7. Princípio da insignificância
O direito penal não deve ser aplicado quando a lesão ou o perigo de lesão ao bem jurídico for irrelevante e tolerável: é o que orienta o princípio da insignificância, ou também chamado de princípio da bagatela. Desenvolvido contemporaneamente por Roxin, que coloca o princípio da insignificância como um filtro do que seja realmente indispensável para a proteção do bem jurídico, atuando para excluir da aplicação do direito penal, desde o início, danos de pouca importância30.
É possível dizer que o princípio da insignificância é corolário da intervenção mínima e suas derivações principiológicas, vejamos: o direito penal tutela apenas os bens jurídicos mais importantes para o homem (exclusiva proteção de bens jurídicos), devendo ser utilizado apenas em último caso (subsidiariedade), e para a proteção de relevante e intolerável lesão ou perigo de lesão aos bens protegidos (fragmentariedade), assim, ofensas toleráveis e irrelevantes para a ultima ratio do Estado não apresentariam tipicidade penal material pela sua insignificância. Em palavras diversas, uma ofensa insignificante a um bem jurídico tutelado não pode provocar a resposta penal do Estado, que deve direcionar a sua violência legítima apenas aos danos de maior relevância, preservando, assim, a subsidiariedade e a fragmentariedade do direito penal
O princípio da insignificância é recebido como causa excludente de tipicidade material. Logo, embora determinada conduta possa ser formalmente típica, será considerada materialmente atípica caso o dano ou o perigo de dano ao bem jurídico tutelado seja de irrelevante e tolerante. São oportunas as explicações de Bitencourt e Prado, de que o fato de determinada conduta tipificar uma infração penal de “menor potencial ofensivo” (art. 98,1, CF.) não quer dizer que tal conduta configure o princípio de insignificância, esclarecendo que a irrelevância ou insignificância de determinada conduta deve ser aferida não apenas em relação à importância do bem juridicamente atingido, mas especialmente pela intensidade, isto é, pelo grau da lesão produzida31.
Em âmbito jurisdicional, o Supremo Tribunal Federal, decidindo sobre a possibilidade da utilização do princípio da insignificância como excludente de tipicidade material, tentou dar-lhe um rigor científico, estabelecendo quatro pressupostos para sua aplicação: mínima ofensividade da conduta (dano reduzido), ausência de periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressiva lesão jurídica (HC 84.412/2004, rel. Min. Celso de Mello).
O princípio da insignificância tem origem dentro das questões de política criminal, o que não poderia ser diferente dada a sua “raiz” no princípio da intervenção mínima, que possui protagonismo em um sistema penal de caráter democrático. Painel que explica, por exemplo, a sua aceitação majoritária na jurisprudência brasileira, apesar da ausência de previsão expressa no ordenamento jurídico. O Supremo Tribunal Federal também já enfrentou o tema, decidindo, em síntese, que o princípio da insignificância tem base constitucional, com presença implícita do artigo 5º, XXXIX, da Constituição, pois relaciona-se intimamente com a tipicidade penal, que, por sua vez, tem fundamento no princípio da legalidade.
8. Reflexões e alguma conclusão
A missão político-criminal do direito penal é a proteção de bens jurídicos da forma mais racional possível, o que, dentro de um ambiente democrático e humanista, somente será realizado se a violência legítima do Estado for utilizada no mínimo necessário, nem mais, nem menos. Os valores essenciais da Constituição irão traçar o caminho do legislador penal e do julgador para promover duas seleções importantes para o sistema penal: a seleção dos bens jurídicos mais relevantes e a seleção das condutas mais relevantes e intoleráveis. Os princípios penais fundamentais que orientam a missão do direito penal são frutos de uma epistemologia heterogênea, que envolve tradição iluminista, filosofia liberal, positivismo jurídico, minimalismo e garantismo penal, teorias de direitos humanos, entre outros; e é dentro dessa dinâmica principiológica, que encontra harmonia no ideal comum da dignidade da pessoa humana, que retiramos alguns dos elementos mais importantes para estruturar o DNA do Estado democrático de direito.
Referências
1 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 12. ed., p. 59. Rio de Janeiro: Revan, 2011.
2 Op. cit., p.33.
3 Breves considerações ao princípio da legalidade: https://marciowidal.wordpress.com/2013/03/02/descomplicando-principios-da-legalidade-reserva-legal-anterioridade-e-taxatividade/
4 Op. cit., p.61.
5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal, 5. ed., p. 12. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
6 MELCHIOR, Antonio Pedro. Movimentos sociais e repressão criminal com fins políticos no Brasil do Séc. XXI. In: MELCHIOR, Antonio Pedro et al. Autoritarismo e processo penal brasileiro, p. 131. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
7 FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal, P. G., 7. ed., p. 17. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1985
8 JELLINEK, Giorgio. Sistema dei diritti pubblici subbiettivi. Milano: Società Editrice Libraria, 1912.
9 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.
10 FILHO, Francisco Bissoli. O Objeto da Ciência do Direito Penal: descrição – crítica – reconfiguração, p. 155-156. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
11 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, p. 81-172. Madrid: Centro de Estúdios Políticos y Constitucionales, 2002.
12 Op. cit., p.59.
13 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general, 2. ed., p. 135. Buenos Aires: Ediar, 2002.
14 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, 4. ed., p. 425. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
15 WELZEL, Hans. Derecho penal: parte general, p. 1. Traduzido para o espanhol por Carlos Fontán Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956.
16 Breves considerações ao funcionalismo: https://marciowidal.wordpress.com/2013/03/16/principais-nocoes-da-doutrina-funcionalista-do-direito-penal/
17 ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito penal, 2. ed., p. 39. Traduzido por André Luís Callegari e Nereu Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.
18 Op. cit., p. 17-18.
19 ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general, tomo I, 2. ed., p. 55. Traduzido para o espanhol por Diego Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Editorial Civitas, 1997.
20 Expressão de J. J. Canotilho, em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 221. Coimbra Almedina, 1998).
21 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral, 6. ed., p. 5-6. Curitiba: ICPC Cursos e Edições, 2014.
22 MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción al derecho penal, p. 59. Barcelona: Editora Bosch, 1975.
23 Op. cit., p. 83.
24 Op. cit., p. 427.
25 ROXIN, Claus. Iniciación al derecho penal de hoy, p. 23. Traduzido para o espanhol por Francisco Muñoz Conde. Sevilha: Editora Universidad de Sevilha, 1981.
26 Op. cit., p. 60.
27 Op. cit., p. 63.
28 Op. cit., p. 107.
29 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 11. ed., p. 58. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.
30 Claus Roxin. Política criminal y sistema del Derecho Penal, 2. ed., p. 74. Traduzido para o espanhol por Francisco Muñoz Conde. Buenos Aires: Hammurabi, 2002.
31 BITENCOURT, Cezar Roberto; PRADO, Luiz Régis. Princípio fundamentais do direito penal. In: FRANCO, Alberto Silva; NUCCI, Guilherme de Souza et al. Doutrinas essenciais de direito penal, v. I, p. 354. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.