4. DURAÇÃO INDETERMINADA DO BENEFÍCIO: INCAPACIDADE TOTAL TEMPORÁRIA, INCAPACIDADE PARCIAL DEFINITIVA E PROCESSO DE REABILITAÇÃO
A prescrição legal de fixação de prazo certo para a duração do auxílio-doença leva em conta a possibilidade de uma tal estimativa pelo médico perito que examinar o segurado. Há, contudo, situações em que o laudo pericial não traz qualquer estimativa objetiva do tempo que levará o trabalhador para recuperar sua aptidão laborativa. Seria possível dizer que tais situações fogem ao “sempre que possível” previsto na lei.
Nessas hipóteses – em que o perito não encontra elementos que lhe permitam estimar com segurança o momento em que o trabalhador estará novamente apto para o trabalho – não se pode aplicar o prazo fictício de cento e vinte dias previsto no art. 60, §12, da Lei n. 8.213/90. Enquanto o §11 dispõe que caberá à autoridade administrativa ou judicial, “sempre que possível”, definir o prazo de vigência do benefício, o §12 estabelece a aplicação do prazo ficto apenas na “ausência de fixação do prazo de que trata o §11”. Como o “prazo de trata o §11” pressupõe a real possibilidade da estimativa (“sempre que possível”), o prazo fico de cento e vinte dias somente se aplica se, embora estimável, o prazo não foi estimado pela autoridade.
Nos casos em que a estimativa do prazo de recuperação da capacidade laborativa se revela impossível ou problemática, deve-se aplicar, para determinado grupo de casos, a disposição do art. 62 da Lei n. 8.213/91, não tendo sido sem razão a referência que lhe fez o art. 60, §12, referência essa que, em nosso sentir, não contrasta, antes converge com o que dissemos acima. De acordo com o caput desse dispositivo, “o segurado em gozo de auxílio-doença, insusceptível de recuperação para sua atividade habitual, deverá submeter-se a processo de reabilitação profissional para o exercício de sua atividade habitual ou de outra atividade”, o que significa que, naqueles casos de incapacidade parcial (ou seja, apenas para algumas atividades, não para todas), caberá ao segurado submeter-se a processo de reabilitação, o que poderá envolver a submissão a cursos profissionalizantes que o capacitem a exercer atividade diversa da anterior, compatível com a deficiência de que seria portador. O processo de reabilitação, como é óbvio, não tem prazo para terminar, pois depende de aptidões e características pessoais de cada indivíduo, estando aí o motivo da impossibilidade, a fuga ao “sempre que possível” que condiciona a estimativa de tempo para retorno ao trabalho.
O parágrafo único do art. 62 estabelece que “o benefício a que se refere o caput será mantido até que o segurado seja considerado reabilitado para o desempenho de atividade que lhe garanta a subsistência ou, quando considerado não recuperável, seja aposentado por invalidez”. Caberá, portanto, ao INSS manter o auxílio-doença enquanto o segurado incapacitado para sua atividade habitual estiver em processo de reabilitação, somente podendo cessá-lo se o perito entender que o segurado está reabilitado para trabalho diverso daquele que habitualmente exercia. Caso o perito entenda que o segurado é irrecuperável para qualquer trabalho, deverá o INSS converter o benefício em aposentadoria-por-invalidez" data-type="category">aposentadoria por invalidez.
Em todo caso, o art. 62 traz uma ideia principal: o benefício de auxílio-doença deve perdurar até que se defina, com segurança, se o segurado já recuperou ou pode recuperar sua aptidão para o trabalho. Apenas essa ideia já conflitaria com uma “alta programada” sem freios, sem a possibilidade de que o segurado comprovasse administrativamente que segue necessitando do benefício para viver. Por outro lado, acreditamos igualmente que não há conflito com a ideia de que o próprio segurado pode decidir ou, no mínimo, concordar que, em determinado momento – notadamente, aquele momento estimado pelo perito como de restauração da aptidão para o trabalho – tenha recuperado sua capacidade laborativa, decidindo-se assim a voltar a suas atividades normais, sem ter que se preocupar em se deslocar ao INSS, apenas para que um perito lhe diga o que ele já sabe.
