Introdução
Em outra oportunidade, redigimos breve análise sobre os “juros de obra”1, que vêm causando um cenário de incerteza e dúvidas não somente nos estudos de nossa jurisprudência, como no mercado imobiliário e aos consumidores em razão da vacuidade e impertinência instaladas em nosso ordenamento jurídico pátrio.
Considerando o lapso temporal decorrido desde a sobredita publicação, faz-se necessária uma releitura sobre o caso — registrando, antecipadamente, que nossa posição se mantém incólume, embora com variáveis que serão incluídas em razão da praxe jurisprudencial.
Recomendamos fortemente a leitura do artigo anterior para melhor compreensão das observações que aqui serão realizadas.
Os juros compensatórios no ordenamento jurídico brasileiro
Como exposto anteriormente, com a necessidade de adquirir moradia própria, muitos brasileiros têm procurado o financiamento dos imóveis na planta, atraídos pela suposta vantagem econômica que lhes é ofertada. Contudo, é necessário ficar atento às entrelinhas, principalmente quando há financiamento diretamente com a empreendedora, ainda na fase de construção do imóvel.
Isso porque a instituição financeira libera gradativamente — conforme haja progresso no empreendimento — à empreendedora/construtora o valor total financiado pelo consumidor que, em termos contratuais, se denomina MUTUÁRIO2. Necessário esclarecer que o liame jurídico formado no momento da avença tem natureza de relação de consumo, uma vez que as partes se emolduram nos conceitos de consumidor e fornecedor previstos nos artigos 2º e 3º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 — Código de Defesa do Consumidor.
Ocorre que, neste momento de repasse dos valores, passa a incidir o que as empresas chamam de taxa de juros do contrato de financiamento habitacional — também denominados ‘juros compensatórios’ —, que, em primeira vista, se transmutariam em prestações iníquas, onerosas em seu nascimento, conhecidas como juros ou taxa de obra ou juros no pé, nomenclatura popular do encargo.
Logo, o consumidor é surpreendido por boletos enviados unilateralmente, cuja finalidade nem sempre possui disposição contratual — com valores que variam mensalmente —, ou, se possuem, podem aparecer como cláusula obscura no momento da avença entabulada entre as partes.
Com efeito, o consumidor, a bem da verdade, acha que está pagando pelo sobredito financiamento, pois as informações são truncadas, obscuras — ousamos em dizer, com o perdão da severidade. Ocorre que os valores pagos mensalmente nesse período inicial do financiamento são apenas os referidos juros de obra e encargos acessórios da obrigação, agravado pelo fato de não haver amortização desses valores no financiamento do saldo devedor, tão somente do saldo de juros que pode ou não estar previsto contratualmente.
A manobra pode acabar se traduzindo em capitalização sobre os consumidores enquanto o empreendimento não for concluído, já que a instituição financeira só considera a conclusão da obra quando há liberação do documento chamado “habite-se”3 expedido no Cartório de Registro de Imóveis.
O grande questionamento, então, surge: haveria a transferência da responsabilidade ao consumidor, que arcaria com o pagamento de juros de obra enquanto o trâmite da documentação liberando a habitação ocorrer, isto é, até a efetiva entrega das chaves?
Neste sentido, deparamo-nos com um problema já apresentado: ora, se a carta de habite-se — ou, meramente, ato administrativo — depende da burocracia cartorária, deveria o consumidor suportar o ônus proveniente do atraso da conclusão da obra? Seria lícito e justo transferir a responsabilidade da construtora ao comprador?
Há dispositivo no Código de Defesa do Consumidor, inciso V do artigo 39, que veda a prática de cláusulas que estabeleçam obrigações iníquas, onerosas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada. Igualmente, a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, pela Portaria SDE 03/2001, veda tais manobras.
Em razão da controvérsia gerada, ainda persistente nos dias atuais, o Superior Tribunal de Justiça possuía precedente afirmando que as construtoras/empreendedoras não podiam cobrar juros das parcelas pagas pelos consumidores que adquirem imóveis na planta antes da entrega das chaves — exposto em nosso escrito anterior. Isso porque na prática os consumidores não morariam no imóvel e não teriam os valores pagos a título de juros de obra amortizados do saldo devedor, praxe que ocorre por culpa exclusiva do atraso da construtora e não deve ser endossada aos compradores.
