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A função sócio ambiental da propriedade na Constituição de 1988

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16/10/2004 às 00:00
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7 CRÍTICA AO TRATAMENTO DADO POR UMA PARTE DOS OPERADORES JURÍDICOS A ALGUMAS AÇÕES QUE QUESTIONAM A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE

Muitas são as ações que chegam ao Poder Judiciário em busca de solução para os "conflitos" entre proteção ambiental e direito de propriedade. Questionam, sobretudo, o dever de se cumprir - e os limites de - a função ambiental da propriedade e o direito de indenização pelo que se entende serem ingerências do poder público na esfera privada, em forma de limitações administrativas ou de desapropriações indiretas.

Ocorre que muitos operadores, principalmente os do Judiciário, estão despreparados para julgar pedidos de indenização por expropriação (a chamada desapropriação indireta) em matéria ambiental, embora grande parte dos membros do Ministério Público tenha incorporado a iniciativa que lhe é atribuída pelo art. 129, III da Constituição - segundo o qual é função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.

O avanço que existe entre promotores esbarra no entendimento retrógrado de uma parte dos juízes e dos advogados em relação ao ordenamento jurídico e no distanciamento e desinformação sobre a realidade das áreas sob litígio (preço, dimensão da área, localização, características do terreno, economicidade, etc.).

Além do manuseio inadequado do direito brasileiro, tais operadores jurídicos ainda não desenvolveram a necessária consciência ecológica para a ponderação sobre os maiores problemas sociais e econômicos do fim do século.

Neste sentido, a crítica de BIRNFELD41 citado por ROXANA BORGES:

[...] uma contestação que não pode deixar de ser feita no que tange à proliferância da legislação ambiental é a que diz respeito à sua escassa aplicação pelos operadores jurídicos em geral, a qual pode ser justificada em parte pela existência de um conjunto às vezes confuso de disposições, em parte pela existência de lacunas importantes no próprio conjunto normativo, mas principalmente e em grande parte pelo escasso grau de importância que os operadores jurídicos destinam geralmente questões atinentes à legislação ambiental, demonstrando um lamentável desconhecimento dos valores críticos que estão nela inseridos, quando não demonstram (o que é pior ainda), um pleno desconhecimento das próprias normas ambientais.

Esse desconhecimento das normas ambientais - e também constitucionais - e visível quando a processualização do conflito entre o interesse público e o interesse do proprietário se concentrava em tomo do art. 524 do antigo Código Civil: "Art. 524. A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua".

A atual redação e dada pelo art. 1.228 do atual Código Civil: O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha".

Muitos operadores, em destaque os do judiciário, apegavam-se a este dispositivo do Direito Privado, como se esse fosse o único a dispor sobre o regime jurídico da propriedade. Mas essa norma não existe isoladamente. Ela está inserida no ordenamento jurídico, de forma que sua interpretação deve ser feita a partir do texto constitucional.

Neste sentido é a crítica feita por SILVA43:

Os juristas brasileiros, privatistas especialmente, mas também publicistas, concebem o regime jurídico da propriedade privada como subordinado ao direito civil, considerado como direito real fundamental. Olvidam as regras de direito público, especialmente de direito constitucional, que igualmente disciplinam a propriedade.

A forma como o julgamento dos pedidos de desapropriação eram feitos demonstrava nada mais que o desconhecimento do ordenamento jurídico por parte de alguns juízes, para não falar em hipótese de "descaso para com o patrimônio público", usando as palavras de BENJAMIM44 citado por ROXANA BORGES.

Este autor denuncia que:

os degradadores descobriram que, em vez de procederem com atos frontais de desrespeito às normas ambientais existentes, lhes era mais fácil e lucrativo espoliar o meio ambiente simplesmente brandindo seu direito de propriedade, fazendo uso da técnica - no mais, absolutamente legítima - da desapropriação indireta.

