O último exame vestibular realizado na Universidade de Brasília, nos dias 26 e 27 de junho do corrente ano, adotou, pela primeira vez naquela Instituição, uma política de ação afirmativa com a definição da cota de 20% para a população afrodescendente. A temática tem sido objeto de intensos debates acadêmicos tanto relativos a questões jurídicas (como, por exemplo, a ofensa – ou a efetiva realização – do princípio constitucional da igualdade por estas políticas) quanto à própria eficácia da proposta.
Neste artigo, serão apresentados e discutidos os principais argumentos que têm sido elencados tanto para defender esta política específica de ação afirmativa quanto para combatê-la. Com este objetivo, o artigo será dividido em duas partes. Na primeira, serão abordadas as linhas gerais da forma pela qual a discussão relativa às ações afirmativas se desenvolveu no direito norte-americano; e, na segunda, analisar-se-á a consistência dos argumentos favoráveis à implementação das cotas em contraste com os argumentos contrários que normalmente são apresentados.
1. Antecedentes da questão nos Estados Unidos da América
A escravidão na histórica norte-americana, assim como na brasileira, foi instituída a serviço da colonização. Apesar de os países europeus não aceitarem a escravidão, o tráfico de escravos negros foi praticado pelas colônias norte-americanas a partir do século XVII e levou a um intenso debate acerca da "instituição jurídica da escravidão". Os movimentos abolicionistas prevaleceram nas colônias do Norte, que, gradualmente, até o início do século XIX, abandonaram a escravidão, ao passo que, no Sul, prevaleceu o movimento escravagista, liderado principalmente pelos latifundiários que se valiam do trabalho escravo nas fazendas de monoculturas.
É importante lembrar alguns antecedentes à Guerra de Secessão, que pôs em confronto as forças militares do Norte e do Sul dos Estados Unidos. Em 1820, o presidente Monroe assinou o Acordo de Mississipi, que proibia a escravidão acima do paralelo 36º40´, e em 1850 foi firmado o Compromisso Clay, que concedia liberdade para que cada Estado da Federação decidisse o tipo de mão de obra adotada. Em 1860, Abraham Lincoln foi eleito e, apesar da questão escravista ter sido apenas secundária em sua agenda política, os escravistas o viam como um revolucionário acerca da questão. Em 20 de dezembro daquele ano, sentindo-se ameaçados pelo abolicionismo, os Estados da Carolina do Sul, Mississipi, Flórida, Alabama, Geórgia, Louisiana e Texas reuniram-se no Congresso de Montgomery e, por unanimidade de 169 votos, fundaram os Estados Confederados da América. Em fevereiro e abril de 1861 a Confederação atacou o Forte Sumter, em Charleston, deflagrando o início do conflito.
Com a derrota sulista em 1865, foi implementada a 13ª Emenda à Constituição norte-americana, que declarou inconstitucional qualquer forma de escravidão ou servidão involuntária. A 14ª Emenda tirou dos secessionistas muitos cargos federais e a 15ª Emenda proibiu que os Estados negassem o direito de voto por motivo de raça, cor ou condição prévia de servidão ou escravidão.
Para os negros que viviam nos Estados sulistas, os anos que se seguiram à Guerra Civil foram tempos de libertação política e social, ao passo que, para os brancos daquela região, aqueles anos tivessem sido lembrados como um período de dominação estrangeira e anarquia. No entanto, o controle dos Estados da Confederação pelos Estados do Norte não durou muito: bastou que as forças de ocupação se retirarem para que os brancos sulistas, novamente, excluíssem os negros da participação política.
A legislação dos Estados sulistas, a partir daí, ao invés de apoiar a escravidão, passou a apoiar práticas de segregação nos serviços públicos, tais como o uso de assentos separados para brancos e para negros nos ônibus públicos ou a segregação nas escolas (separando-se em escolas para negros e escolas para brancos) ou mesmo em restaurantes e clubes sociais.
