4. A postura internacional frente ao princípio da precaução
A União Européia, conforme já mencionado, adota o princípio da precaução de forma veemente. Todavia, essa atitude precaucionista adotada pela União Européia vem sendo aplaudida por uns e severamente criticada por outros, principalmente porque uma de suas conseqüências é a restrição ao comércio de produtos que não se enquadram nos padrões exigidos pelas normas de proteção sanitárias dos países que o consagram.
Dessa forma, tem-se que justamente
(...) neste momento de publicização inédita do debate sobre a saúde que a liberalização do comércio mundial chega ao seu grande impasse: o desmantelamento da proteção tarifária e não-tarifária no setor da agricultura. Os países desenvolvidos recusam-se a abrir seus mercados, protegendo sua produção e, ao menos no caso da Europa, peneirando também sua qualidade de vida, através da multifuncionalidade da agricultura e do modelo intensivo de produção. Já os países em via de desenvolvimento lutam pelo acesso aos grandes mercados, como forma de superação de seus graves problemas econômicos através da inserção no comércio internacional. [29]
Nesse conflito, por enquanto, busca-se deixar a salvo os fins para o qual se destina a aplicação do princípio da precaução: a proteção ao meio ambiente e à saúde. Todavia, a incompreensão desse princípio, principalmente por aqueles países que monopolizam as novas tecnologias (OGMs, por exemplo), gera uma acirrada disputa que não considera os interesses e anseios da sociedade na busca por qualidade de vida associada à auto-sustentabilidade. A população, por sua vez, ainda se mostra receosa com certas tecnologias que ainda não tiveram seus efeitos totalmente estudados.
Outra divergência decorrente da aplicação do princípio da precaução deriva da concepção de responsabilidade adotada até o momento para aquelas atividades potencialmente danosas. Segundo a atual teoria da responsabilidade, qualquer questionamento ou responsabilização sobre atividades de risco somente se efetiva mediante a ocorrência do dano, por vezes, de proporções irreversíveis. Com a aplicação daquele princípio, não há necessidade de produção do dano para que seja questionado determinado produto. A simples incerteza ou falta de conhecimento mais aprofundado sobre algum produto potencialmente danoso faz com que o Estado aja em favor da preservação de valores mais importantes que os interesses comerciais e econômicos daqueles que buscam impor seus produtos. [30]
No Brasil, o princípio da precaução aos poucos está sendo incorporado ao ordenamento jurídico e às políticas públicas (art. 225 da Constituição Federal). Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer até se chegar ao ponto em que se encontra a União Européia, caso seja essa a posição que o Brasil venha a adotar. Por enquanto, o Brasil está delimitando suas formas de proteção e de regulamentação ambiental com base no princípio da precaução, especialmente para os organismos geneticamente modificados (OGMs). Deve-se ressaltar que ainda não há tranqüilidade e tampouco garantia de que sua aplicação se dará de forma efetiva. Um exemplo que ilustra perfeitamente essa intranqüilidade é o da liberação dos OGMs. Esse é um caso de extrema repercussão tendo em vista que sua liberação se deu, inicialmente, sem a realização de Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Por conseguinte, foi questionada judicialmente e liberada somente através de Medida Provisória para o caso da safra de soja do ano de 2003, afastando-se temporariamente a aplicação do princípio da precaução.
Nesse sentido, faz-se necessário um estudo contínuo para que se busque entender as implicações decorrentes da aplicação do princípio da precaução com vistas a uma melhor compreensão de sua funcionalidade. Dessa forma, evitar-se-á que uma equivocada interpretação do princípio possa ser utilizada como entrave ao desenvolvimento da integração principalmente para o caso do Mercosul, do qual o Brasil faz parte. Constata-se que aos poucos o tema chega até o bloco, onde necessita de um posicionamento mais firme a ser adotado entre os países que o compõem, assim como já ocorre na Europa. A partir de tal decisão, o Mercosul poderá definir qual será o rumo de sua política externa frente às diferentes visões que circundam o tema. Todavia, na tomada dessa decisão é fundamental que se leve em conta a importância comercial da União Européia perante o Mercosul, pois se trata de questão imprescindível para o seu desenvolvimento. As relações entre a União Européia e o Mercosul podem ser decisivas para o futuro dos Estados do Cone Sul, não apenas em razão das trocas comerciais, mas, sobretudo por confrontar esse jovem bloco com as vicissitudes e trunfos de um processo já bastante desenvolvido. [31]Existe um forte interesse político na aproximação de relações com a União Européia e Mercosul (Brasil). Por parte da União Européia, existe interesse em reforçar sua presença na América do Sul, diante da prática constante de priorizar as relações com os Estados Unidos, evidenciada através das políticas praticadas pelos membros do Mercosul (em especial Argentina).
