Sumário: 1. Introdução – 2. Os dispositivos legais – 3. A efetividade do princípio jurídico da função social da propriedade – 3.1 O alcance do signo "função social da empresa" – 4. Conclusão.
1. Introdução
Imagine-se um cenário hipotético em que determinada sociedade empresária implementasse projetos de cunho social, estranhos aos seus fins institucionais, visando realizar o bem estar da sociedade, ou seja, a justiça social. À primeira vista, por certo, se concluiria que tais atos seriam gestos de mera liberalidade do empresário, ou seja, apenas atos decorrentes da solidariedade humana.
Este cenário hipotético se enquadraria perfeitamente no início do século XX, quando imperava o liberalismo econômico regido pelo quase intangível direito da propriedade garantido pelo ordenamento jurídico vigente à época, e, também, capitaneado pelo Código Civil de 1916, e pelo Código Comercial de 1850.
Todavia, o cenário não é mais o mesmo embora muitos não tenham, ainda, se apercebido. É que, após o advento da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, foi definitivamente institucionalizado o instituto da função social da propriedade, cujos efeitos de sua consagração redefiniu o conteúdo do direito da propriedade, também, no âmbito das sociedades empresárias, para lhe revestir de um papel social.
Este fenônemo social é conhecido pela denominação responsabilidade social das empresas.
O propósito do presente trabalho é tentar desmistificar o paradigma de que os atos de responsabilidade social realizados pelas empresas seriam meros gestos de contribuição voluntária provenientes de sua liberalidade, quando, ao contrário, à luz do que preceitua a Constituição e as normas infralegais é um dever legal das mesmas.
2. Os dispositivos legais
As regras acerca da função social da propriedade estão previstas na Constituição Federal de 1988, quando prescreve que a propriedade atenderá a sua função social. (cf. art. 5º, XXIII). De outro lado, nas suas disposições sobre os princípios gerais da atividade econômica, a Constituição estabelece que a ordem econômica brasileira deverá observar o princípio da função social da propriedade. (cf. art. 170, III).
O Código Civil vigente, por sua vez, ratificando o texto constitucional, consagrou, no âmbito das relações jurídicas por ele regidas, o princípio da função social da propriedade, conforme as disposições dos artigos. 421 e 1228, § 1º.
Portanto, percebemos a partir da simples leitura dos referidos dispositivos legais que o instituto da função social da propriedade existe como norma jurídica no nosso ordenamento, na qualidade de princípio jurídico.
É inequívoco, também, que tal instituto atinge as sociedades empresárias, uma vez que estas são manifestações decorrentes da propriedade dos bens de produção dos empresários.
Ressalte-se que o legislador está caminhando no sentido de tornar expresso o princípio da função social no âmbito das empresas, a teor do texto aprovado, recentemente, pela Câmara dos Deputados do projeto de lei de falências (cf.art.45 do Projeto de Lei 4.376-b/19993) e do projeto de lei nº 1305/2003, que regulamenta a Responsabilidade Social das Sociedades Empresárias, ainda tramitando na Câmara dos Deputados e cujo autor é o Deputado Bispo Rodrigues.
3. A efetividade do princípio jurídico da função social da propriedade
Devemos identificar e delimitar o alcance do instituto da função social da propriedade e o seu reflexo na responsabilidade social das empresas. A tarefa é árdua, sobretudo, diante da escassez de trabalhos jurídicos discorrendo sobre o tema, razão pela qual, devemos, construir um raciocínio à luz da teoria dos princípios jurídicos.
Colhe-se na doutrina do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello a seguinte lição sobre os princípios jurídicos:
"mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico." (1)
O princípio fundamenta todas as demais normas de um sistema jurídico, todavia, não prescreve uma conduta específica. Logo, por lhe carecer elementos exaustivos de descrição, os princípios não estabelecem uma determinada sanção pelo seu descumprimento.
A despeito de estarem despidos de detalhes descritivos de condutas, bem como, de uma determinada sanção, os princípios orientam e estabelecem os fins que deverão ser perseguidos pelo legislador e pelos receptores finais das normas, quais sejam, os cidadãos em convívio. [2]
Ademais, tais princípios, que, na sua maioria estão consagrados no art. 5º da Constituição Federal, têm operatividade imediata e independem de regulamentação posterior. [3]
Roque Carrazza valendo-se de lição do Saudoso Professor Geraldo Ataliba discorre de forma magistral sobre a importância e a aplicabilidade dos princípios jurídicos:
"eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas conseqüências." [4]
Desta forma, o princípio da função social da propriedade deve ser respeitado e perseguido pelas empresas, seja porque suas condutas estariam na conformidade da Constituição, seja porque os receptores da norma não estarão sujeitos a eventuais sanções decorrentes da violação das normas infraconstitucionais que venham a regular tal matéria.