Movimentos de direito civil passaram a questionar a segregação na esfera constitucional, buscando demonstrar a violação destas leis à 14ª Emenda, que garantia igual proteção das leis a todos, independentemente de raça, e que vedava a privação da liberdade, da vida e da propriedade sem que se respeitasse o devido processo legal. No famoso caso Plessy vs. Ferguson em 1896, a Suprema Corte norte-americana declarou que as práticas segregacionistas nos serviços públicos não eram inconstitucionais, desde que os serviços prestados a negros e a brancos tivessem a mesma qualidade. Instituiu-se, assim, a doutrina conhecida como "Separados, mas iguais". A questão somente tomou novos rumos em 1954, quando a Suprema Corte, a partir do leading vote de Earl Warren, declarou inconstitucional a doutrina "separados, mas iguais". Em seu voto, o Chief Justice declarou:
"A segregação de crianças em escolas públicas baseada apenas na raça, mesmo que as instalações físicas e outros fatores sejam iguais, privam as crianças do grupo minoritário de oportunidades de igual educação? Acreditamos que sim (...) no campo da educação pública a doutrina "separados, mas iguais" não tem mais lugar. Escolas separadas são intrinsecamente desiguais. Além disso, defendemos que os litigantes e outros que estejam em situação semelhante (. ..) estão, pelas razões de segregação alegadas, [privados da igual proteção das leis e da 14ª Emenda]" (tradução livre) [1]
Na verdade, esta decisão representou antes uma solução conciliatória que uma decisão definitiva acerca da questão. A doutrina "separados, mas iguais" persistiu ainda por alguns anos, já que o voto não determinou a abolição imediata da segregação, mas apenas a sua gradual supressão [2]. Apenas uma década após a decisão de Earl Warren no caso Brown vs Board of Education, após os assassinatos do presidente John F. Kennedy (1963) e de Martin Luther King Jr (1968), o congresso norte-americano passou a considerar importante a questão, tendo votado várias leis (statutes) acerca dos direitos civis.
Cumpre agora discutir, ao menos em linhas gerais, algumas das doutrinas que foram desenvolvidas pelos tribunais norte-americanos com o objetivo de promover a integração dos negros com os brancos. Um primeiro ponto a ser considerado é que, com o intuito de determinar a conformidade da legislação aos princípios delineados pela 14ª Emenda, as cortes terminaram por decidir que há uma violação à Emenda quando uma lei discrimina determinados grupos de pessoas (unequal protection) ou restringe direitos sem seguir o procedimento correto (illegal process).
Se uma lei norte-americana parte de uma distinção baseada na raça de um grupo que foi discriminado historicamente, a corte a analisa sob o prisma da "strict scrutiny", o teste mais rigoroso de constitucionalidade. Explica-se: para ser declarada constitucional, a discriminação legal deve atender a um imperioso interesse público e ser precisamente dimensionada de modo a atingir essa finalidade.
Todavia, muitas vezes uma lei afeta grupos étnicos sem que se refira explicitamente a ele. Neste caso, diz-se que a lei é "racialmente neutra" e sua análise judicial deve ser efetuada a partir de dois prismas: (1) se a intenção do legislador era discriminadora, não obstante o texto legal ter sido "neutro"; e (2) se, não obstante a neutralidade do texto, a lei exerce um impacto direto e negativo em um grupo historicamente discriminado.
Agora já é possível discutir as ações afirmativas tal qual foram delineadas nos Estados Unidos da América. Um dos fundamentos dessa política é a idéia de que as vítimas históricas da discriminação merecem algo mais que a mera igualdade formal de oportunidades para que as conseqüências da discriminação sofrida no passado possam ser revertidas no futuro. Para ser julgada constitucional frente à 14ª Emenda, uma medida de ação afirmativa deve partir do interesse público de reverter os efeitos da discriminação sofrida no passado.
No caso Regents of the University of Califórnia vs. Bakke, a Suprema Corte estabeleceu a distinção entre cotas (quotes) e alvos (target). Vejamos um exemplo trazido por Cooter que ilustra essa distinção: se uma faculdade de medicina pretende que 20 por cento de seus estudantes sejam afro-descendentes, esse é o "alvo" que se quer alcançar. Todavia, se é escolhida uma "cota" de 20% para alcançar este objetivo, a cota é inconstitucional, vez que esse meio não leva, necessariamente, à reversão da discriminação [3].
Vejamos o que se passou naquele leading case de 1978. No caso Bakke, um engenheiro de 37 anos resolveu se inscrever para o curso de medicina em diversas universidades, não tendo sido admitido em nenhuma delas. Uma das universidades que rejeitaram o pedido de admissão de Allan Bakke foi a Universidade da Califórnia, na qual havia um programa de ação afirmativa que destinava 16 em 100 vagas para grupos minoritários, ao passo que as restantes 84 vagas eram disputadas por todos os candidatos, estivessem ou não no grupo discriminado.