O maior fator para a não aplicabilidade adequada das normas constitucionais e ambientais é o limitado entendimento por parte de seus executores acerca das mesmas. Em relação especificamente à função social/ambiental da propriedade como requisito para garantia do direito de propriedade e como função atribuída ao Estado e ao particular, o que se alega para justificar a não aplicação da norma constitucional é que não existe regulamentação que de o conceito de função ambiental da propriedade, mesmo frente ao art. 186 da CF. Ora, este artigo é claro quanto aos requisitos a serem atendidos pela propriedade rural e a legislação ambiental é específica quanto às obrigações do proprietário em relação aos elementos naturais e à forma como devem ser protegidos.

Neste sentido, em avaliação específica de legislação ambiental - referente principalmente à proteção das águas - nos casos do Tribunal da Água45, uma das conclusões a que se chegou foi: "a clara vigência da Constituição em todos os seus dispositivos, naquilo em que possam ser aplicados, ainda que inexista a legislação infraconstitucional correspondente".


8 A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE NO CÓDIGO CIVIL

Há mais de vinte e cinco anos em discussão, no Congresso Nacional o Projeto do novo Código Civil foi aprovado no dia 15 de agosto de 2001. Este projeto foi elaborado por uma comissão de juristas, coordenada pelo professor Miguel Reale; José Carlos Moreira Alves (Parte Geral), Agostinho Alvim (Direito das Obrigações), Sylvio Marcondes (Atividade Negocial), Ebert Chamoun (Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família) e Torquato Castro (Direito das Sucessões).

Segundo o Jurista, paraense, ZENO VELOSO46: "muitas dessas inovações já estão vigorando em nosso Direito, por força, sobretudo, das transformações e conquistas determinadas pela Constituição de 1988, especialmente [...] a função social da propriedade".

O novo Código Civil teve o mérito de antecipar algumas dessas mudanças e, agora, de ratificá-las e confirmá-las, para que não restassem dúvida, vacilações e interpretações reacionárias e passadistas.

As modificações propostas pela comissão que elaborou o Projeto de Código Civil, no que tange ao direito de propriedade, trazem a função ambiental como elemento marcante deste direito.

O § 1º do art. 1.229, que disciplina a propriedade conforme os avanços e necessidades sociais, prescreve:

§ 1º. O direito de propriedade deve ser exercitado cm consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

Além de inserir a função social da propriedade, traz a função ambiental explicitada através do desdobramento de vários de seus componentes, como a proteção à flora e à fauna, a preservação das belezas naturais, a manutenção do equilíbrio ecológico, a preservação do patrimônio histórico e artístico, prescrevendo, por fim, que o uso da propriedade não provoque a poluição do ar e das águas, submetendo a propriedade às determinações presentes em legislação ambiental.

Assim prescrita, a propriedade no Código Civil está mais em conformidade com a sociedade atual que a propriedade nos termos do Código Civil de 1916, inadequada mesmo para a época em que o Código em vigor foi publicado.

No entanto como foi demonstrado; os dispositivos (sobretudo o art. 1.228) do Código Civil não são empecilho para que se cumpra a função ambiental da propriedade nem garantia da manutenção da propriedade que não atende a sua função sócio ambiental.

Com o advento da Constituição Federal de 1988 e vasta legislação ambiental esparsa, afirmou-se a função ambiental como elemento interno da propriedade, o que reduziu o âmbito de incidência do Código Civil às relações civis decorrentes deste direito, não incidindo sobre seu regime jurídico, que passou a ser constitucional.

Para MATTOS NETO47:

Os princípios jurídicos cristalizam os valores sociais, conformando o quadro axiológico cultuado pela sociedade. Os princípios podem estar explícitos na Constituição ou convivem implicitamente no sistema constitucional democrático-social. Os princípios constitucionais informam e influenciam a elaboração das normas e servem de mediadores entre os valores sociais e as normas jurídicas. E o juiz funciona como administrador dos direitos naturais incorporados constitucionalmente na sociedade.

E ainda: "Na sociedade contemporânea, a finalidade natural, ‘sumo bem’ no dizer de Aristóteles, da propriedade imobiliária é sua finalidade social, expressa na função social".

O conteúdo social da propriedade vai além dos limites do Direito Civil. O direito de propriedade deve ser positivamente exercido, não podendo abster-se de utilizar o imóvel à finalidade adequada a natural a que se destina: a função social

Embora toda a doutrina civilista e publicista tenham caminhado nesta direção, os aplicadores do direito, principalmente os do Judiciário, não compartilharam deste entendimento, apegando-se fortemente aos dispositivos do Código Civil.

