A desnecessidade da escritura pública e do registro
para viabilizar a pretensão judicial da adjudicação.
No que concerne à possibilidade de adjudicação compulsória pela via judicial, hoje é pacífico o entendimento de que basta a promessa com cláusula de irretratabilidade, reduzida a escrito, mesmo por convenção particular, para legitimar a postulação em juízo. É conveniente, contudo, que se esclareça que há corrente de entendimento diverso, respaldada em controversa interpretação.
Pretendem os defensores da corrente oposta aos que advogam a informalidade do titulo como elemento hábil à adjudicação, que uma ou as duas condições a escritura pública e/ou o registro do titulo sejam pressupostos elementares à configuração do direito à adjudicação. Sua justificativa emerge da exig6encia da norma jurídica que dá como condição essencial à validade do negócio de compra e venda de imóveis, a escritura pública, tal como se depreende do artigo 134, II, referido. Defendem, por via de conseqüência, que, em sendo o ajuste informal, ato precedente ao contrato definitivo, e portanto submisso a este, conformar-se-ia como espécie de dependente ou acessório, subserviente à forma determinada para a sua conclusão.
Uma vertente ou subsistema dessa corrente entende que é necessário que se adite à imperatividade do instrumento público, o implemento da solenidade que lhe seria substancialmente afeta, qual seja a do registro do titulo no oficio público imobiliário competente. Ou mesmo, até toleram que o ajuste se expresse por instrumento privado, desde que este seja levado a registro.
Com a devida vênia, é nossa convicção pessoal que a adjudicação é deferida em reverência à natureza irretratável da convenção, quando o implemento da obrigação (facere) prometida pelo devedor não conhece alternativa válida à conclusão do negócio senão a própria transferencia do domínio. É assim que se depreende dos "consideranda" (14) e da própria inteligência do decreto lei 58/37, além da justificativa política do edito afirmar-se em oposição ao favorecimento, involuntário e circunstancial, de locupletamento, proporcionado do artigo 1.088 do Código Civil, onde o legislador manifesta. Exatamente, a orientação defendida pelos acólitos dessas razoes de convencimento. Portanto, admitir-se que o procedimento ofertado como defensabilidade da convenção preliminar, requisite a forma pública, seria validar o próprio dispositivo legal atacado pelo DL 58/37, proscrevendo-se a tutela da boa fé e firmeza da obrigação subscrita pelas partes, objeto de consideração do provisionamento decretual. Assim é que, o artigo 16 do DL 58/37, estatui, litteris:
Art. 16 Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura pública no caso do art. 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória, que tomará o rito sumaríssimo.
Explicita o referido artigo 15, a hipótese de adimplemento da obrigação de pagamento, por antecipação ou ultimação, ao encargo do promissário comprador.
Precedentemente, o artigo 11, que se refere supletivamente ao conteúdo da promessa, não registra qualquer exigência quanto à forma do contrato, e até reconhece a dupla alternativa na instrumentalização do contrato, como a seguir:
Art. 11 Do compromisso de compra e venda a que se refere esta lei, contratado por instrumento público ou particular, constarão sempre as seguintes especificações:
(o realce não consta do original).
Pelo exposto, não há qualquer imposição, ou sequer recomendação de forma especifica, decorrente da lei especial. E não poderia ser diferente, já esclarecemos que o contrato de compra e venda é dualístico quanto à forma, por disposição expressa do direito codificado. A maioria da doutrina concorda com sua natureza consensual, excepcionalizada quando o objeto particulariza bens imóveis. No entanto, a prescrição formal circunscreve-se aos contratos "... constitutivos ou translativos de direitos reais sobre imóveis de valor superior a Cr$ 50.000 ( cinqüenta mil cruzeiros), excetuado o penhor agrícola" ( art.134, II CC).
In casu, o direito real somente se configura, quando o titulo da promessa é registrado no cartório competente e tal faculdade é extensiva aos instrumentos particulares, logo, não há como impor a veracidade jurídica da concepção formalista.
No tocante à exig6encia do registro imobiliário para legitimação do direito à ação de adjudicação compulsória, cremos ser suficiente a denúncia do fato de que essa solenidade afeta mais à defensabilidade da titularidade do direito ante terceiros, que qualquer outra justificativa. É assim a expressão do art. 135 do Código Civil, quando dispõe que os efeitos dos instrumentos particulares não se operam a respeito de terceiros, senão antes de transcritos no registro público.