Bakke propôs ação judicial contra a UCLA para questionar o programa de ação afirmativa. Na primeira instância, entendeu-se que, embora o programa efetivamente violasse a 14ª Emenda Constitucional, não poderia dar provimento ao pedido de Bakke, tendo em vista não ter sido demonstrado que, caso não houvesse o programa de ação afirmativa, ele teria sido aprovado. Inconformado, Bakke recorreu para a Suprema Corte do Estado da Califórnia, que reformou a decisão para deferir o pedido de admissão do postulante àquela Universidade. A Universidade da Califórnia recorreu para a Suprema Corte dos Estados Unidos, que decidiu pela inconstitucionalidade daquele programa de ação afirmativa e pela admissão de Bakke ao curso de medicina, vedando o uso de ações afirmativas que fixassem uma cota para os candidatos das minorias. Em outras palavras, a decisão autorizou a adoção de programas de ação afirmativa, desde que a raça não fosse o único critério de seleção.
Recentemente, em junho de 2003, a Suprema Corte norte-americana julgou duas ações propostas contra a Universidade de Michigan em razão de programas de ação afirmativa adotados por aquela instituição. Seguindo o voto de Sandra O´Connor, a Corte decidiu que "para cultivar um grupo de líderes com legitimidade aos olhos da cidadania é necessário que o caminho à liderança seja visivelmente aberto aos indivíduos talentosos e qualificados, de todas as raças e etnias". Ou seja, apenas reforçou o princípio da igual oportunidade segundo os méritos individuais. Em outros trechos do voto, nota-se, em linhas gerais, a manutenção da linha decisória do caso Bakke, segundo o qual a política de admissão de candidatos única e exclusivamente em virtude de sua raça é discriminatória: "A política de atribuir pontos a cada candidato de minoria por causa de sua raça não satisfaz o interesse de uma diversidade educacional". Cumpre ainda lembrar o voto do juiz Clarence Thomas, único membro negro da Suprema Corte norte-americana (que votou pela inconstitucionalidade dos programas de ação afirmativa da Universidade de Michigan): "O que eu peço para o negro não é benevolência, nem pena ou simpatia, mas simplesmente justiça. Acredito que os negros podem subir na vida americana sem ajuda dos administradores de universidades".
Essa decisão permitiu que raça e etnia sejam utilizadas como critérios para seleção de estudantes, desde que não sejam os únicos critérios utilizados e que não seja atribuída pontuação a candidatos exclusivamente em função da raça.
2. Análise dos argumentos relativos à adoção de cotas raciais pelas Universidades brasileiras.
O objetivo desta segunda parte do artigo, como já apontado, é o de analisar a consistência lógica dos argumentos mais utilizados para defender a política de adoção de cotas para estudantes negros pelas Universidades brasileiras. Essa perspectiva de análise se justifica por partir de dois pressupostos: (1) o de que, numa democracia, não basta que um argumento seja defendido pela maioria: ele deve partir de premissas compatíveis com os princípios adotados publicamente na Constituição brasileira; e (2) as conclusões a que se chegam numa discussão devem manter uma relação pertinente com as premissas de que partem. Por que partir destes pressupostos? Porque, sem o pressuposto (1), estaríamos sempre admitindo a possibilidade de justificação de práticas discriminatórias e anti-democráticas, como o nazismo (afinal, se a maioria é nazista e adotarmos somente o princípio da maioria, o nazismo está justificado); e sem o pressuposto (2) estaríamos inviabilizando a possibilidade de qualquer controle sobre a argumentação e, portanto, o próprio debate seria inviabilizado.
Novamente, bastaria que a maioria aceitasse uma conclusão, mesmo que esta não estivesse justificada pela premissa de que parte. Só que esta também não parece uma solução democrática para um debate público compatível com os princípios adotados na Constituição brasileira: note-se, por exemplo, que as exigências de fundamentação das decisões judiciais e da motivação dos atos administrativos, princípios basilares de nosso ordenamento constitucional, partem justamente dessa consideração. Não basta que uma decisão ou um ato seja praticado em acordo com a Constituição: ele deve estar adequadamente fundamentado ou motivado.
Esclarecidos estes pontos, passemos às considerações dos argumentos normalmente apresentados para defender as políticas de cotas para a população negra nos instrumentos de seleção de candidatos pelas Universidades brasileiras.
Um primeiro argumento apresentado na defesa da política de cotas para os afrodescendentes é o de que, tendo em vista o aspecto histórico brasileiro da exclusão de negros das Universidades, inviabiliza-se a consideração do problema à do princípio da igualdade liberal (isto é, o de que todos são iguais e devem ser avaliados pelo seu mérito pessoal). Este argumento supõe que a posição meritocrata é inconsistente com a idéia de igualdade constitucional e parte da desproporção entre o número de negros no Brasil (45% da população, aproximadamente) e a distribuição de renda comparativa entre as populações negra e branca para justificar essa idéia. Nessa linha de argumentação são normalmente apresentados dados que apontam a diferença entre a renda média de negros e brancos ou mesmo o fato de que aproximadamente 15% dos estudantes universitários brasileiros são negros (quando compõem 45% da população brasileira) e dados que denotam que, estando numa mesma posição hierárquica dentro de uma mesma empresa, negros e brancos recebem salários diferentes. A partir dessas considerações, defende-se a idéia de que o sistema de cotas diminuiria a discriminação dos negros na sociedade brasileira e refrearia os índices mencionados.
