A Constituição Federal de 1988 é expressa em afirmar, em seu art. 37, II, que “a investidura em cargo ou emprego publico depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”. O inciso IX do mesmo artigo, por sua vez, acrescenta que “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”.
Segundo o escólio de Emerson Garcia (2006), no clássico trabalho monográfico intitulado Improbidade Administrativa, escrito em parceria com Rogério Pacheco Alves, “ressalvadas as exceções previstas na própria Constituição, os agentes públicos devem ter sua investidura precedida de aprovação em concurso público, que visa a selecionar os melhores candidatos e preservar a igualdade entre todos os interessados em ingressar no serviço público, o que garantirá o primado do princípio da moralidade administrativa, evitando favorecimentos e perseguições de ordem pessoal”.
Já em tempos idos, o Padre Antônio Vieira, no seu conhecido Sermão do Bom Ladrão”, vaticinava que “a porta, por onde legitimamente se entra no officio, é só o merecimento (...) o que entra pela porta, poderá vir a ser ladrão, mas os que não entram por ela já o são. Uns entram por parentesco, outros pela amizade, outros pela valia, outros pelo suborno, e todos pela negociação. E quem negocia com não há mister outra prova; já se sabe que não vai a perder. Agora será ladrão oculto, mas depois ladrão descoberto”.
A lição de Cícero, no discurso intitulado Dos Deveres, também não pode ser olvidada:
“Quem quiser governar deve analisar estas duas regras de Platão: uma, ter em vista apenas o bem público, sem se preocupar com sua situação pessoal; outra, estender suas preocupações do mesmo modo a todo o Estado, não neglicenciando uma parte para atender à outra. Porque quem governa a República é tutor que deve zelar pelo bem de seu pupilo e não o seu: aquele que protege só uma parte dos cidadãos, sem se preocupar com os outros, introduz no Estado o mais maléfico dos flagelos, a desavença e a revolta.”
Ao excepcionar a regra geral do concurso público pela hipótese de contratação temporária, a Constituição Federal (art. 37, IX) estabeleceu apenas dois requisitos: i) necessidade temporária; ii) excepcional interesse público.
Inicialmente, o Supremo Tribunal Federal entendia que essa modalidade de contratação não alcançaria as funções permanentes independentemente da presença de outros requisitos (ADI 2.125-7, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 29.9.2000 e ADI 2380-2, Rel. Min. Moreira Alves, j. 24.5.2002; ADI 2229-6, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 25.6.2004). Contudo, a partir do julgamento da ADI 3.068-0, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 24.2.2006, esse posicionamento foi substancialmente alterado para se entender que a norma alberga a contratação temporária tanto de atividades permanentes, quanto de atividades de caráter eventual, temporário ou excepcional “desde que a contratação seja indispensável ao atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público”.
Ocorre que, acertadamente, no julgamento da ADI 3.700, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 6.3.2009, o Supremo Tribunal voltou ao entendimento anterior e reafirmou que a atividade estatal permanente – no caso de Defensores Públicos – não poderia ser objeto de contratação temporária. Esse posicionamento foi reafirmado no julgamento na ADI 4246, Rel. Min. Carlos Britto, DJe 29.8.2011, e contrariado pela decisão proferida na ADI 3386, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 23.8.2011, que cuidou da contratação temporária para pessoal do IBGE, apesar de julgado pouco antes (em 25.5.2011).
Segundo a Suprema Corte brasileira, a atividade de magistério enquadra-se no rol de atividades permanentes, não podendo tais cargos serem preenchidos por meio de contratação temporária de professores.