Segundo MATTOS NETO48:

A Constituição Federal de 88 foi sábia ao inserir, entre os direitos individuais e coletivos, o da propriedade, mas onerado com a função social (CF, art. 5º, XXIII). [ ] O direito de propriedade somente é eticamente válido se cumprida sua função social.

A propriedade rural exerce a sua função sócio ambiental se cumprir com o manejo e utilização adequados dos recursos da natureza.

Concebe MATTOS NETO49 analisando a função ética da propriedade no novo Código que: "O novo Código Civil traz inovações que denotam a preocupação do legislador civil em reconhecer os reclamos sociais da sociedade atual, aperfeiçoando deontologicamente a ética das transformações sociais".

O legislador colocou o conteúdo ético na norma ambiental ao exigir que o proprietário preserve, ou seja, não danifique, não ofenda, não espolie a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico, o patrimônio histórico e artístico e evite poluir a água e o ar.

Para MATTOS NETO50: "A propriedade privada deve estar em harmonia com os princípios sociais pertinentes aos interesses difusos, exigindo assim, não só o tradicional respeito aos interesses públicos".

Conforme MATTOS NETO51:

inovou a lei trazendo a desapropriação judicial (art. 1.228, § § 4º e 5º ). É uma desapropriação, sem interferência do Poder Executivo, promovida diretamente pelo juiz, em caso de interesse social revelado pela posse coletiva do imóvel. Aqui a lei prestigia o apossamento coletivo quando economicamente e socialmente útil.

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Nos dá notícia MATTOS NETO52 que hoje na Amazônia está sendo implantado um modelo alternativo de aquisição de propriedade imobiliária rural, diferente do que reza o Código Civil, pelo qual deve ser feita por escritura passada e registrada em cartório: "O novo modo de aquisição de propriedade imobiliária tem sido realizado, quantitativamente, através da invasão".

Por isso, muito oportuna - embora não tecnicamente necessária - a inserção no Código Civil da função ambiental da propriedade. Espera-se que, assim colocada, facilite o entendimento dos operadores no sentido de que a sociedade do século XXI não pode conviver com uma propriedade napoleônica, sob pena de a base natural desta mesma sociedade desaparecer.


9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A propriedade privada reconhecida na Constituição Federal vinculada à função social recebe um toque que a empurra para uma direção distinta daquela que se encontra no Código civil Brasileiro. O titular do domínio deverá agora utilizar o seu bem para uma finalidade produtiva.

Em consonância com isso, o novo Código Civil, aprovado no Congresso Nacional, acabou por contemplar a função sócio ambiental como elemento marcante do direito de propriedade, ao prescrever que tal direito "deve ser exercitado em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Neste sentido a propriedade sem deixar seu cunho privatista, se socializou, com isso significando eu deve oferecer à coletividade uma maior utilidade, dentro da concepção de que o social orienta o individual.

O direito de propriedade clássico atribuía ao titular a faculdade de agir ou não segundo as suas conveniências. A função social da propriedade amenizando esse poder impõe ao titular o uso do bem de produção para fins sociais.

Os dispositivos constitucionais que regulam o meio ambiente introduzem uma nova perspectiva e determinam o não uso econômico do bem quando em risco o direito ao meio ambiente equilibrado e a sadia qualidade de vida. A impossibilidade do uso intolerável do meio encarta-se no amplo e generoso conceito do direto à vida digna. Nesse quadro o meio ambiente equilibrado é um direito fundamental.

O não uso do bem em decorrência de motivos ambientais, não o transforma em propriedade improdutiva e por conseqüente suscetível de desapropriação. É relevante considerar que o fato do não uso em dadas circunstâncias liga-se à preservação da vida e funciona como garantia para gerações presentes e futuras. E de se destacar que o não uso do bem objeto de apropriação é a determinante constitucional apenas nos casos em que põe em risco o equilíbrio ambiental. A natureza passa a se comportar como sujeito exigindo direitos.

