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A Fazenda Pública tem privilégios ou prerrogativas processuais?

Análise à luz do princípio da isonomia

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06/09/2004 às 00:00
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III – CONCLUSÃO

No dizer de Wernek Vianna, "nesse meio século que nos distancia do último conflito mundial, os três Poderes da conceituação clássica de Montesquieu se têm sucedido, sintomaticamente, na preferência da bibliografia e da opinião pública: à prevalência do tema do Executivo, instância da qual dependia a reconstrução de um mundo arrasado pela guerra, e que trouxe a centralidade aos estudos sobre a burocracia, as elites políticas e a máquina governamental, seguiu-se a do Legislativo, quando uma sociedade civil transformada pelas novas condições de democracia política impôs a agenda de questões que diziam respeito à sua representação, para se inclinar, agora, pelo chamado Terceiro Poder e a questão substantiva nele contida – Justiça [13]"

Retomando a primeira reflexão, onde questionamos a porquê da acuidade do Poder Público com as regras processuais no momento em que busca afastar-se do modelo público, temos a nítida sensação de que uma das causas está centrada na influência marcada pelo Poder Judiciário sobre as políticas públicas.

Nesse contexto, as prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública teriam o condão de condicionar o processo decisório, ora figurando como ferramentas de proteção à independência das funções estatais [14], ora determinando a condução desse processo em favor de suas ações, na medida em que o agir do Poder Judiciário está a elas vinculado.

Nesse patamar de racionalidade, não se pode negar que o Direito Processual, enquanto ramo da Ciência Jurídica, traduz-se como um instrumento identificador de um subsistema político, a ser escolhido pelo cidadão ou pela coletividade com o objetivo de satisfação de um interesse individual ou social (ações coletivas), submetendo o Poder Judiciário ao patamar de instituição que, de igual sorte, importa à governabilidade. Assim sendo, os meios processuais conferidos por lei para materialização do direito, por mais inconcebível que sejam, acabam por influenciar nesse processo decisório, como ocorre com a aplicação da Medida Provisória nº 2.182-35, de 2001, impondo uma reflexão sobre as regras que condicionam a atuação da Fazenda Pública, que se diz sempre em favor da tutela do interesse público, com o objetivo de auferir o equilíbrio e a harmonia dos papéis das instituições democráticas. Daí erigir-se o princípio da razoabilidade como termômetro da consecução desse processo.

Em suma, resta evidente que a maximização desses condicionamentos em favor da Fazenda Pública pode levar ao desvio do sistema, daí a necessidade de buscar a razoabilidade das prerrogativas e identificar se elas estão velando pelo respeito aos procedimentos como forma de preservar o Estado Democrático de Direito. Se não houver ressonância, há que se sucumbir à hipótese de que estamos diante de verdadeiros privilégios processuais!


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Edição Nacional, Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949.

BUENO, Cássio Scarpinella. O Poder Público em Juízo. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

BOBBIO, Norberto; Matteucci, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Vol.1 4.ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1992.

GREGGIANIN, Eugênio. A Lei de Responsabilidade Fiscal e as Despesas Orçamentárias dos Poderes Legislativo e Judiciário e do Ministério Público. In Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados. (acesso mediante site da Câmara dos Deputados).

MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, Hábeas Data. 21º ed., atualizada por Arnald Wald, 2ª tir., São Paulo: Malheiros, 2000.

PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14.ed. São Paulo:Atlas, 2002.

______________Parcerias na Administração Pública. 4. ed.São Paulo: Atlas, 2002.

SUNDFELD, Carlos Ari e BUENO, Cássio Scarpinella (coord.). Direito Processual Público. A Fazenda Pública em Juízo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

VIANA, Luiz Werneck (org.). Os Três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

VIANA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha e BURGOS, Marcelo Baumann. Corpo e Alma da Magistratura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan,1997


NOTAS

1 Exerço cargo de Assessor Jurídico Administrativo do TRT da 8ª Região e os elementos solicitados pela AGU geralmente são por nós informados, consolidados e sintetizados dentre de um lapso de tempo mínimo, impondo a busca junto à origem/fonte que, muitas vezes, dependem de outras pesquisas e, assim, vivenciamos as dificuldades características de um regime, que não comporta equivalência com o setor privado. Esse o nosso paradigma.

2 Trechos da ficha de leitura que fizemos do artigo Reforma do Aparelho do Estado e Empresas Estatais, de autoria de Carlos Ari Sundfeld. In Direito Administrativo Econômico. Sundfel, Carlos Ari (coord). São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 269/271.

3 Em artigo publicado na Revista Fórum Administrativo de julho/2002, o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello deixou vazar a seguinte tese: Esta volumosa cópia de versículos constitucionais, nos quais são versados variados aspectos concernentes às entidades da administração indireta, quer tenham personalidade de direito público ou de direito privado, quer sejam exploradoras da atividade econômica ou prestadoras de serviços públicos, demonstra de maneira inconfutável, incontendível mesmo, que, por imperativo da própria Lei Maior, o regime jurídico a que se submetem apresenta diferenças profundas em relação à disciplina própria das empresas privadas em geral, já que a estas últimas não se aplica nenhum dos preceitos referidos. Deles ressuma, tal como amplamente se disse no início deste estudo, que ditas entidades governamentais são simples instrumentos personalizados da ação estatal. Caracterizam-se como meros sujeitos auxiliares, conaturalmente engajados na realização de interesses pertinentes a toda a coletividade e, portanto, inconfundíveis com interesses privados."

