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O constitucionalismo inglês

Resumo:


  • A Constituição inglesa tem suas bases fundamentadas em três pilares: leis escritas produzidas pelo parlamento, decisões judiciais (Common Law e Cases Law) e Convenções constitucionais.

  • Apesar de não possuir um poder constituinte originário, a Constituição inglesa é essencialmente escrita, composta por diversas leis interpretadas e reinterpretadas ao longo do tempo, além de Convenções constitucionais não escritas.

  • A tradição jurídica inglesa recorre aos precedentes como fonte do direito constitucional, destacando a riqueza dos precedentes em considerar toda a lógica argumentativa desenvolvida pelas partes e os fundamentos das decisões.

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A Constituição inglesa (ou o constitucionalismo inglês para alguns) começa a nascer simbolicamente com a Magna Carta de 1215. Três são as instituições protagonistas da histórica constitucional inglesa: o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns. O predomínio de cada um destes protagonistas marca períodos da história política e constitucional do Reino. No período que vai de 1215 até o século XVII, predomina a autoridade do Rei, marcando um período monárquico. Entre o século XVII e meados do século XIX prevalece a Câmara dos Lordes, marcando o período aristocrático, e, desde de final do século XIX até os dias de hoje ocorre o predomínio da Câmara dos Comuns, que seria então o período democrático. Alguns autores vêm no século XVIII um período misto, onde então poderia ser visto uma união ideal das três formas clássicas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia.

Muitos equívocos foram cometidos a respeito da Constituição inglesa. Dizia-se que a Inglaterra (leia-se Reino Unido) não tinha Constituição ou então que não tinha Constituição escrita, duas incorreções. Alguns começaram a separar o inseparável, a constituição moderna de constitucionalismo, afirmando que na Inglaterra e Israel, entre outros havia constitucionalismo sem Constituição (bobagem). O equivoco estava em reduzir a Constituição a sua forma, não compreendendo que Constituição pode até ser forma e pode até ser matéria específica, historicamente localizada, mas seu único elemento permanente é a sua hermenêutica, a Constituição sempre será interpretação, compreensão, leitura histórica e geograficamente localizadas. Aliás constituição é vida e vida é interpretação. Tudo é interpretação e a interpretação é história, cultura, vida, e portanto complexidade.

Para fins de referencial histórico a maior parte dos autores mencionam a Magna Carta de 1215 como o marco inicial de formação da Constituição Inglesa. A Magna Carta não é a primeira Constituição mas nela podemos encontrar os elementos essenciais do constitucionalismo moderno: limitação do poder do Estado e declaração de direitos da pessoa.

A Constituição inglesa a partir de então começa a se construir sobre um tripé cuja a Magna Carta constitui apenas o início. Por Constituição na Inglaterra compreende-se três bases:

a) as leis escritas produzidas pelo parlamento que podemos chamar de Statute Law. As leis constitucionais produzidas pelo parlamento são Constituição não porque são elaboradas por um poder constituinte originário ou derivado, ou por observarem procedimentos legislativos especiais, mas são Constituição, por tratarem de matéria constitucional, ou seja, limitação do poder do estado com distribuição de competência e organização da sua estrutura e território e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa;

b) as decisões judiciais de dois tipos: o Common Law e os Cases Law. Por Common Law compreendemos as decisões judiciais (escritas) que incorporam costumes vigentes à época. Por Cases Law temos as decisões judiciais que se traduzem por interpretações e reinterpretações, leituras e releituras das normas produzidas pelo parlamento;

c) e a terceira base, as Convenções constitucionais, que são acordos políticos efetuados no parlamento, não escritos, de conteúdo constitucional (entenda-se por conteúdo constitucional aqui as normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competência e limitação do poder do Estado e as declarações e posteriormente garantias de direitos fundamentais.

Como se vê, a Constituição inglesa existe, e é essencialmente escrita pois dois dos três pilares de sua estrutura são escritos. Importante ainda ressaltar que as Convenções constitucionais não escritas, são obrigatórias, e por força da tradição, são de difícil alteração. Uma Convenção constitucional pode se transformar em lei do Parlamento, e neste caso o seu cumprimento ou não pode ser objeto de decisão judicial. Entretanto, enquanto Convenção constitucional, esta é de competência do parlamento, e o fato de uma ruptura com uma Convenção não autoriza o Judiciário a decidir sobre o fato.

Em outras palavras devemos entender o seguinte: uma Convenção constitucional é um acordo parlamentar não escrito, alguns durando séculos, que tem enorme força, sendo de difícil alteração. Entretanto, para romper com uma Convenção, basta não mais aplicá-la. Este fato para nossa cultura pode parecer fácil, mas, na cultura inglesa, extremamente tradicional, e difícil acontecer. Uma vez rompida com o acordo, esta rompido, e este rompimento não pode ser objeto de análise do Judiciário.