A obligatio faciendi consistente na promessa de transferência de domínio, é direito pessoal e configura-nos paradoxal exigir que se registre em oficio imobiliário o título coletor dessa promessa para torná-lo eficaz, apto a produzir os efeitos perseguidos pelas partes, visto que se trata de prestação cometida ao promitente vendedor. Parece-nos mais lógico que a exigência do registro se dê em razão da constituição do direito real, que por si é oponível a terceiros.
O móvel da vexata quaestio tem sido atribuída à redação do artigo 23 do DL 58/37, que ensejou, inclusive, a adoção da súmula 167 do STF, por controvertida interpretação do texto em analise. Estabelece o citado artigo:
Art. 23 Nenhuma ação ou defesa se admitirá, fundada nos dispositivos desta lei, sem apresentação de documento comprobatório do registro por ela instituída.
O Supremo Tribunal Federal, valendo-se de interpretação literal do disposto na norma relacionada, e, em face da divergência jurisprudencial, trouxe à lume o paradigma sumular já referido, nos seguintes termos:
Não se aplica o regime do dec. Lei 58, de 19.12.37, ao compromisso de compra e venda não inscrito no registro imobiliário, salvo se o promitente vendedor se obrigou a efetuar o registro.
Contudo, por entender de justiça que o registro se desse supervenientemente à formação do contrato, editou a súmula 168 possibilitando que o registro pudesse ser feito no curso da ação. E essa foi a única concessão admitida pela Colenda Corte da Justiça.
A questão, ao nosso modesto ver, é de simples elucidação.
O decreto-lei 58/37, tomou a se a regulamentação das promessas de compra e venda de imóveis loteados e não-loteados, inserindo-os na disciplina comum, para que se valessem, co-respectivamente, até onde aproveitassem ou carecessem.
A lei 6.766/79, conquanto não tenha derrogado inteiramente o DL 58/37 e dedique-se à disciplina dos imóveis loteados, inovou o regime do decreto referido, com a redação de dois dos seus artigos, o artigo 25 e o 46. O primeiro, desvincula da adjudicação a obrigatoriedade do registro ("são irretratáveis os compromissos de compra e venda, cessões e promessas de cessão, os que atribuam direito à adjudicação compulsória e, estando registrados, confiram direito real oponível a terceiros") sendo certo que tal solenidade só é imprescindível à aquisição de direito real, visto que o condicionante ("estado registrados") prende-se apenas à constituição desse direito. O artigo 46, respondeu pela erradicação da divergência, derrogando o artigo 23, já referido e transcrito, que condiciona o direito de ação adjudicatória à comprovação do registro.
O disposto na lei 6.766/79, encontra ainda resistências aparentemente insuperáveis por parte dos defensores da integridade formal dos compromissos de compra e venda, elegendo, como derradeiro argumento, o fato de que a lei em comento, trata do parcelamento do solo urbano, vale dizer, circunscrever-se-ia aos imóveis sujeitos ao regime de loteamento, não incluindo os imóveis não-loteados.
Ora, se foi possível à legislação inaugural sobre a matéria (dl 58/37) tratar uniformemente, sem distinguir, os regimes imobiliários diversos, desconsiderando a natureza dualista do objeto, como já acentuamos, porque não poderia suscitar o mesmo resultado senão por inferência paradigmática, por analogia a lei 6.766/79? Por que diferenciar o tratamento oferecido às promessas de venda, entre imóveis loteados e não-loteados, se o princípio informador da garantia e do privilégio não encontra justificativa lógica, ética ou jurídica para a desigualdade?
A jurisprudência converge, uniformemente, para essa conclusão. Senão, vejamos:
Adjudicação Compulsória. Promessa de Compra e venda.
A ausência de registro da promessa de compra e venda não constitui óbice para adjudicação compulsória de imóvel, ficando superado o enunciado da Súmula 167 da Suprema Corte...
(Ap.Cv. 190.354-2, CCv do TAMG 22.02.95 RJTAMG 58-59/209)
Adjudicação Compulsória. Titulo do vendedor não registrado. Irrelevância. Carência de ação afastada.
Perfeito o ajuste em seu aspecto formal. A adjudicação é o suprimento judicial de manifestação de vontade dos vendedores. Execução direta, de cunho pessoal, entre os signatários da obrigação originária, independentemente de qualquer formalidade. A inexistência de registro do titulo dos vendedores é questão registrária, não justificando o decreto de carência.
(agl 608.606-6, 2ª. C. do 1º. TACv, RT 716/214)
Adjudicação Compulsória. Registro do Pré-Contrato. Desnecessidade.
Para a ação de adjudicação compulsória é desnecessário o registro do pré-contrato de compra e venda no Ofício Imobiliário. A eficácia real, decorrente do registro, tem efeito erga omnes, para prevenir direitos contra terceiros.