A propósito, confira-se:
“Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. EXISTÊNCIA DE CANDIDATOS DEVIDAMENTE APROVADOS E HABILITADOS EM CERTAME VIGENTE. PRECEDENTES. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A ocupação precária, por comissão, terceirização, ou contratação temporária, para o exercício das mesmas atribuições do cargo para o qual promovera o concurso público, configura ato administrativo eivado de desvio de finalidade, caracterizando verdadeira burla à exigência constitucional do artigo 37, II, da Constituição Federal. Precedente: AI 776.070-AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes, Dje 22/03/2011. 2. In casu, o acórdão originariamente recorrido assentou: “MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA. EXISTÊNCIA DE CANDIDATOS DEVIDAMENTE APROVADOS E HABILITADOS EM CERTAME VIGENTE. BURLA À EXIGÊNCIA CONSTITUCIONAL DO ART. 37, II, DA CF/88. CARACTERIZAÇÃO. DEFERIMENTO DA ORDEM QUE SE IMPÕE. I- A aprovação em concurso público, fora da quantidade de vagas, não gera direito à nomeação, mas apenas expectativa de direito. II- Essa expectativa, no entanto, convola-se em direito subjetivo, a partir do momento em que, dentro do prazo de validade do concurso, há contratação de pessoal, de forma precária, para o preenchimento de vagas existentes, em flagrante preterição àqueles que, aprovados em concurso ainda válido, estariam aptos a ocupar o mesmo cargo ou função. Precedentes do STJ (RMS nº 29.973/MA, Quinta Turma. Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIS FILHO. DJE 22/11/2010). III- A realização de processo seletivo simplificado, no caso ora apresentado, representou manifesta afronta à Lei Estadual nº 6.915/97, a qual regula a contratação temporária de professores no âmbito do Estado do Maranhão, especificamente do inciso VII do seu art. 2º. IV- Com efeito, a disposição acima referida é clara no sentido de que somente haverá necessidade temporária de excepcional interesse público na admissão precária de professores na Rede Estadual de Ensino acaso não existam candidatos aprovados em concurso público e devidamente habilitados. V- A atividade de docência é permanente e não temporária. Ou seja, não se poderia admitir que se façam contratações temporárias para atividades permanente, mormente quando há concurso público em plena vigência, como no caso em apreço. Essa contratação precária, friso uma vez mais, é uma burla à exigência constitucional talhada no art. 37, II, da CF/88. VI- Segurança concedida.” 3. Agravo regimental não provido (ARE 649046 AgR / MA – MARANHÃO, 28/08/2012)”.
A hipótese fática suscitada amolda-se ao quanto previsto no art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa, e não ao seu art. 10, quando o docente efetivamente presta os serviços públicos contratados.
Nesta toada, ensina mais uma vez Emerson Garcia (2006) que “constatada a má-fé, ter-se-á aperfeiçoado, de forma irrefutável, a improbidade material exigida para a incidência do art. 11 da Lei 8.429/1992 (...). Em não havendo a prestação dos serviços, será induvidosa a incidência das sanções legais, inclusive o dever de ressarcir. Nesta situação, restará configurada a tipologia do art. 10, caput, da Lei 8.429/1992, pois o conluio entre o agente público e o contratado, com o consequente percebimento dos subsídios sem a contraprestação equivalente, gerou inequívoca lesão patrimonial ao erário”.
No mesmo sentido tem decidido o STJ:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LEI Nº 8.429/1992. CONTRATAÇÃO SEM CONCURSO PÚBLICO. "FRENTE ALTERNATIVA DE TRABALHO". VIOLAÇÃO A PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. CONFIGURAÇÃO DE DOLO GENÉRICO. PRESCINDIBILIDADE DE DANO AO ERÁRIO. COMINAÇÃO DAS SANÇÕES. REDIMENSIONAMENTO. 1. Segundo o arcabouço fático delineado no acórdão, sobre o qual não há controvérsia, restou demonstrado o dolo, no mínimo genérico, na irregular contratação de pessoal pela Administração sem a prévia realização de concurso público. Tal conduta, atentatória aos princípios da legalidade e da moralidade, nos termos da jurisprudência desta Corte, é suficiente para configurar o ato de improbidade capitulado no art. 11, I, da Lei nº 8.429/92. 2. Redimensionamento das sanções aplicadas, em atenção aos vetores da proporcionalidade e da razoabilidade. 3. Recurso especial conhecido e parcialmente provido, unicamente para se decotar as penalidades impostas (REsp 1230352 / SP, 27/08/2013) .
