Das determinações desnecessárias e ilegais em casos urgentes de doenças graves

05/04/2017 às 14:41
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Trata-se de artigo que defende a proibição da criação de entraves não previstos pela lei pelos juízes e cartórios judiciais, principalmente em casos em que demandam a concessão de tutela de urgência no âmbito da saúde.

Infelizmente, há uma tendência de alguns juízes e cartórios extremamente prejudicial não somente aos advogados, mas principalmente aos mais carentes da atuação do Direito: a tendência de exigências desnecessárias em processos, visando apenas torna-lo mais difícil e lento, de maneira a proceder da seguinte maneira: a cada pedido do advogado, uma nova providência é determinada. Muitas vezes tais providências não são nem ao menos realizadas pelos magistrados, mas sim pela equipe que atua em seu cartório judicial, frente ao inegável acúmulo de trabalho que aumenta a cada dia.

Isto lembra a conhecida “jurisprudência defensiva”, segundo a qual recursos nos Tribunais superiores são denegados sumariamente, sob o pretexto de otimizar o trabalho dos mesmos, que se encontra altamente acumulado.

Nesse sentido, José Miguel Garcia Medina:

(...) “Os tribunais superiores têm a grande função de apontar o rumo correto a ser seguido na interpretação e aplicação da Constituição e da lei federal. Devem, pois, ser tomados como exemplos do cuidado com que a norma jurídica deve ser interpretada e aplicada. A criação de requisitos recursais à margem da lei definitivamente não corresponde ao papel que deve ser desempenhado pelos tribunais. Esse, a meu ver, é o maior problema da jurisprudência defensiva. Os tribunais — e, no que respeita ao tema, especialmente os tribunais superiores — devem atuar com retidão, ao aplicar a lei. A criação de “entraves e pretextos” não previstos na norma jurídica “para impedir a chegada e o conhecimento de recursos” mancha a imagem daqueles tribunais que deveriam servir de guias na interpretação da própria lei. (MEDINA, 2013). - grifo nosso.

A analogia da chamada jurisprudência defensiva dos tribunais aos entraves em primeira instância que ocorrem, se dá justamente por serem impostos aos atores do processo requisitos “à margem da lei”, isto é: requisitos que a lei nunca determinou, mas que são dados de acordo somente ao entendimento do julgador.

Alguns juízes de primeiro grau também tem agido da mesma maneira, criando entraves desnecessários, muitas vezes até mesmo impedindo que o doente acesse a jurisdição. Desta forma, o provimento inicial ou final do processo é postergado até o doente conseguir satisfazer as exigências que não constam na lei determinadas pelo juiz. Se um indivíduo pede com urgência um tratamento através de liminar, significa que o mesmo está com a saúde abalada, e não poderia fazer diversas providências desnecessárias, ao bel prazer do julgador no caso concreto.

Ressalta-se: trata-se de uma minoria no Judiciário. No entanto, o objetivo é exatamente chamar atenção acerca da tendência de aumento de providências desse jaez, de maneira a configurar um verdadeiro jogo de “passa ou repassa” no processo.

Vejamos um exemplo de entrave desnecessário imposto pelo juiz – ou o cartório do mesmo, não se sabe -, segundo pediu-se uma liminar para uma doente grave, mas o despacho seguinte requereu que a doente tomasse mais de uma dezena de providências para ter seu pleito ao menos analisado:

Processo n.º 5003188-45.2016.4.04.7100

10ª Vara Federal de Porto Alegre

M.F.A.P.W. X União Federal

Despacho determinava a autora, antes de ter seu pedido urgente apreciado:

a) promover a complementação do laudo médico, com as seguintes informações:

(a.1) se o atendimento ocorre pelo SUS, particular, convênio ou outro meio, especificando;

(a.2) justificar a razão pela qual não foi prescrito remédio/insumo integrante das listas padronizadas do SUS e/ou dos Protocolos Clínicos;

(a.3) especificar os medicamentos/insumos integrantes das Listas e/ou Protocolos Clínicos que já foram ministrados ao paciente e não foram eficazes no combate da patologia;

(a.4) fazer comparação entre os fármacos/insumos das Listas e Protocolos Clínicos e os que não integram e especificando (não apenas mencionando a existência) de evidências científicas e estudos literários atuais do fármaco/insumo prescrito que não integra as Listas/Protocolos Clínicos da rede pública, demonstrando que são mais eficazes para o controle da moléstia;

(a.5) indicar o nome comercial do produto;

(a.6) esclarecer se a parte autora fez ou faz parte de programas de pesquisa experimental dos laboratórios ou hospitais e, em caso positivo, se anteriormente foi fornecido o medicamento pleiteado e por quem;

(a.7) declarar conflito de interesses.

b) juntar aos autos o cartão SUS;

c) juntar aos autos três orçamentos do medicamento pleiteado, subscrito pelos profissionais farmacêuticos das farmácias consultadas;

d) juntar aos autos comprovante de rendimentos devidamente atualizado;

e) juntar aos autos procuração com a devida identificação do outorgante (nome e qualificação).