3.1 O alcance do signo "função social da empresa"
E o que seria a função social da empresa e a sua responsabilidade social? As empresas que pagam em dia os seus empregados, e que recolhem devidamente os seus tributos já atendem à sua função social na sociedade?
Embora tenhamos visto que os princípios jurídicos têm aplicação imediata, a noção de "função social da empresa" não é unívoco, assim, como, também, não existe ainda lei que a regulamente.
A sociedade, outrossim, não tem a definição deste conceito. Empresários nacionais e estrangeiros se reuniram num evento internacional denominado III Simpósio de Responsabilidade Social Empresarial nas Américas, que aconteceu na Cidade do Rio de Janeiro, no dia 11 de maio de 2004, para discutir sobre a definição do que é responsabilidade social corporativa, uma vez que umas enfocam apenas questão social e outras priorizam a esfera ambiental. [5]
O entendimento doutrinário converge, todavia, no sentido de que a função social das empresas não se esgota apenas na realização dos fins previstos nos seus respectivos atos constitutivos, sobretudo, porque estes foram elaborados sob a égide do antigo ordenamento jurídico.
De outro lado, devemos observar que o conteúdo do instituto da função social da empresa é fluido e não admite uma interpretação única, porque que as diferenças entre os empresários devem ser observadas pelo operador do direito, consoante o princípio da proporcionalidade.
4. Conclusão.
Devemos interpretar o referido dispositivo à luz da Constituição e de seus preceitos fundamentais previstos nos artigos 1º e 3º, de modo que os empresários promovam os seguintes fins, uma vez que são seus deveres: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza, entre outros.
Pode-se observar que algumas empresas [6] vêm se engajando com o dever de responsabilidade social visando, sobretudo, a sua perpetuidade no mercado, razão pela qual, realizam e fomentam atividades estranhas aos seus objetivos sociais primários, nos seguintes segmentos:
a)preservação do meio ambiente;
b) projetos de inclusão social;
c) promoção da cultura, em todas as suas manifestações;
d)aporte de capital nas entidades do Terceiro Setor.
Tais atos, todavia, não são provenientes exclusivamente de mera liberalidade dos empresários. Estes atos visam também a perpetuidade de suas empresas, porque que os consumidores vem cada vez mais prestigiando as empresas socialmente responsáveis.
Assim, a sobrevivência das empresas estará cada vez mais ligada à sua capacidade de criar vínculos permanentes de identidade com os consumidores e, por essa via, criar as condições de sustentabilidade para as suas marcas. A responsabilidade social terá um lugar central na realização desse potencial de construção. [7]
Verifica-se, por fim, que a exeqüibilidade do princípio resta, momentaneamente, prejudicada enquanto não se estabelecer satisfatoriamente pelas fontes do direito (lei, costumes, doutrina e jurisprudência) o seu efetivo sentido.
Bibliografia:
AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios - da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III: arts. 270 a 331. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
MEDEIROS, João Bosco. Redação científica: a prática de fichamentos, resumos, resenhas. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2000.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.
RESENDE, Tomás de Aquino. Roteiro do terceiro setor. 2. ed. Belo Horizonte: Publicare, 2000.
SZAZI, Eduardo. Terceiro setor: regulação no Brasil. 3. ed. São Paulo: Peirópolis, 2003.
Notas
1 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 807.
2 O Direito disciplina a conduta em interferência subjetiva vale dizer, o agir do homem que, de algum modo, interfere no agir de outro homem (cf. CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III: arts. 270 a 331. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.)
3 José Afonso da Silva ensina: a norma que contém o princípio da função social da propriedade incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como o são todos os princípios constitucionais. (cf. AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000)
4 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
5 Cf. Notícia veiculada na Gazeta Mercantil, pág. A-11, do dia 12.05.2004.
6 Cf. Odebrecht informa, Edição Especial, Ano XXX, Agosto de 2003.
7 Cf. in www.ethos.org.br Responsabilidade Social: a empresa além do produto -. Helio Mattar