Contudo, o entendimento daquele Sodalício sofreu algumas modificações, passando a aceitar cláusula contratual que versa sobre a cobrança do encargo até a entrega das chaves do imóvel, por ocasião do julgamento do EREsp nº 670.117/PB pela Segunda Seção, concluindo que "não se considera abusiva cláusula contratual que preveja a cobrança de juros antes da entrega das chaves, que, ademais, confere maior transparência ao contrato e vem ao encontro do direito à informação do consumidor (art. 6º, III, do CDC), abrindo a possibilidade de correção de eventuais abusos" (EREsp 670.117/PB, Rel. Min. Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Ministro. Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, DJe 26/11/2012).
O aresto acima colacionado tem sido, portanto, norteador para o entendimento predominante na Corte Superior, a saber:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. IMÓVEL. AQUISIÇÃO NA PLANTA.PROMESSA DE COMPRA E VENDA. COBRANÇA DE JUROS. COBRANÇA ANTES DAENTREGA DO IMÓVEL. POSSIBILIDADE.
1. Nos termos do art. 105, inciso III, da Constituição Federal, não compete a esta Corte o exame de dispositivos constitucionais, sob pena de invasão da competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal.
2. Rever o cumprimento e a aplicação do Termo de Ajustamento de Conduta ao contrato esbarra nos óbices das Súmulas nºs 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça.
3. Nos contratos de promessa de compra e venda de imóvel em construção, não se considera abusiva cláusula contratual que preveja a cobrança de juros antes da entrega das chaves.
4. Agravo regimental não provido.
(AgRg no REsp 1266210 / RJ, 17/11/2015)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. "JUROS NO PÉ". SÚMULA 83/STJ.
1. A Segunda Seção, no julgamento do EREsp 670.117/PB, decidiu quenão é abusiva a cláusula de cobrança de juros compensatórios incidentes em período anterior à entrega das chaves nos contratos de compromisso de compra e venda de imóveis em construção sob o regime de incorporação imobiliária (Rel. para acórdão Ministro Antonio Carlos Ferreira, julgado em 13.6.2012).
2. Agravo interno a que se nega provimento.
(AgInt no AREsp 144732 / RJ, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, 4ª Turma, 15/09/2016)
A jurisprudência firmou-se neste sentido por considerar que os juros de obra (ou taxa de obra, juros de pé e juros compensatórios), cobrados pela instituição financeira do mutuário em contrato de financiamento habitacional, correspondem à atualização do saldo devedor até que a obra seja concluída. De forma precisa, consideremos que em contrato de financiamento habitacional firmado antes da conclusão da obra (na planta), a instituição financeira recebe e libera gradativamente o valor financiado à construtora, funcionando como espécie de adiantamento para o empreendimento tomar forma, ao passo que o comprador arca com esses valores em prestações na forma de juros compensatórios.
Até a conclusão das obras, salientamos novamente, as prestações pagas não amortizam o saldo devedor, mas apenas os juros de obra estabelecidos contratualmente. Como já explicado, somente com a expedição da carta de habite-se, advinda da responsabilidade da construtora de averbá-la no registro imobiliário, os juros de obra deixariam de ser cobrados e os valores pagos pelo mutuário/comprador começariam a amortizar o saldo devedor do financiamento. Se não cessar a cobrança, estaríamos diante de ilícito e situação abusiva, abarcada pela jurisprudência dominante.
Cumpre destacarmos, portanto, que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça estreita a possibilidade de discussão judicial sobre os juros compensatórios e sua abusividade, mas não a exclui integralmente, direcionamento a lide somente à correção daquilo que extrapolar os limites legais e princípios contratuais, em especial os da esfera consumerista. Contudo, havendo previsão contratual de forma transparente e precisa, é legítima a cobrança até a entrega das chaves.
Versa o inciso III do artigo 6º do Código de Defesa do Consumidor, em linhas gerais, sobre o direito de informações transparentes e precisas sobre o produto ou serviço que irá adquirir/contratar. A reflexão que propomos e nos parece correta, com efeito, se orienta nas peculiaridades do caso concreto, em especial na análise do instrumento contratual, onde deverá constar com precisão e transparência cláusula que discipline a cobrança dos juros compensatórios, em especial sobre sua finalidade, forma de pagamento, o período em que será exigido do consumidor e, principalmente, sobre a hipótese de atraso na entrega da obra4.