Note-se: no caso acima, são onze requerimentos do Juízo, condicionando a apreciação da concessão da liminar à satisfação dos requisitos que, sem dúvida, em sua maioria não constam na lei e mais: trazem extrema dificuldade para um doente grave conseguir cumprir, o que transformaria o Judiciário em um órgão inócuo e sem eficácia nenhuma. Como exigir que um doente em situação agravada cumpra todos esses requisitos para ter sua vida preservada? Entendemos medida absolutamente ilegal. Os requisitos que saltam aos olhos são perguntar se a doente possui plano de saúde (quando é dever do Estado garantir a saúde); três orçamentos assinados por farmacêuticos; declarar conflito de interesses; justificar – o médico – o porquê não foi indicado um remédio que o SUS concede ao invés do objeto da demanda. Frisa-se: se tratava de um pedido urgente.

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Ora, num caso urgente, não é minimamente plausível fazer todas essas exigências que a lei nunca determinou, mas somente saíram do particular entendimento do juiz.

Se persistir alguma dúvida acerca da situação, o julgador tem o dever de agendar uma perícia médica com profissional especialista, mas nunca poderá exigir uma verdadeira bateria de providências que não constam na lei.

O mais sério é que essa tendência – em analogia à jurisprudência defensiva existente nos Tribunais – tem sido vista em todas as áreas do direito, de maneira a configurar uma verdadeira infração ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, presente no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal. Além disso, atenta contra o princípio da duração razoável do processo - art. 5º, LXXVIII.

Parte da doutrina entende que este último princípio decorre do princípio da dignidade de pessoa humana, isto é: norma constitucional de eficácia plena e imediata. Vejamos o que estabeleceu Gilmar Ferreira Mendes:

(...) “A EC n. 45/2004 introduziu norma que assegura a razoável duração do processo judicial e administrativo (art. 5º, LXXVIII). Positiva-se, assim, no direito constitucional, orientação há muito perfilhada nas convenções internacionais sobre direitos humanos e que alguns autores já consideravam implícita na ideia de proteção judicial efetiva, no princípio do Estado de Direito e no próprio postulado da dignidade da pessoa humana. (...)

O reconhecimento de um direito subjetivo a um processo célere — ou com duração razoável — impõe ao Poder Público em geral e ao Poder Judiciário, em particular, a adoção de medidas destinadas a realizar esse objetivo. Nesse cenário, abre-se um campo institucional destinado ao planejamento, controle e fiscalização de políticas públicas de prestação jurisdicional que dizem respeito à própria legitimidade de intervenções estatais que importem, ao menos potencialmente, lesão ou ameaça a direitos fundamentais (MENDES, 2012, p. 584). – grifo nosso.

Desta forma, quando há um pleito liminar (pedido de tutela provisória de urgência antecipatória) há apenas os requisitos a seguir: a probabilidade do direito, e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Ora, o juiz somente poderá determinar providências essenciais para aferir a probabilidade e o perigo de dano/resultado útil do processo, sendo que, se pedir algo a mais, não estar-se-á sendo congruente com o que a lei determina, e mostrando que está pedindo o que quer, de maneira absolutista e ilegal. Lembramos ainda que a Administração Pública, que atua através do juiz, no caso, somente pode fazer aquilo que a lei manda. Nada mais, e nada menos.

Em suma, a recomendação é que, caso em seu processo venha a ser solicitada pelo juiz uma providência que praticamente impossibilita o desenvolvimento regular do caso, a situação demanda a princípio um pedido de reconsideração na primeira instância, bem como um recurso de Agravo de Instrumento, pleiteando que a liminar (tutela de urgência provisória de natureza antecipatória) seja concedida diretamente no Tribunal.

Lembramos ainda que enquanto o particular pode fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, o funcionário público somente pode fazer aquilo que a lei manda. Desta forma, quando um funcionário público estiver agindo acima da lei, deverão ser tomadas as medidas legais cabíveis.

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Sobre o autor
Ricardo de Lemos Rachman

Advogado atuante em causas da saúde nacional, que visa não somente atuar de forma individual mas, ainda, atingir o panorama coletivo da temática no país, seja através de publicações e atuações jurídicas e defesa dos interesses dessa fragilizada minoria.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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