Há, ainda, um grupo de casos que não comporta a aplicação do art. 62 da Lei n. 8.213/91: os casos de incapacidade total temporária em que a recuperação da capacidade laborativa do segurado depende, segundo o médico perito, da particular e individualizada evolução do tratamento, manifestando-se desde o início pela impossibilidade de estimar prazo de recuperação. Em casos assim, não cabe processo de reabilitação, de forma que a duração da vigência do benefício lhe pode ser vinculada.
O que fazer?
A solução que encontramos serve-se da analogia entre os benefícios previdenciários e assistenciais por incapacidade, tomando-se como ponto em comum de singular relevância (base para a validade do raciocínio analógico) o fato de que, nos dois casos, trata-se de garantir a manutenção da sobrevivência de alguém que não pode provê-la por seus meios por estar incapacitado para o trabalho[1]. Buscamos a resposta na sistemática do amparo social ao deficiente, prevista na Lei Orgânica da Assistência Social (Lei n. 8.742/93).
De acordo com a legislação que rege o amparo social ao deficiente, a deficiência, por si só, não basta à percepção do benefício. Nem mesmo é suficiente que dela decorra incapacidade laborativa. Nos termos do que diz o parágrafo 2º do art. 20 da Lei n. 8.742/93, a “pessoa com deficiência” que se credencia à percepção do chamado benefício de prestação continuada é “aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (grifamos). É preciso, portanto, que a deficiência seja incapacitante para o trabalho e que represente um “impedimento de longo prazo”, considerando-se como tal, nos termos do parágrafo 10 do mesmo artigo, “aquele que produza efeitos pelo prazo mínimo de 2 (dois) anos”.
Ressai facilmente das disposições acima que o amparo social não é, necessariamente, um benefício provisório como o auxílio-doença. Por outro lado, se o auxílio-doença se dirige sobretudo a impedimentos de curto prazo, o amparo exige a longa duração como requisito, evitando assim que se torne uma espécie de auxílio-doença para não segurados. De qualquer maneira, tanto em um quanto em outro caso os titulares assumem o dever de submissão a inspeções regulares para averiguação da manutenção do estado de incapacidade laborativa.
No caso do amparo social – e é aí que sua disciplina nos auxilia no presente ponto – existe regra específica sobre a sazonalidade dessas inspeções. De fato, prescreve o art. 21 da Lei Orgânica da Assistência Social que o “benefício de prestação continuada deve ser revisto a cada 2 (dois) anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem”. Parece-nos lógico que assim seja. Se o impedimento que autoriza a concessão do amparo deve ter duração mínima de dois anos, o ato de concessão já exclui, desde o início, a perspectiva de durações inferiores, de modo que seria um desperdício de tempo e dinheiro realizar sucessivas inspeções médicas durante os dois primeiros anos de sua duração. A partir do terceiro ano, contudo, a arquitetura do instituto já permite esperar alguma recuperação, sendo necessária a submissão do beneficiário a nova perícia para que o INSS afira a manutenção do estado de incapacidade.
Em nossa opinião, o critério de dois anos como prazo para a realização da perícia médica que poderá permitir a manutenção do amparo social ao deficiente pode ser utilizado para aquelas situações em que o requerente, segurado da previdência social, é considerado provisoriamente incapaz para o trabalho, mas sem que o perito possa minimamente precisar seu prazo de recuperação. Não, contudo, para impor ao INSS que apenas com dois anos da concessão do auxílio-doença possa convocar o beneficiário para uma perícia (o que seria contrariar a regra do art. 60, §13, como explicamos adiante), mas para autorizar que as autoridades administrativa ou judiciária, no ato por meio de que vierem a conceder o benefício, fixem em dois anos o prazo de duração em que se tenha por indispensável ao cancelamento a realização prévia de um exame médico pericial.