(ApCv 194147252, 3ª . CCv do TARS. 31.08.94. JTARS 91/347)
Adjudicação Compulsória. Compromisso de Compra e Venda.. Não-transcrição no Registro de Imóveis.
Enseja adjudicação compulsória o contrato de compromisso de compra e venda não transcrito no Registro Imobiliário, por ser de caráter pessoal o direito do promissário comprador, constituindo a sentença adjudicatória suprimento da omissão do promitente vendedor em outorgar o contrato.
(apCiv 120.196-9, 1ª . CCv do TAMG. 18.03.92. RJTAMG 27/141)
Merece destaque a ementa elaborada a partir de relatório do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), como a seguir:
Compromisso de Compra e Venda Instrumento Particular. Validade. Registro, Prescindibilidade. Adjudicação Compulsória deferida. CPC, arts. 639 e 641. Divergência doutrinária e Jurisprudencial. Precedente da Corte. Recurso desprovido.
A circunstância do compromisso de compra e venda Ter sido celebrado através de instrumento particular não registrado não inviabiliza por si só, a adjudicação compulsória, apresentando-se hábil a sentença a produzir os efeitos a declaração de vontade emitida.
(Resp 5.643-RS, 4ª . T do STJ. 07.0591. RSTJ 29/356).
Destarte, como argumento final de definitivo, o regimento procedimental civil não distingue as espécies segundo suas naturezas objetivas, nem requer o suprimento instrumental formal ou registral, para que o postulante valha-se do direito à execução da obrigação, obtendo sentença que lhe confira a adjudicação do bem sub judice, suprindo-se a declaração de vontade do faltoso, como se depreende da leitura dos artigos 639 e 641 do CPC, limitando-se o legislador ao vocábulo "contrato", dessumindo-se a necessariedade, apenas, de comprovação do acordo de vontades. Assim se expressam as normas referidas:
Art. 639 Se aquele que se comprometeu a concluir um contrato não cumprir a obrigação, a outra parte, sendo isso possível e não excluído por titulo, poderá obter uma sentença que produza o mesmo efeito do contrato a ser firmado.
Art. 641 Condenado o devedor a emitir declaração de vontade, a sentença, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida.
CONCLUSÕES
O contrato de promessa (compromisso) (15) de compra e venda, desde que não contenha expressa condição resolutória bilateral, consagrando direito comum dos co-contraentes ao arrependimento, ou que contenha, explicitamente, cláusula de irretratabilidade, é avença típica, autônoma, inconfundível, substancialmente, com meto ajuste precursor da compra e venda definitiva, posto que é auto-suficiente no resguardo do direito real de propriedade, no tocante à exclusividade na aquisição do domínio, desde que o título seja reduzido a escrito e registrado no ofício público imobiliário competente.
É contrato satisfativo, do ponto de vista da eficácia segundo o resultado objetivo e a tutela do direito à singularidade do domínio. O titular do direito real à aquisição reclamaria a escritura pública constitutiva do direito à transmissão do domínio, apenas para confirmar-se senhorio da coisa adquirida, formalizando a sua titularidade.
É imperativo que se assinale que a moderna doutrina do direito civil refere a substantividade da promessa, além da própria evidência da satisfatividade coletada no direito material, que confirmam não apenas a autonomia mas, até mesmo, a própria definitividade da promessa.
Frederico de Castro (16), concebe que a promessa, desde que não se exija o cumprimento do contrato definitivo, ou a relação jurídica não seja afetada por motivo que determine a sua extinção, "é vinculação jurídica que vive com plena substantividade".
O projeto do Código Civil (17), expressa, no artigo 457 a 459 (18), em seção dedicada à disciplina do contrato preliminar, que o contrato preliminar que contenha todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado, uma vez concluído e dele consiste cláusula de irretratabilidade, a pedido do interessado o juiz poderá suprir a vontade do inadimplente, conferindo caráter definitivo ao contrato preliminar.
Salvo mais oportuno e valioso juízo, infere-se que o legislador entendeu ociosa a execução compulsória voltada para a reprodução do contrato, tão somente para consagrar uma formalidade, fixando-se em decreto declaratório, constitutivo do direito à propriedade, concedendo ao contrato preliminar a eficácia do ajuste definitivo.
À luz do atual diploma civil, não se poderia concluir, evidentemente, pela ociosidade da escritura pública de compra e venda e subsequente ato registral, porque o artigo 530, I (19), do Código Civil, reclama o registro do titulo de transferência (do domínio), como modo de aquisição da propriedade pertinente à espécie. Tratamos, obviamente, da equivalência dos títulos ambos levados a registro no ofício competente quanto à produção de efeitos no que respeita ao exercício dos direitos à própria coisa e à sua defensabilidade contra terceiros, como já foi constatado.
