesma linha da publicidade, autenticidade no mundo digital não é saber se determinada assinatura é ou não de determinada pessoa, utilizando-se dos mais arcaicos instrumentos, é, sim, buscar nos elementos da informática as ferramentas para isso. Vide, nesse ponto, a utilização de certificados digitais [2] que cumprem, com propriedade, seus objetivos.

Segurança: a segurança de um ato jurídico não deve estar fulcrada na sua forma, mas, sim, no seu conteúdo. O abandono gradativo de uma formalidade desmedida é fato indiscutível que coloca o trabalho efetuado no tabelionato de notas em um segundo plano e, no mais das vezes, desnecessário. Segurança parte de um conceito de confiabilidade, relação essa que se cria por inúmeros outros meios.

Eficácia dos Negócios Jurídicos: A eficácia dos negócios jurídicos, até então pautada por rigorismo procedimental acentuado, acaba sendo derrogada pela tecnologia digital. O sujeito que, de posse de seu cartão de crédito, adquire uma mercadoria, sem qualquer contato com o vendedor, nem a entrega física de valores, não deixa de efetuar um negócio jurídico, nem tem sua eficácia questionada. Em eventual inadimplemento, terá arcabouço para reparar seu dano, passando ao largo de qualquer ato notarial, mormente o alargamento, no âmbito judicial, de qualquer meio de prova existente.

Portanto, referidos princípios em nenhum momento restam diminuídos, caso aplicados os implementos tecnológicos já existentes.


Sendo a atividade notarial serviço público (ainda que haja alguma discordância quanto a tal natureza), as diretivas desse devem encontrar eco. Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 671) [3], “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo”.

No que toca a atualidade do serviço a ser prestado, Diogo de Figueiredo Moreira Neto [4] (2002, p. 428) declina que “tido como cláusula de progresso, o princípio da atualidade vem a ser um corolário do princípio de eficiência, no sentido de que o progresso da qualidade das prestações aos usuários deve ser considerado um dos direitos do cidadão, de modo que o Estado, ao assumir um serviço como público, impõe-se também o correlato dever de zelar pelo seu aperfeiçoamento, para que os frutos da ciência e da tecnologia sejam distribuídos o mais rápido e amplamente possível”.

Assim, para que um serviço público deva ser prestado, além de ser necessário e eficiente, deve ser atual, sendo adepto das evoluções tecnológicas. No popular, “quem vive de passado é museu”. Na espécie, isso inexiste. Os atos praticados são facilmente substituídos, pois derrogados por outros meios já usados.

Outro fator não menos importante é quanto ao montante cobrado por tais serviços. É público e notório que os valores requisitados pelos tabelionatos, especialmente nos serviços acima indicados, estão longe de ser módicos, de modo que a sua prestação, além de desnecessária, avilta as pecúnias daqueles que dele necessitam.

Nesse ponto, Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 744), indica que “tal modicidade, registre-se, é um dos mais relevantes direitos do usuário, pois, se for desrespeitada, o próprio serviço terminará por ser inconstitucionalmente sonegado”.

Acrescer o valor de uma escritura pública aos impostos recolhidos na transmissão de um imóvel (ITBI ou ITCMD, mais certidões necessárias), é por deveras oneroso, fazendo surgir um mercado paralelo na aquisição de imóveis (procuração particular para aquisição de imóveis), situação que desencadeia inúmeros outros atos. Desse modo, a suposta segurança jurídica, um dos objetivos a serem alcançados, não ocorre.

Assim, ainda que se reconheça o fator histórico da existência do tabelionato de notas (muito do que se conhece atualmente foi redigido pelos tabeliães de notas), entendemos que a maioria dos serviços prestados somente existem por imposições legais (aliás, desde a sua criação, estiveram vinculados a atos estatais). Em uma relação de livre mercado, desapareceriam, pois estão ultrapassados, sendo facilmente absorvidos pela evolução tecnológica, fazendo-se crer que o tabelionato de notas é um dinossauro na era digital.


Notas

1 Disponível em http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371344635_ARQUIVO_TEXTOFINAL-ARYANNEFAUSTINADASILVA.pdf.

2 Segundo a Cartilha de Segurança para a Internet, disponível em https://cartilha.cert.br/sobre/old/cartilha_seguranca_3.1.pdf, Assinatura Digital é o Código utilizado para verificar a integridade de um texto ou mensagem. Também pode ser utilizado para verificar se o remetente de uma mensagem é mesmo quem diz ser.

3 MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de direito administrativo. 27. ed. Malheiros, 2010.

4 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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Sobre o autor
Leandro Brescovit

Graduado pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Analista Jurídico da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul, lotado na Procuradoria Regional de Caxias do Sul/RS, Pós graduado em Direito Tributário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRESCOVIT, Leandro. Tabelionato de notas: um dinossauro na era digital. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5005, 15 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56477. Acesso em: 26 abr. 2024.

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