Se historicamente, conceito e estrutura do direito de aquisição, uso e gozo dos recursos naturais – objeto de estudo de direito de propriedade, tem sofrido modificações no sentido de ajustar-se às exigências de novas configurações econômicas, políticas e sócio ambientais, apresentando-se sob nova disciplina e limitações que por vezes, converge para os fins da política conservacionista, necessário que Estado e Sociedade Civil, consolidem a concepção da propriedade enquanto poder-dever, atendendo as modernas relações jurídicas.

O uso da propriedade pode e deve ser judicialmente controlado, impondo-se-lhe as restrições que forem necessárias no sentido de salvaguarda dos bens maiores da coletividade, de modo a conjurar, por comandos prontos e eficientes do Poder Judiciário, qualquer ameaça ou lesão à qualidade de vida. É com base nisso que os doutrinadores têm sustentado a possibilidade de imposição ao proprietário rural do dever de recomposição em áreas de preservação permanente e reserva legal, mesmo não tenha sido ele o responsável pelo desmatamento. Na certeza que tal obrigação possuí caráter – Propter rem -, isto é, uma obrigação que se prende ao titular de direito real, seja ele quem for, bastando para tanto sua simples condição de proprietário ou possuidor. Com efeito, não se pode falar, na espécie, em qualquer direito na exploração dessas áreas, pois, com a Constituição de 1988, só fica reconhecido o direito de propriedade quando cumprida a função sócio ambiental, como seu pressuposto elemento integrante, sob pena de impedimento do livre exercício ou até de perda desse direito.

A função sócio ambiental da propriedade é cumprida quando a propriedade atende ao requisito de preservação do meio ambiente. Se a função social significa o exercício do direito em benefício de outrem, se visa comprometer a propriedade com as complexas relações sociais e com o progresso humano, isto se efetiva com muito mais razão quando o exercício da propriedade atende á preservação do meio ambiente, que é bem de uso comum do povo, garantido às presentes e futuras gerações.

Em relação a doutrina da função social da propriedade da terra, uma das motivadoras do Estatuto da Terra, observamos que teve inspiração, na concepção tomista (doutrina de são Tomás de Aquino), de visões democrática, visando o bem comum, sem sacrifício dos direitos fundamentais do homem.

Embora ainda não seja este o entendimento da ideologia dominante, o direito de propriedade, após o advento da Constituição Federal de 1988, que, além de trazer dispositivos expressos sobre a função ambiental da propriedade, fundamenta a legislação ambiental infraconstitucional, passa a se configurar um direito-dever ou uma propriedade-função, cujo regime jurídico extrapola a disposição civilista sobre o tema.

Tal posicionamento dominante, em desacordo com a teorização apresentada, é, em parte, fruto do manuseio inadequado do ordenamento jurídico brasileiro, que desconsidera as normas constitucionais, ao lado do apego da maioria dos juristas, principalmente dos que compõem o Poder Judiciário, a concepções de direito impróprias para o atendimento das necessidades da sociedade contemporânea, como a necessidade de manutenção de um meio ambiente equilibrado. De outro lado está grande parte da sociedade, ainda alheia às modificações nos direitos individuais que a época faz necessário reconhecer.

Enquanto esta atitude frente às normas constitucionais e ambientais não mudarem, a manutenção de um "meio ambiente ecologicamente equilibrado [...] essencial à sadia qualidade de vida", conforme art. 225 da CF, estará cada vez mais longe, e o processo de degradação ambiental será cada vez mais irreversível.

A legislação ambiental traz instrumentos suficientes para um começo de política no sentido da proteção do meio ambiente. Com a sua implementação, a propriedade não apenas cumpriria sua função ambiental, mas ela mesma, sendo desta forma utilizada, configurar-se-ia como mais um instrumento voltado para a necessária manutenção do equilíbrio ecológico e do desenvolvimento sustentável.

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Sobre o autor
Rui Afonso Maciel Decastro

Advogado, servidor do Ministério Público do estado do Pará,especialista em direito ambiental e políticas públicas pela universidade federal do Pará – UFPa, Biblioteconomista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DECASTRO, Rui Afonso Maciel. A função sócio ambiental da propriedade na Constituição de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 466, 16 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5765. Acesso em: 25 abr. 2024.

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