Trata-se, na efetivação da escritura pública de compra e venda, indubitavelmente, de veraz constituição do direito à propriedade. Entretanto, pode-se conceber que o suprimento dominial ofertado pelo contrato definitivo, em oposição à preexistente promessa de transferência essencializada no contrato informal, afigura-se como espécie de ato declaratório, já que os poderes decorrentes da transmissão do domínio, assim constituído pelo contrato definitivo, estão presentes no contrato de promessa, desde que atendida à formalização indispensável à constituição do jus in re.
Dispensando-se os atos de fruição e de disposição, que também são pertinentes a outros tipos contratuais que constituem o juz in re aliena v.g. o usufruto e a enfiteuse o contrato de promessa atribui o direito à reivindicação que é meio de defesa da coisa própria, visto que o registro confere o direito de oponibilidade erga omnes, podendo voltar-se o promissário comprador contra quem quer injustamente detenha a coisa.
Não fosse tão clara essa possibilidade jurídico-processual, a partir da invocação da defensabilidade erga omnes, constatar-se-ia que essa faculdade decorreria da própria aptidão para o exercício do direito à adjudicação. Se o titular do direito à aquisição pode voltar-se contra o titular da propriedade, poderá fazê-lo contra terceiros, desde que superada a relatividade dos efeitos da convenção privada, com a constituição do direito real oponível a terceiros, exsurgente do registro do titulo constitutivo.
O direito a adjudicação emerge do caráter irretratável da obrigação de fazer dirigida à transmissão do domínio, objeto de execução compulsória de que constitui titulo hábil a sentença judicial. O facere a que se obrigou o alienante, é prestação típica que não pode ser adimplida de outro modo senao pela outorga da escritura pública. Até mesmo porque, não o fazendo, a sentença judicial supre a manifestação volitiva do promitente, sem que o juiz, entretanto, substitua o contraente faltoso, ou então o decreto seria desnaturado. Na verdade, o juízo determina a execução específica do pré-contrato visto que o promitente, não obstante a natureza irretratável do próprio gênero negocial (pacta sunt servanda), reproduz especificamente a sua subordinação ao caráter irrevogável e irretratável da obrigação especifica, renunciando ao arrependimento vale dizer, constituindo um vínculo definitivo à promessa singularmente exigível, de tal sorte que só será satisfeito o facere, afastando-se até mesmo a satisfação da prestação com a alternativa obrigação de indenizar. Com a renúncia especifica, como que derroga-se o principio nemo precise cogi potest ad factum, eis que a cominação não se configura constrangimento físico ou privação da liberdade. Por isso mesmo, torna-se dispensável a prestação pessoal, não havendo como se justificar a titularidade do direito à aquisição, do ato valido à constituição do domínio, senão em virtude da obligatio faciendi especializada, posto que a formalidade suplementar requerida para perfeição do ajuste, cinge-se à obtenção do direito à oposição contra todos.
Por todos os argumentos expendidos, à luz do ordenamento positivo e dos julgados das cortes de justiça, consagra-se a satisfatividade do titulo da promessa de compra e venda, desde que não contenha ressalva expressa do direito ao arrependimento, e seja reduzida a termo escrito, devidamente registrada no cartório de registro imobiliário competente, tenha resgatado o promissário comprados as suas obrigações convencionais, especialmente as de pagamento do preço avençado.
Finalmente, não é excessivo aditar ao tema especifico, a recomendação do ilustre e douto Miguel Reale, das mais autorizadas expressões da doutrina do direito brasileiro, segundo a qual "...o Código Civil é a constituição da sociedade civil, ...a constituição do homem comum." (20), e que, por isso mesmo atende à demanda da sociedade. Ei porque o novo texto, segundo a opinião do citado jurisconsulto, Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil, tendencia-se mais para o operacional que o conceptual, para o realismo que para o abstrato.
O próximo milênio marcará a definitiva superação do individualismo e do formalismo, pela socialidade e pela operacionalidade. Não se abandonará, com certeza, a forma, desde que necessária à substância do negócio ou à cautela dos direitos que reclamam maior proteção da lei, mormente quando se trate de preceitos de ordem pública. Mas a formalidade, sobretudo nos negócios jurídicos, tende a minimização, na justa medida em que a norma jurídica voltar-se-á, necessariamente, na busca de instrumentos de garantia do adimplemento contratual.