Soma-se a esses fatores a constatação de que o comércio agrícola representa a dimensão mais desafiadora no processo de integração entre Mercosul e União Européia. Esta é uma área onde as preocupações ambientais conflitam com as pressões dos países do Mercosul para acesso a mercados, e com a resistência a mudanças enraizadas na Política Agrícola Comum (PAC). [32] Entretanto, é também uma área onde existem oportunidades para novas formas criativas de solução desta complexa questão. Indubitavelmente, sem estas novas formas poderá não haver uma solução exeqüível para as questões em pauta.
O Mercosul forte interessa aos povos de toda a América do Sul. A aliança com a Europa pode mudar o curso da globalização, privilegiando, além da defesa da democracia e do desenvolvimento, questões sociais e ambientais que fazem parte da principiologia da integração européia. (...) A Europa nos oferece a chance de reconstruir o Mercosul sobre novas bases. [33]
Assim, caberá aos países membros do Mercosul se posicionarem quanto aos limites de aplicação do princípio da precaução e se o mesmo será encarado como um princípio norteador de políticas de gestão ambiental ou se sua aplicação ficará relegada a um segundo plano, permanecendo apenas presente nos textos dos acordos internacionais que o prevêem.
O importante é que o princípio passe a ser mais discutido e levado em consideração em conflitos que porventura venham a surgir a exemplo do que já poderia ter sido feito na controvérsia que envolveu Argentina e Brasil [34] no caso dos fitossanitários, conforme resultado do VII Laudo Arbitral do Tribunal ad hoc do Mercosul. [35] Neste caso o Brasil pretendia barrar a entrada de produtos fitossanitários argentinos em seu território, alegando que esses poderiam oferecer riscos à saúde dos consumidores e ao meio ambiente. Porém, a decisão do Tribunal afastou a aplicação do princípio da precaução, não reconhecendo a inversão do ônus da prova ao mencionar que caberia ao Brasil apresentar prova concreta quanto aos alegados danos. É evidente que houve equívoco, intencional ou não, quanto à abstenção ao uso do princípio da precaução, pois se assim o tivesse feito, a fundamentação quanto à necessidade de se apresentar prova concreta acerca dos riscos à saúde e ao meio ambiente seria afastada, por fazer parte da essência do princípio a desnecessidade de prova concreta para que sejam tomadas medidas restritivas. Todavia, tal decisão marca um importante momento no desenvolvimento do Mercosul, pois o princípio já começa a se mostrar presente em conflitos no bloco, assim como já acontece há algum tempo na União Européia.
Por fim, um fato que reafirma a preocupação com a questão ambiental por parte dos Estados-partes do Mercosul são as tentativas de harmonização das normas ambientais. Recentemente foi firmado um Acordo-Quadro sobre Meio Ambiente do Mercosul, conhecido como Acordo de Florianópolis (14/03/2001) que veio a ser assinado em Assunção (22/06/2001). Muito embora o nome seja "Acordo-Quadro", segundo o prof. Guido Soares, o mesmo não pertence à categoria dos tratados-quadro, (...) mas trata-se de um umbrella treaty, bastante vago, que estabelece, em 10 artigos e um Anexo (Áreas Temáticas), intenções dos Estados-partes de estabeleceram uma cooperação em matéria ambiental, sem dispor, contudo, sobre os mecanismos apropriados para uma perfeição daquelas intenções. [36]
5. Considerações finais
A busca pela efetivação do Direito Ambiental Internacional passa pelo enfrentamento das questões comerciais. A evolução desse novo ramo do Direito traz consigo implicações diretas e decisivas para as Relações Internacionais, especialmente no que se refere a prática de medidas de proteção ambiental em confronto com o livre comércio. O aumento no número de tratados e convenções internacionais demonstra que a preocupação em regulamentar tanto o comércio internacional como os mecanismos de proteção ambiental são um objetivo almejado mundialmente. Porém, esses mesmos textos normativos podem trazer consigo instrumentos que geram dúvida e incerteza sobre como devem ser aplicados. O princípio da precaução, instrumento legítimo de preservação dos interesses ambientais, é um exemplo dessa incompreensão. Sua lógica está muito além das noções de responsabilidade que se possuía até bem pouco tempo. Os questionamentos acerca das práticas comerciais em detrimento dos interesses ambientais são de difícil absorção por uma sociedade que visa, em especial, a obtenção de lucro rápido e fácil. A consciência ecológica ainda não se manifestou plenamente, de forma a tornar mais tranqüila a adoção de medidas restritivas ao comércio como pressupõem certos casos analisados sob a ótica do princípio da precaução.