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO SEM A REALIZAÇÃO DE CONCURSO PÚBLICO. ART. 11 DA LEI 8.429/1992. CONFIGURAÇÃO DO DOLO GENÉRICO. PRESCINDIBILIDADE DE DANO AO ERÁRIO. RESSARCIMENTO. DESCABIMENTO. CONTRAPRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. IMPOSSIBILIDADE DE ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DA ADMINISTRAÇÃO. SANÇÃO DO ART. 12, III, DA LEI 8.429/1992. NECESSIDADE DE EFETIVA COMPROVAÇÃO DE PREJUÍZO PATRIMONIAL. 1. A caracterização do ato de improbidade por ofensa a princípios da administração pública exige a demonstração do dolo lato sensu ou genérico. Precedentes. 2. Não se sustenta a tese - já ultrapassada - no sentido de que as contratações sem concurso público não se caracterizam como atos de improbidade, previstos no art. 11 da Lei 8.429/1992, ainda que não causem dano ao erário. 3. O ilícito previsto no art. 11 da Lei 8.249/1992 dispensa a prova de dano, segundo a jurisprudência desta Corte. 4. É indevido o ressarcimento ao Erário dos valores gastos com contratações irregulares sem concurso público, pelo agente público responsável, quando efetivamente houve contraprestação dos serviços, para não se configurar enriquecimento ilícito da Administração (EREsp 575.551/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/04/2009, DJe 30/04/2009). 5. Ressalvou-se a possibilidade de responsabilizar o agente público nas esferas administrativa, cível e criminal. 6. A sanção de ressarcimento, prevista no art. 12, inciso III, da Lei 8.429/1992, só é admitida na hipótese de ficar efetivamente comprovado o prejuízo patrimonial ao erário. Precedentes. 7. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1214605 / SP, 06/06/2013).
Verifica-se ainda, pela análise dos julgados acima colacionados e pela consulta à jurisprudência recente do Superior Tribunal de Justiça, que a configuração do ato ímprobo prescinde da comprovação de dano ao erário, conforme preceitua textualmente o art. 21, I, da Lei de Improbidade Administrativa.
Outrossim, contenta-se o STJ com a prova do dolo genérico, não exigindo o elemento específico da vontade. Em julgamento de caso que muito se assemelha ao aqui tratado, decidiu a Corte Cidadã ( excertos do voto do relator):
“Superada essa questão, o recorrente, em longa argumentação, defende não restar demonstrada a presença de má-fé nas contratações irregulares, bem como ser descabida a condenação em ressarcimento ao erário, no importe equivalente aos gastos nas ditas contratações, pois redundaria em enriquecimento ilícito da administração, na medida em que foi prestado efetivo trabalho pelas pessoas contratadas. No tocante ao primeiro ponto, referente a suposta necessidade de comprovação de má-fé ou dolo, para fins de condenação por ato de improbidade, ressalto que esse tema encontra-se pacificado nesta Corte. O posicionamento firmado pela Primeira Seção é que se exige dolo, ainda que genérico, nas imputações fundadas nos arts. 9º e 11da Lei 8.429/1992 (enriquecimento ilícito e violação a princípio), e ao menos culpa, nas hipóteses do art. 10 da mesma norma). (...)
Após essas considerações, faço a adequação ao caso concreto. O Tribunal de origem afirmou que o ora recorrente, enquanto prefeito e presidente de consórcio público de saúde, realizou várias contratações sem concurso público, consoante se verifica pelos seguinte trecho do aresto recorrido(...) Assim, o que ficou amplamente comprovado foi a reiterada conduta de contratar irregularmente, sem concurso público. Ora, é inegável que a conduta do agente atenta contra os princípios da moralidade administrativa, da impessoalidade e da legalidade, conforme preceitua a Constituição Federal (art. 37, §1º). No caso, o dolo está configurado pela manifesta vontade do réu em realizar conduta contrária aos deveres de honestidade e demais princípios constitucionais que regem a Administração Pública – no caso, realizar diversas contratações sem concurso público –, fazendo incidir na espécie o disposto no art. 11 da LIA” (RECURSO ESPECIAL Nº 1.214.605- SP (2010/0178628-9).