A ausência de informação clara e precisa no contrato, revestida de ambiguidade ou obscuridade sobre o encargo que será suportado pelo consumidor o colocará em situação onde haverá exigência de vantagem manifestamente excessiva (já citado inciso V do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor), considerando que sequer foi levado ao seu conhecimento a existência dos juros em comento — ou, se o foi, de maneira obscura e imprecisa, estipulando presunção de conhecimento por parte do consumidor.
Logo, não havendo qualquer cláusula contratual — ou silêncio absoluto sobre os juros compensatórios —, ou cláusula contratual escrita de forma truncada, entendemos haver dissociação da jurisprudência atualmente predominante no Superior Tribunal de Justiça, surgindo espaço para discussões que visem à restituição dos valores pagos sem que houvesse previsão contratual. Ressaltamos, à exaustão que, somente com a minuciosa apreciação do caso individual por profissional habilitado será possível concluir por algum vício contratual ou possibilidade de discussão judicial.
Demais disso, no artigo anterior também consideramos a hipótese, a título exemplificativo/figurativo, do empreendimento estar fora do prazo de entrega estabelecido no contrato, hipótese em que o consumidor seria onerado por pagamento descomedido dos juros de obra, já que a construtora considera o empreendimento concluído, reitera-se, no momento da expedição da carta habite-se.
Neste esteio, consideremos que atraso na entrega do imóvel prolongou o pagamento dos encargos para a instituição financeira — por período indeterminado ou para além do período previsto no contrato firmado entre as partes, — prestações estas que não amortizaram o saldo devedor do consumidor prejudicado.
Surge, diante disso, a responsabilidade pelo ressarcimento dos juros de obra pagos indevida e excessivamente à instituição financeira, uma vez que esta última adianta valores para a construtora realizar o empreendimento, suportados pelo consumidor. Se há atraso na obra, não pode o consumidor ser excessivamente onerado com os juros, que neste caso hipotético extrapola os limites do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, sendo possível reconhecer a necessidade de ressarcimento dos valores desembolsados a título de juros de obra após a data prevista para a entrega do imóvel ou sua amortização do saldo devedor, como têm decidido alguns de nossos tribunais, havendo, ainda, a depender do caso concreto, a responsabilização por outros prejuízos gerados, em razão da sua inadimplência, ainda que parcial, a teor do artigo 944 do Código Civil.
Em recente julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, de relatoria do eminente Desembargador Josapha Francisco dos Santos, foi consubstanciado o entendimento da nossa Casa de Justiça da Capital da República, de que, em caso de atraso na entrega do imóvel, a responsabilidade pelo pagamento dos juros de obra é da construtora, a partir da data de sua mora — daí a importância de previsão contratual de todas as informações referentes ao empreendimento, de forma límpida, em especial sobre datas e prazos, que determinarão se a construtora está ou não inadimplente com suas obrigações. Vejamos a ementa:
PROCESSO CIVIL E CIVIL. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. ILEGITIMIDADE PASSIVA. AFASTADA. MÉRITO. ATRASO DA OBRA. CULPA EXCLUSIVA DA CONSTRUTORA. JUROS DE OBRA. RESSARCIMENTO. RECURSO PROVIDO EM PARTE.
1. A construtora é parte legítima para figurar no polo passivo da demanda em que se pretende, dentre outros pontos, a restituição dos valores pagos a titulo de juros de obra, vez que não se discute nestes autos o contrato de financiamento perante a instituição financeira ou a legalidade de sua cobrança, mas tão somente o reconhecimento de que a responsabilidade pelo pagamento desse valor, durante o período de atraso na obra, é da construtora.
2. Os "juros de obra", ou "taxa de obra", cobrados pela instituição financeira em contrato de financiamento habitacional, correspondem à atualização do saldo devedor até que a obra seja concluída. O atraso na entrega do imóvel por culpa da construtora prolonga o pagamento dos "juros de obra" além do período previsto no contrato, prestações estas que não amortizam o saldo devedor.