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4 RREE 220.906, 225.011, 229.696, 230.051 e 230.072 (Pleno, j. 16.11.00)

5 excerto do artigo O Direito Processual e o Direito Administrativo, de Carlos Ari Sundfeld, publicado na coletânea Direito Processual Público – A Fazenda Púbica em Juízo, coordenados pelo citado Autor e por Cássio Scarpinella Bueno. 2º ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 16/17.

6 Costa, Regina Helena. As prerrogativas e o interesse da Justiça, In Direito Processual Público – A Fazenda Púbica em Juízo, coordenado por Carlos Ari Sundfeld e Cássio Scarpinella Bueno. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, 83.

7 Moraes, José Roberto. Prerrogativas Processuais da Fazenda Pública., In Direito Processual Público – A Fazenda Púbica em Juízo, coordenado por Carlos Ari Sundfeld e Cássio Scarpinella Bueno. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 67/68

8 Os reflexos desse tempo podem ser vislumbrados sobre dois ângulos: 1) positivo ao interesse público: quando a diligência na defesa do ente público é eficaz e visa, justamente, resguardar o bem comum; 2) negativo ao interesse público, por efeito da dilação do tempo para definição de uma causa junto ao Judiciário, que também exerce uma função estatal. De um lado, uma função estatal - a executiva, pode ser considerada eficaz, em detrimento da outra – a judiciária, que acaba por enfrentar críticas quanto à morosidade e eficácia. Sendo que o inverso da situação também pode ocorrer. São dois lados da mesma moeda quando vislumbramos o Estado como organização política a quem compete ambas as funções.

9 O Poder Judiciário está vivenciando a sua fase de protagonista na condução das políticas públicas, na medida em que o fundamento do Estado Democrático de Direito é a própria Constituição, onde se assenta o núcleo básico dos direitos fundamentais, cabendo a ele o papel da concretização dessas normas, cuja dimensão será mais efetiva quanto maior a incidência política que possuir no regime político. De qualquer forma, como diz, Gisele Cittadino, "se o atual protagonismo do Poder Judiciário pode ser visto positivamente, ‘essa expansão deve ocorrer sem violar o equilíbrio do sistema político e de maneira compatível com as duas bases da democracia constitucional: garantir os direitos dos cidadãos e, portanto, limitar cada poder político, e assegurar a soberania popular’ (Guarnieri e Pederzoli, 1999:27)." Cittadino, Gisele, Judicialização da Política, Constitucionalismo Democrático e Separação de Poderes. In A Democracia e os Três Poderes no Brasil/ Luiz Wernek Vianna, organizador – Belo Horizonte: Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERJ/FAPERJ, 2002.

10 O Estado de São Paulo é típico exemplo em que o calote pode até mesmo ser legitimado pelo Poder Judiciário, eis que todas as intervenções federais intentadas não conseguiram ultrapassar a casa do prejuízo (v. decisões STF).

11 O assunto é muito bem analisado por Rita Gianesini e Sérgio Shimura, na coletânea coordenada por Carlos Aru Sundfeld e Cássio Scarpinella Bueno, já citada.

12 Não se pode negar que o nosso direito processual alberga regras próprias para a Fazenda Pública, diversas das aplicáveis ao regime civil (comum), ante a influência do Direito Administrativo.

13 VIANA, Luiz Werneck (org). Os três Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 24.

14 O Poder Judiciário, em razão da sua atuação da concretização das políticas publicas, e, ainda, por força da própria ascensão do processo concentrado de constitucionalidade de competência da Judiciário (plus político ao sistema jurisdicional), tem provocado uma reação legislativa por parte do Executivo e do próprio Legislativo, no sentido de coibir prática que o coloquem como substituto legislativo

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Sobre a autora
Maria Lucia Miranda Alvares

Advogada do Escritório ACG - Advogados, Pós-Graduada em Direito Administrativo/UFPA, autora do livro Regime Próprio de Previdência Social (Editora NDJ) e do Blog Direito Público em Rede, colaboradora de revistas jurídicas na área do Direito Administrativo. Palestrante, instrutora e conteudista de cursos na área do Direito Administrativo. Exerceu por mais de 15 anos o cargo de Assessora Jurídico-Administrativa da Presidência do TRT 8ª Região, onde também ocupou os cargos de Diretora do Serviço de Desenvolvimento de Recursos Humanos e Diretora da Secretaria de Auditoria e Controle Interno. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Eneida de Moraes (GEPEM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARES, Maria Lucia Miranda. A Fazenda Pública tem privilégios ou prerrogativas processuais?: Análise à luz do princípio da isonomia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 426, 6 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5661. Acesso em: 25 abr. 2024.

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