Venho acompanhando, com uma boa dose de perplexidade, a nova e grande voga das eleições municipais de 2004: os testes aplicados pelos juízes eleitorais àqueles que pretendem disputar os cargos de prefeito e vereador neste pleito, com o fim único e exclusivo de "comprovar" a escolaridade dos candidatos, avaliando seu grau de alfabetização.
Assim, antes mesmo de enfrentar o teste das urnas (este, sim, legítimo!) os candidatos estão fadados a suportar incomparável constrangimento diante de uma sociedade elitista, o qual tem como única serventia a demonstração inequívoca de que o passado de analfabetismo e semi-alfabetismo vivido pelo nosso país, diferentemente do que afirmam os políticos de alto escalão, continua latente.
Esse quadro grotesco da educação de nossa sociedade agrava-se quando se adentra ao interior nordestino, onde o nível das professoras de escolas públicas que lecionam no primeiro e até mesmo no segundo grau, é deveras preocupante, tendo em vista que, na maioria das vezes, a própria docente encontra inúmeras dificuldades no desenrolar da nossa língua.
Diante desse quadro, como falar então em candidatos corretamente alfabetizados se os mesmos somente dispõem das escolas públicas para lhes ensinar a ler e escrever?
Como falar em representação popular se os juízes eleitorais estão a exigir candidatos que não apresentem erros ortográficos e leiam com notória desenvoltura, quando os mesmos provêm de uma população analfabeta?
Onde anda a sensibilidade da Justiça, que deveria sair das dependências de seu gabinete para sentir a realidade vergonhosa que assola a educação em nosso país?
E, por fim, como condenar uma pessoa, tolhindo seus direitos políticos, que é tão somente mais uma vítima da situação em que se encontra a educação nacional?
Devo confessar minha ignorância estatística acerca do percentual de analfabetismo no Brasil, mas, tendo como base a triste realidade que se apresenta nos municípios do Nordeste, fácil perceber que o cidadão que lê e escreve, ainda que de maneira rudimentar, como é caso da grande maioria dos candidatos, é reconhecidamente vitorioso nessa guerra.
Aqui talvez valha aquele antigo dito popular: Em terra de cego, quem tem um olho é rei!
O parágrafo 4° do artigo 14 da Carta da República diz que:
"Art.14 Omissis
§ 4° São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos"
Nesse ponto, deixo claro que não estou a defender a candidatura dos pretendentes a cargos eletivos completamente analfabetos, se assim o fizesse estaria condenado meu diploma e negando a Lei Maior do nosso país, no entanto, encontro-me na defesa daqueles que, vitimados pelo caos educacional, não dominam a língua portuguesa e, somente por esse motivo, estão sendo constrangidos e, por que não dizer, julgados inaptos ao pleito de 2004 pelos juízes eleitorais de primeira instância.
Importante destacar, nesse ponto, que há uma nítida distinção, a qual não estão atentos muitos juízes eleitorais, entre os candidatos analfabetos e os semi-alfabetizados, de modo a ser forçoso dar-se tratamento diferenciado aos mesmos, sob pena de lesões aos direitos políticos daqueles que, mesmo não dominando de modo absoluto a língua portuguesa, tem capacidade política para estar a frente (e, muitas vezes, já estão) de um cargo eletivo municipal.
Destaca-se que o assunto tem gerado muita polêmica na esfera política e jurídica: no âmbito dos Tribunais Regionais o entendimento tem sido diverso dos juízes de primeiro grau, e até mesmo o nosso Pretório Eleitoral, através da liminar concedida ao candidato de Aracati no Ceará já teve a oportunidade de manifestar-se sobre o "provão", na pessoa de seu ilustre Ministro Gerardo Grossi para o qual o teste "virou uma festinha, no sentido de ridicularizar a pessoa, e parece-me uma coisa humilhante.(...) Há pessoas que, mesmo analfabetas são muito inteligentes. (...) A pessoa não tem vocação para o analfabetismo, é a sua condição social."
O insigne ministro, que não vê grandes dificuldades na pouca instrução dos candidatos, vai ainda mais longe: "Se ele necessitar de uma leitura, alguém pode fazer para ele", disse. "O presidente da República, por exemplo, pede um intérprete quando se encontra com outro chefe de Estado [1]".
Como o próprio ministro do Tribunal Superior Eleitoral já percebeu, a pouca, e não ausência, de instrução por parte dos candidatos, embora não seja fato obstativo do exercício da vereança, ou mesmo da chefia do executivo municipal, virou motivo para indeferimento em massa de candidaturas, ridicularizando pessoas públicas e que, na grande maioria das vezes, já exerceram tais cargos com competência e honestidade.
Nesse prisma, tendo em vista as limitações do ensino publico de nosso país, é de se esperar que os pretendentes a cargos eletivos municipais apresentem algumas dificuldades nos testes realizados, entretanto, não devem ser considerados analfabetos, inelegíveis pela Carta Política Brasileira, mas tão somente cidadãos semi-alfabetizados.