O que nos interessa no constitucionalismo inglês é a sua contribuição para o constitucionalismo norte-americano, que por esta tradição chegou até nós. A sua contribuição principal neste caso não esta na força do parlamento, mas na força do Juiz. O Judiciário constrói a norma justa aplicável ao caso concreto, se esta norma construída pelo Judiciário cuida de matéria constitucional, ela é Constituição. O que acabamos de dizer vem ser teorizado com maior consistência no século XX, entretanto é praticado a séculos.

Esta construção e reconstrução da compreensão da Constituição inserida na realidade econômica, social, cultural e política, é fato, que passa a ser melhor teorizado na segunda metade do século XX. A Constituição inglesa é de extrema complexidade, pois não foi construída sobre uma única base, um texto constitucional produto de um poder constituinte originário, sistematizado, codificado, dividido em títulos, capítulos, seções, artigos, incisos e alíneas, mas é formado por diversas leis que são interpretadas, reinterpretadas e formalmente modificadas, isto tudo somado a Convenções não escrita acordadas no parlamento, o que torna a compreensão da Constituição Inglesa extremamente difícil para nós.

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Não há na história constitucional inglesa um poder constituinte originário, eleito para elaborar a Constituição, e que se dissolve depois desta tarefa, deixando um poder constituinte derivado de reforma atuante a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais. Podemos dizer que não há na Inglaterra um poder constituinte originário nem derivado, mas um poder constituinte permanente que atua no legislativo, judiciário e na cultura política.

Outro aspecto importante da tradição jurídica inglesa, que decorre de maneira lógica de tudo o que foi dito, é o recurso ao precedente, como fonte do direito constitucional. Os precedentes judiciais são Constituição, na forma de decisões que incorporam tradições e costumes, e nas interpretações e reinterpretações da lei produzida pelo parlamento. O precedente não se equivale ao que chamamos entre nós de súmula. A sumula é uma redução absurda do caso, onde uma ementa resume toda a sua complexidade. O pior é determinar que esta sumula dos Tribunais Superiores ou do Supremo Tribunal Federal, deve vincular as decisões de todos os órgãos do Poder Judiciário. Para entendermos a absurda simplificação de uma sumula, e a desumanização do processo no Judiciário quando impomos sua vinculação, devemos compreender o significado de um precedente. A riqueza do precedente, e a sua contribuição para as compreensões da hermenêutica constitucional contemporânea, esta no fato de que o precedente não se resume a uma sumula (uma ementa) mas leva em consideração toda a lógica argumentativa desenvolvida pelas partes no decorrer do processo assim como o fundamento das decisões, incluindo os argumentos de votos vencidos. Neste sistema de precedentes as partes devem demonstrar que, levando em consideração a situação histórica do caso em julgamento, com todo o seu pano de fundo social, cultural, econômico, pessoal entre outros aspectos, um precedente se aplica ou não, qual precedente se aplica, ou ainda se é necessário criar um novo precedente. Neste sentido que podemos dizer que um precedente não se revoga mas é superado pela história, cultura e valores vigentes nas sociedades, sempre em transformação.

Partindo desta experiência podemos resistir a estupidez das simplificações impostas, utilizando a mesma lógica para rechaçar a aplicação de uma sumula. Para evitar a desumanização do processo é necessário demonstrá-la, ou seja, é necessário demonstrar em cada caso a sua natureza única, a sua especificidade e a razão por que a sumula não se aplica.

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Isto posto, passamos a análise do constitucionalismo norte-americano, modelo este que contribuiu diretamente para nossa história constitucional. O constitucionalismo norte americano se aproxima do nosso uma vez que, a partir da experiência inglesa e da teoria francesa, os norte-americanos elaboraram um texto, produto de um poder constituinte originário, rígido, sintético, e essencialmente principiológico, o que permite a força do Judiciário na construção e reconstrução de sua interpretação.

Embora não tenhamos uma constituição com um texto sintético e principiológico, como a Constituição norte-americana, a influência do constitucionalismo norte-americano, a partir da nossa Constituição de 1891, ocorreu principalmente com a criação do controle difuso de constitucionalidade. A introdução desta forma de controle no Brasil permite que recebamos importante contribuição teórica e prática, que ocorre com a introdução da idéia de construção de um sentido mais amplo e democrático do conceito de jurisdição constitucional. Esta contribuição é hoje importante para o direito constitucional em todo o mundo democrático.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O constitucionalismo inglês. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 452, 2 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5768. Acesso em: 22 dez. 2024.

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