Não estaria o INSS, no caso do auxílio-doença com duração definida em dois anos, impedido de convocar o segurado a cada seis meses (por exemplo) para inspeção médica. É o que ressai da disposição do art. 60, §13, da Lei n. 8.213/91, com redação dada pela MP n. 767/2017: “O segurado em gozo de auxílio-doença, concedido judicial ou administrativamente, poderá ser convocado a qualquer momento para avaliação das condições que ensejaram a concessão ou a manutenção, observado o disposto no art. 101”. A fixação do prazo de dois anos, nesses casos, teria o único objetivo de evitar que o benefício fosse automaticamente cancelado pelo INSS sem a realização do exame médico pericial, permitindo ainda a aplicação do parágrafo 12 do mesmo artigo para autorizar o beneficiário a requerer sua prorrogação antes dos dois anos, ficando ao INSS proibido o cancelamento do benefício, ainda que superado o prazo estabelecido na concessão, antes da perícia administrativa.
Como é óbvio, não nos parece que essa seja a única possibilidade hermenêutica do sistema normativo que disciplina os benefícios previdenciários e assistenciais por incapacidade. Pode até ser, inclusive, que nem seja a melhor. Contudo, é aquela que nos parece adotar com mais fidelidade os critérios objetivos fornecidos pelo sistema, estando ainda em sintonia com os fins dos respectivos institutos.
4. OBJETIVOS POR TRÁS DA MP N. 767/2016
Muito se vem discutindo sobre os objetivos e finalidades do governo federal com a edição das Medidas Provisórias n. 739/2016 e n. 767/2017. Os mais exaltados “intérpretes” das disposições afirmam uma iniciativa de conter o “rombo” deixado no patrimônio do Instituto Nacional do Seguro Social à custa do trabalhador brasileiro, que seria o único prejudicado com todas essas medidas que aumentam prazos de carência (após a recuperação), restringem o acesso a benefícios previdenciários e ainda legalizam a temida e famigerada “alta programada”. Estamos, contudo, entre aqueles que, integrando o grupo mais moderado, enxergam objetivos mais nobres que simplesmente “fechar o rombo da Previdência”.
O INSS sempre foi visto como uma imensa entidade, um gigante administrativo e financeiro de difícil controle. Especialmente por isso, sempre foi alvo da investida de agentes públicos e sujeitos particulares inescrupulosos, ávidos pela obtenção de proveitos ilícitos à custa do patrimônio público. Os casos de corrupção envolvendo o patrimônio do sistema de Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) são frequentemente divulgados pela imprensa, normalmente com a constatação de prejuízos milionários. Há ainda a criminalidade pulverizada de autoria daqueles indivíduos que procuram obter benefícios previdenciários ou assistenciais sem o preenchimento dos requisitos legais (não raramente falseando-os para enganar os servidores encarregados da análise e concessão). Tudo isso conduz a uma simples conclusão: é preciso adotar estratégias, técnicas e medidas mais eficazes no gerenciamento e no controle do emprego das rendas públicas vinculadas à Seguridade Social, compreendendo a saúde, a previdência social e a assistência social.
Conquanto não a única, o aperfeiçoamento do controle administrativo e financeiro na área de concessão de benefícios previdenciários por incapacidade nos parece estar entre as finalidades da iniciativa governamental que resultou na edição das Medidas Provisórias n. 739/2016 e n. 767/2017.
Pontualmente, podemos observar que a imposição do cumprimento da carência integral a partir da perda da qualidade de segurado para benefícios com prazos de carência tão pequenos (doze meses para a aposentadoria por invalidez e o auxílio-doença, dez meses para o salário-maternidade) objetiva combater o expediente de recolher poucas contribuições quando já incapacitado para o trabalho, forjando o preenchimento de requisitos em situação de preexistência.
Ainda nessa linha, a determinação de fixação do prazo de duração do auxílio-doença, com a possibilidade de cancelamento automático independentemente da submissão do beneficiário a uma perícia médica administrativa – sempre respeitada a exceção segundo a qual o requerimento de prorrogação, no prazo de vigência, posterga obrigatoriamente o cancelamento para após a perícia médica que constate a recuperação da capacidade – tem o claro objetivo de eliminar um evidente inconveniente do sistema anterior, sem qualquer prejuízo para o segurado.