O argumento é falacioso. Em primeiro lugar, é de se ver que a idéia de que a política de cotas diminuirá a discriminação porque levará a aproximar a composição racial da universidade à da proporção da sociedade não é consistente. Não há como se questionar o fato de que as cotas levarão a aproximar, numericamente, a proporção de negros universitários e a proporção de negros na sociedade brasileira. Todavia, o problema não é numérico, e o argumento supõe que a discriminação o é, ou seja, supõe que, se os negros receberem exatamente os mesmos salários dos brancos, fizerem parte da Universidade em igual proporção numérica à composição da sociedade e tiverem participação em cada seguimento da sociedade em relação à sua proporção na sociedade, ter-se-á resolvido o problema da discriminação. Todavia, não é esse o caso: está se reduzindo o problema da discriminação a um número e, com efeito, a discriminação é mais que isso: é um problema de tratamento, de sentimento de desigualdade que uma pessoa tem em relação à outra em razão de características de classe que a pessoa discriminada tem.
Argumentativamente, este raciocínio parte de uma falácia ignoratio elenchi, ou seja, é um argumento inválido que tem a seguinte estrutura: A quer provar B, mas prova C e dá B como provado. No caso em análise, a pessoa favorável à instituição de cotas quer provar que as cotas levarão à diminuição da discriminação na Universidade, mas prova apenas que as cotas aumentarão a proporção de negros na Universidade e dão como provado o que se pretendia provar, ou seja, que as cotas diminuirão efetivamente o problema da discriminação.
De outro lado, esse argumento supõe, normalmente, que o vestibular não é cego às cores: seletivamente, o vestibular escolheria brancos e discriminaria negros e, por isso, ofenderia o princípio da igualdade. Não é este o caso. O argumento confunde as causas de o vestibular selecionar mais estudantes brancos do que negros: se mais brancos passam no vestibular, não é porque este sistema exclui os negros em razão deles serem negros, mas porque os negros, em geral, fazem a prova e obtém resultados inferiores aos do estudante branco.
O sistema, contudo, é isento: a busca pela inclusão de negros no sistema universitário deve passar pela busca dos motivos pelos quais o negro não passa no vestibular (ou em outro sistema de seleção que porventura seja desenvolvido). Em outras palavras, deve-se identificar os motivos pelos quais os estudantes negros fazem uma prova de vestibular pior que os brancos, bem como as razões de 15% dos aprovados serem negros (ou seja, por que, apesar da alegada "seletividade" do vestibular, há negros que ingressam nas instituições de ensino superior).
Ao atribuir a culpa ao exame, mascaram-se os reais motivos pelos quais o negro é excluído da Universidade, dentre os quais incluo os seguintes: a falta de um ensino público de qualidade comparável ao sistema de ensino particular (estou apontando a deficiência: de nenhum modo defendo aqui um sistema de cotas para alunos de ensino público! Seria também mascarar este problema); e o fato de que boa parte dos alunos negros faz parte de uma parcela da população que é mais pobre e que, tendo que trabalhar, não podem se dedicar tanto aos estudos. Neste ponto, seria interessante saber qual o percentual de estudantes negros em escolas particulares com índices de aprovação nos vestibulares e qual a relação desse percentual com o percentual de negros que tiveram acesso ao ensino superior (em outras palavras, saber se os negros oriundos de instituições de segundo grau particulares são, também, "discriminados"). Entretanto, dados dessa natureza, por motivos incompreensíveis, nunca estão presentes nas discussões daqueles que defendem as cotas.