3. A construtora deve ressarcir os valores pagos a esse título à instituição financeira, na sua forma simples, ante a não comprovação da má-fé exigida para o ressarcimento em dobro.
4. Recurso parcialmente provido. Sentença reformada.
(Acórdão n.980476, 20160110252757APC, Relator: JOSAPHA FRANCISCO DOS SANTOS 5ª TURMA CÍVEL, Data de Julgamento: 09/11/2016, Publicado no DJE: 01/12/2016. Pág.: 229/237)
Igualmente, o entendimento da 6ª Turma Cível da mesma Corte:
"PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. AGRAVO RETIDO. AUSÊNCIA DE PEDIDO EXPRESSO. NÃO CONHECIMENTO. COMPRA E VENDA. IMÓVEL NA PLANTA. ATRASO NA ENTREGA. TAXAS CONDOMINIAIS. ENTREGA DE CHAVES. LUCROS CESSANTES. CABIMENTO. PRORROGAÇÃO. DIAS ÚTEIS. ABUSIVIDADE. JUROS DE OBRA. CLÁUSULA PENAL. EQUILÍBRIO CONTRATUAL. INVERSÃO. SENTENÇA PARCIALMENTE MANTIDA
(...)
O atraso na entrega do imóvel gera para a construtora a responsabilidade pelo ressarcimento dos juros de obra direcionados à Instituição Financeira, tendo em vista que os pagamentos se prolongaram no tempo por culpa da construtora.
(...)"
(Acórdão n.906734, 20130110217065APC, Relator: HECTOR VALVERDE SANTANNA, Revisor: ANA MARIA DUARTE AMARANTE BRITO, 6ª Turma Cível, Data de Julgamento: 18/11/2015, Publicado no DJE: 24/11/2015. Pág.: 280)
Com isso, demonstramos que há substrato suficiente para transmutar as práticas abusivas em compensações, pelos prejuízos causados pelas construtoras, que nem sempre têm sido transparentes nas cláusulas, e práticas abusivas obnubiladas pelo êxtase do consumidor no momento da negociação nas relações de venda e compra de imóveis.
Embora o entendimento jurisprudencial tenha mudado, quiçá evoluído, estreitando a possibilidade de discussão dos juros compensatórios, a cobrança dos encargos — ainda que agora legítima — não pode ser feita de forma imprecisa, descomedida, atemporal e desorganizada, devendo as construtoras e instituições financeiras observarem as diretrizes do Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil, sob pena de responderem por eventuais abusos ou cláusulas defeituosas que oneram o promitente comprador.
Novamente alertamos os leitores para a possibilidade de, em caso de situação que se revele abusiva, resolvê-la administrativamente, seja pelo PROCON de sua cidade ou negociando diretamente com a construtora/empreendedora. Ressaltamos, também, a cautela e calma no momento da compra, se necessário/possível com acompanhamento e análise contratual por profissional habilitado para não ser surpreendido com os juros compensatórios, jamais descartando a possibilidade de negociá-los no momento da compra.
Notas
1 <https://jus.com.br/artigos/28331/direito-aplicado-comentarios-sobre-os-juros-de-obra>
2 Chama-se de mútuo o contrato de coisa ou bens fungíveis, que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade. Possui previsão legal do artigo 586 até o artigo 592 do Código Civil. In re ipsa, falamos em dinheiro, capital, como o objeto do contrato de mútuo com a construtora e instituição financeira; a última responsável pelo valor integral do imóvel para a primeira, resgatado através das prestações mensais acrescidas dos encargos contratuais — o chamado financiamento.
3 Documento expedido por autoridade competente (Prefeitura Municipal, por exemplo), aqui chamado também de ato administrativo, autorizando o início da utilização efetiva de construções ou edificações destinadas à habitação. Grosso modo, é permissão para residir, habitar, morar no empreendimento.
4 A jurisprudência do TJDFT, por exemplo, é pacífica no sentido de considerar válida a cláusula que estabelece prazo adicional para a entrega do imóvel, observando como limite até o máximo de 180 (cento e oitenta) dias, devendo esse prazo abarcar todas as externalidades negativas que afetam o regular cumprimento das obrigações oriundas de contratos dessa natureza.