O problema não encerra nessas incertezas. Muito embora o Direito Ambiental Internacional esteja se cercando de instrumentos jurídicos e políticos para garantir um desenvolvimento sustentável, tais instrumentos em sua grande maioria são desprovidos de medidas sancionadoras àqueles que as descumprem.
Porém, uma visão mais otimista quanto a essa aplicação dessas normas ditas "frágeis", desprovidas de sanção, mas nem por isso ineficazes, pode levar a acreditar que uma mudança na forma de encarar os problemas ambientais possa ocorrer através desses debates acirrados entre meio ambiente e comércio internacional. A partir do momento em que a lógica expressa pelo princípio da precaução for compreendida, poderiam surgir condições para que, num futuro próximo, o mesmo deixasse de ser um princípio meramente de direito ambiental e passasse a ser empregado como princípio geral de direito. Desse momento em diante, as incertezas, em qualquer que fosse o ramo do direito, por exemplo, poderiam se valer da utilização desse princípio com o fito de afastar danos irreversíveis.
Todavia, para que sua compreensão seja alcançada, se faz necessário questionar certos elementos, a começar pelo próprio termo princípio. Sob a ótica do Direito, o mesmo não é preciso, e pode significar norma jurídica ou regra jurídica obrigatória. A incerteza quanto ao significado do termo aumenta ainda mais quando associada à palavra precaução, a qual, da mesma forma, não possui uma definição precisa. Outro ponto que precisa ser compreendido, pois pode ser considerado um entrave na sua aplicação, se refere à dificuldade em encontrar um nexo de causalidade entre o dano e sua causa, já que existe apenas uma presunção, muitas vezes fundada em indícios insuficientes. Devido a isso, sua normatividade é questionada, mesmo no direito ambiental, onde se consagrou mundialmente. Por isso, certos países, como Estados Unidos e Canadá, não reconhecem o princípio da precaução como norma cogente, mas como mero princípio proclamatório e sem caráter sancionador. Em contrapartida, há de se buscar compreendê-lo sob uma ótica mais ampla, abordando noções científicas, políticas e jurídicas. As especulações e estudos que podem surgir em função disso, levam a questionamentos sobre a natureza jurídica do princípio; se o mesmo seria um princípio moralizador, político, jurídico, um princípio geral de direito ou simplesmente uma expressão da Soft Law.
O que se percebe a priori, é que se o princípio da precaução passar a ser considerado como verdadeiro princípio geral de direito, várias implicações nas Relações Internacionais serão sentidas. A começar pela possibilidade de se contrapor a conceitos já amplamente sedimentados como o livre comércio. Afinal, o princípio da precaução proporciona uma reflexão sobre o peso dos interesses em jogo e a tomada de decisões complexas. Nesse tipo de situação, a adoção de um princípio pode ser mais feliz porque o legislador talvez tenha dificuldade ou incapacidade para regulamentar uma matéria em meio a regras fixas, em função da imprevisibilidade e da variedade das situações concretas. Assim, o princípio procede a uma derrogação do poder normativo para a administração pública e/ou para o juiz.
No âmbito do Mercosul, diferentemente do que acontece na União Européia, ainda não se pode afirmar qual a decisão a ser tomada por seus membros; ou seja, se haverá espaço para a adoção e aplicação do princípio da precaução, ou se o mesmo será afastado e prevalecerá apenas a intenção de integração econômica sem preocupações com a segurança sanitária e ambiental. Se a decisão for de incorporá-lo nas decisões do bloco, sob o ponto de vista jurídico não haverá óbice algum para utilizá-lo como fonte, pois tanto o Protocolo de Brasília (art. 19) como o Protocolo de Olivos (art. 34) prevêem a possibilidade de se buscar em outras fontes mecanismos para solucionar os litígios que porventura venham a surgir entre seus membros. Assim, a questão passará por uma reflexão acerca de qual interesse e qual vontade irá prevalecer; ou seja, se a decisão sobre aplicar ou não o princípio será política ou jurídica; econômica ou ambiental. O fundamental nessa possível aplicação do princípio da precaução no Mercosul é que os países também passem a adotá-lo em suas legislações nacionais, eis que pelas características deste bloco, diferentemente do que ocorre na União Européia, não existe um Direito Comunitário (supranacional) que vincule todos os estados na adoção de uma mesma prática em busca da proteção ambiental, por exemplo. Porém, independentemente de quem tome a posição primeiro, sejam os Estados-partes, isoladamente, ou o próprio Mercosul, inevitavelmente surgirão muitos outros conflitos, visto que o debate entre liberalismo comercial e o desenvolvimento sustentável não é algo simples e que possa se encerrar sem uma grande reflexão.