Bem delineada a configuração do ato de improbidade, passo à análise das sanções aplicáveis.
As primevas, e talvez mais importantes consequências do ato ímprobo, constituem a declaração da nulidade da contratação e a necessidade de ressarcimento dos cofres públicos. De acordo com o art. 37, parágrafo segundo, da Carta Magna, a “não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos da lei”.
Segundo Emerson Garcia (2006), em lição basilar, “apesar de nulo, o ato e contratação de servidores sem a prévia realização de concurso público nem sempre acarretará danos de natureza patrimonial ao erário, havendo, normalmente, efetiva prestação do serviço por parte do contratado. Ainda aqui, deverá o agente público responsável pela contratação irregular ressarcir os cofres públicos no montante gasto com a contratação irregular, pois quod nullum est, nullum producit effectum (...) Havendo contratação ilegal, o ressarcimento evitará a consagração do enriquecimento ilícito e não permitirá que o ímprobo fique impune ao contratar determinada pessoa com inobservância aos princípios da legalidade, moralidade e igualdade, vícios que caracterizam a ilicitude da causa que ensejou o vínculo com o ente contratante.”
Por outro lado, cabível a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, eis que, conforme assevera mais uma vez Emerson Garcia, “no que concerne ao polo oposto da relação obrigacional, deverá ser ocupado por quem demonstre possui retidão de conduta compatível com a natureza do contrato e do seu destinatário final. Essa característica, prima facie, não será encontrada naquele que infringiu os princípios da legalidade e da moralidade, vindo a praticar atos de improbidade com detrimento do interesse público. Assim, é plenamente justificável que lhe seja defeso contratar com o Poder Público”.
Ao cabo, faz-se possível ainda a condenação no pagamento de multa civil, de forma proporcional às condutas ímprobas praticadas.
No que tange ao dano moral coletivo, em acórdão exarado pelo Tribunal Regional da 3ª Região, afirmou-se que, embora se reconheça “que a doutrina mais abalizada, assim como a jurisprudência, admite o ressarcimento de dano moral causado por ato de improbidade do agente público”, conclui-se que “não é todo e qualquer ato de improbidade que causa dano moral à coletividade”, sendo “necessário que tal ato cause evidente e significativa repercussão no meio social, não bastando meras presunções ou mesmo a simples insatisfação da coletividade com a atividade administrativa”.
No mesmo sentido é a lição de Emerson Garcia (2006), ao aduzir que “todos os membros da coletividade tem o direito de exigir dos administradores públicos que atuem com estrita observância ao princípio da juridicidade, o que pode ser considerado um direito transindividual e indisponível, de natureza eminentemente difusa, já que pulverizado entre todas as pessoas. Essa concepção, no entanto, em que pese o fato de todos auferirem os efeitos de uma boa administração, não deve ser conduzida a extremos, culminando em identificar a ocorrência do dano moral sempre que for violado algum princípio administrativo ou mesmo lesado o erário”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANJOS NETO, Francisco Chaves dos. Princípio da probidade administrativa: regime igualitário no julgamento dos agentes políticos. Belo Horizonte: Del Rey, 2003 .
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 17ª ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
FIGUEIREDO, Marcelo. Probidade Administrativa (Comentários à Lei 8.429/92 e Legislação Complementar). 5ª ed.. São Paulo: Editora Malheiros, 2004.
GARCIA, Emerson; ALVES, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. 3ª ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006
OSÓRIO, Fabio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão: corrupção: ineficiência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007