De fato, em razão de limitações administrativas e operacionais do INSS (escassez de médicos peritos, por exemplo), vários benefício de auxílio-doença eram mantidos indefinidamente, apenas porque era impossível realizar a perícia médica ao final do prazo estimado pelo perito. Esse pequeno detalhe permitia que o segurado já perfeitamente restabelecido e, às vezes, já trabalhando, continuasse a receber mensalmente o auxílio-doença porque o INSS não tinha meios de lhe inspecionar a capacidade laborativa no tempo necessário. O pior de tudo é que os pagamentos realizados após o retorno ao trabalho seriam, obviamente, indevidos, o que remeteria os interessados a duas situações possíveis, ambas desnecessárias, ambas desagradáveis: ou o segurado seria compelido a devolver todos os valores indevidamente recebidos (e já gastos) a título de auxílio-doença a partir de quando voltara a trabalhar, o que implicaria em descontos mensais em seus proventos, prejudicando seu orçamento doméstico; ou tais valores pagos indevidamente simplesmente seria perdidos pelo INSS, uma vez considerados irrepetíveis, dada sua natureza alimentar e a “ausência de má-fé do beneficiário”[2].
O que a nova disciplina da MP n. 767/2017 impõe, em termos simples, é uma mera inversão do ônus da iniciativa. Antes, sem a iniciativa do INSS em submeter o beneficiário a uma perícia, mantinha-se o benefício em franco prejuízo aos cofres públicos. Com a MP, se o segurado retorna ao trabalho antes do prazo fixado para duração do benefício, a extinção automática serve às duas partes, pois tanto evitará que o segurado seja compelido a devolver o que indevidamente recebera, quanto impedirá que a irrepetibilidade desses valores se converta em prejuízo ao patrimônio público. Por fim, se o beneficiário ainda estiver incapacitado para o trabalho na iminência da superação do prazo, bastará requerer ao INSS sua prorrogação, afastando assim o cancelamento automático e obtendo o direito à percepção do benefício até que a perícia seja realizada e devidamente constatada sua recuperação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os ramos jurídicos do direito social são particularmente sensíveis à opinião pública. Modificações no ordenamento jurídico positivo em matéria de direito do trabalho, direito previdenciário, direito assistencial, direito sanitário etc., são seguidas de intensa exposição pelos meios de comunicação de massa e, consequentemente, de efusivos debates pela sociedade civil. Trata-se do exercício direto do poder político de participação popular na definição do ordenamento jurídico, precisamente na parte que mais diretamente atinge a aspectos sensíveis da vida do trabalhador brasileiro. É algo que deve ser elogiado e, quanto possível incentivado.
O interesse em escrever o presente trabalho surgiu da constatação do quanto as recentes inovações na ordem jurídica em matéria de direito previdenciário, levadas a efeito pelo governo federal, vem suscitando na população brasileira a vontade de conhecer, opinar e debater. Para que isso aconteça, todos devem conhecer o quanto possível as normas com base em que se pretende sejam governados. A promoção da acessibilidade do conhecimento, assim, é imprescindível ao bom exercício de um controle popular sobre a atividade legislativa. Esperamos que o presente trabalho possa fomentar o debate sobre tais temas e, se possível, esclarecer pontos que tenham ficado obscurecidos pelo inevitável tecnicismo da linguagem legislativa.
Notas
[1] Lei n. 8.742/93. Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família. (Redação dada pela Lei nº 12.435, de 2011).
[2] Se é que se pode falar em “ausência de má-fé” daquele que, sabendo-se perfeitamente capaz para o trabalho, tanto que já trabalhando e auferindo renda, continua a receber e a gastar valores que somente lhe estariam sendo pagos em razão de uma suposta incapacidade e para evitar que fosse levado a um estado de indignidade.