Ademais, outro ponto que se destaca sobre essa questão é a suposta finalidade de comprovação de escolaridade ante a ausência de documentação que comprove o grau de instrução do candidato. Ora, os juízes eleitorais, objetivando a aplicação do "provão" alegam sumariamente que o mesmo não juntou aos autos prova suficiente para demonstrar sua escolaridade, entretanto, passam por cima do artigo 33 da Resolução 21.608/2004, que vincula o juiz, reservando ao candidato o direito de, caso haja insuficiência na documentação apresentada no pedido de registro de candidatura, suprir as omissões e falhas apresentadas:
"Art. 33 Havendo qualquer falha ou omissão no pedido de registro, que possa ser suprida pelo candidato, partido político ou coligação, o juiz converterá o julgamento em diligência para que o vício seja sanado, no prazo de setenta e duas horas, contado da respectiva intimação, que poderá ser feita por fax, correio eletrônico ou telegrama (Lei n.° 9.504/97, art. 11, § 3°)."
Assim, correto seria se o juiz eleitoral, insatisfeito com a documentação acostada ao pedido de registro acerca da escolaridade dos candidatos, procedesse à sua intimação para que, em setenta e duas horas, os mesmos procurassem sanar o vício apresentado.
Do exposto, depreende-se que, na maioria das vezes, os juízes eleitorais não têm critério fixo para determinar a aplicação do teste de escolaridade, fazendo-o arbitrariamente e expondo os candidatos a situação vexatória, julgando-os alfabetizados ou não, em época na qual os ânimos já estão por demais alterados e a disputa política, que há muito deixou de ser ideológica, torna-se mais penosa para a população, que está obrigada a engolir embates pessoais entre candidatos e desprovidos de propostas governamentais.
Frisa-se que nenhum juízo ou tribunal, no exercício de sua atividade, tem competência para julgar o grau de escolaridade dos cidadãos, estando inaptos a declarar o nível de instrução dos candidatos sob pena de, ocorrendo equívocos, como constantemente ocorrem, lesionar de maneira irreversível os direitos políticos dos cidadãos resguardados pela Carta Magna, devendo, portanto, o mesmo ater-se ao exercício de sua jurisdição.
Cumpre assinalar, ainda, que é entendimento dominante no Tribunal Superior Eleitoral a possibilidade de o candidato à reeleição, inobstante ter sido inabilitado no "provão", ter seu registro de candidatura deferido, assegurando o pretório que os conhecimentos limitados não impedem uma boa administração:
"Recurso eleitoral. O semi-alfabetizado que assina e lê seu nome, já estando exercendo mandato de vereador, tem direito ao registro de candidatura para sua reeleição. Recurso provido (2)"
Do acórdão alhures citado, extrai-se o seguinte trecho:
"Há de se levar em conta que o recorrente já exerceu mandato de Vereador, e não se argüiu ineficiência em desempenho político, em decorrência das poucas letras.
Dou provimento ao recurso para reformar o acórdão atacado e permitir o registro do candidato."
À guisa do voto colacionado, nota-se que o Tribunal Superior Eleitoral procura louvar não o analfabetismo, mas a capacidade política dos cidadãos, permitindo que os candidatos à reeleição tenham seus registros de candidatura aprovados, independentemente de teste, ou seja, o tribunal concluiu que a baixa escolaridade não é sinônimo de incompetência política.
Pois bem, num país onde as escolas públicas encontram-se depredadas e onde a miséria obriga as crianças a ausentar-se das escolas para trabalhar, é muito comum que milhares de pessoas passem toda a vida sem saber ler ou escrever. Os poucos que conseguem, com muito esforço, aprender o suficiente para retirar-se o estigma de analfabeto, deveriam ser festejados e não, sob alegação de baixa escolaridade, furtados de uma porção de sua cidadania, devendo, pois, os juízes eleitorais gozar de discernimento para diferenciar analfabeto e semi-alfabetizado.
De toda a situação apresentada, uma coisa é certa: encerrada as eleições municipais de 2004, o "provão dos candidatos", será de grande utilidade para o MEC, na elaboração de seus percentuais de analfabetismo no Brasil, pois se existem candidatos (inclusive concorrendo à reeleição) que estão sendo julgados analfabetos pelos juízes eleitorais, pelo fato de não dominarem a língua pátria, o nível de analfabetismo da população que o elegeu deve, com certeza, ser gritante.
Ademais, servirá como exemplo da assustadora realidade da educação brasileira, onde, com exceção das pessoas que têm condições de arcar com escolas particulares para seus filhos, quem não é analfabeto, é semi-alfabetizado, não dominando nossa língua como deveria.
Notas
1Prova da justiça eleitoral reprova 9 candidatos em Porto Ferreira. Disponível em: <www.verdadeonline.com.br > Acesso em: 02 agost. 2004
2 TSE. Recurso Eleitoral n.° 10.318 – SP. Rel. Min. José Cândido. 18.09.92