A solução das cotas nem de longe questiona estes fatores. É necessário tomar muito cuidado para evitar soluções que mascaram as causas dos problemas, como sói acontecer no Brasil, em que soluções temporárias se eternizam. Paulo Ghiraldelli Jr, em artigo sobre o tema, aponta as conseqüências de adotar uma solução sem a adequada reflexão:
"Essa é a situação do debate: a filosofia social progressista norte-americana, o debate metafísico atual e, enfim, a filosofia da educação mais avançada, ainda não encontraram pontos comuns, maduros, para que a "ação afirmativa" possa gerar o "sistema de cotas" sem ferir nossos princípios liberais, de modo a não criarmos, mais tarde, mais problemas do que soluções, produzindo novamente um estado corporativista que repetiria, de modo esquisito, a Carta Del Lavoro de Mussolini. Pois sabemos, quando uma sociedade começa com "cotas", ela pode não saber parar!" [4]
Um outro argumento muito presente nessa discussão parte da consideração de que o direito norte-americano assumiu o programa de cotas como uma solução eficaz para solucionar o problema da discriminação nos Estados Unidos da América. Normalmente, é apresentado o dado de que, naquele país a comunidade negra compõe aproximadamente 12,2% da população total do país e cerca de 11% dos universitários, o que reforçaria este ponto de vista. Apesar de ser um argumento bastante atraente para as pessoas favoráveis à adoção do regime de cotas, supõe uma premissa absolutamente falsa: a de que as universidades norte-americanas adotam o sistema de cotas (e, novamente, reduz-se o problema da discriminação a uma questão meramente numérica, o que, como já visto, é um passo retórico perigoso). Como já visto, a Suprema Corte decidiu por diversas vezes que, embora as ações afirmativas sejam constitucionais, desde que efetivamente levem ao combate da discriminação, o sistema de cotas não o é, pois viola o princípio do mérito e da igualdade de oportunidades, tão caro àquele ordenamento jurídico (e, por que não dizer, ao nosso? Normalmente, esquecem-se de que o princípio do mérito está também alçado ao patamar constitucional no que se refere à educação, no art. 208, V da Carta Magna).
De outro lado, a analogia com o sistema norte-americano não parece tão imediata. Com efeito, os negros brasileiros não se libertaram da escravidão em uma traumática guerra civil; não tivemos sistemas de segregação racial que vedasse, como nos Estados Unidos, o acesso de negros a certos espaços públicos pelo simples fato deles serem negros; Zumbi dos Palmares não é Martin Luther King Jr. Nenhum presidente brasileiro teve que interceder junto à polícia para evitar que brancos que se relacionassem sexualmente com negras sofressem punições físicas por questões morais, como Kennedy fez com relação ao FBI. Não tivemos a Ku Klux KlanAqui, não há uma discussão histórica sobre o problema do negro, como houve lá.
Certamente é alentador que a discussão esteja começando por aqui, mas, como já afirmado, por lá houve problemas que não há no Brasil (e a recíproca é verdadeira). As cotas com certeza são muito eficazes para solucionar o problema da segregação, já que abrem portas que eram fechadas por questões raciais. Todavia, não resolvem o problema da discriminação, que se refere a uma situação subjetiva, uma diferença de tratamento pessoal pelo fato de se pertencer a determinada categoria (no caso, ser negro). No debate brasileiro, ainda é interessante notar que a discussão parte dos argumentos tais como apresentados nas décadas de sessenta e setenta nos Estados Unidos, mas não leva em consideração os desenvolvimentos posteriores, como, por exemplo, a aludida diferença entre cota e alvo.
Outro argumento apresentado em favor das cotas é o da dívida histórica que o país tem com relação à população negra, descendente dos escravos trazidos pelos portugueses. Sustenta-se, então, que as cotas são um instrumento necessário para pagar essa dívida, que persiste com a exclusão social do negro. Se o argumento pretende extrair as cotas como a solução necessária para proporcionar a inclusão social do negro, é falacioso, porque exclui as outras alternativas possíveis, apresentando a cota como solução única. Infelizmente, é como o argumento normalmente é apresentado. Faz parte do próprio senso comum que é necessário fazer algo para incluir socialmente o negro: todavia, daí não se segue (non sequitur) que a única solução para este problema é a cota. Há outras ações possíveis que são desconsideradas. Aliás, do argumento apresentado não se segue nem mesmo que a cota seja uma solução, ainda que ao lado de outras. Neste ponto, aqueles que defendem as cotas deveriam, ao menos apresentar algum esforço para demonstrar que a cota seria uma das soluções possíveis para o problema da discriminação. Mas, ao não apresentarem os motivos pelos quais os negros têm uma representatividade defasada na universidade, apenas conseguem mostrar que as cotas equilibrariam a representatividade, mas disso não se segue que haverá menos discriminação.
Dessa alegada dívida histórica, é comum, entre os defensores das cotas, surgir outro argumento, o de que esse tipo de ação afirmativa geraria o reconhecimento de uma especificidade sócio-cultural inerente aos negros, mas não indicam qual é essa especificidade que gera uma diferença que seria ignorada no processo de discriminação da sociedade brasileira. Ora, uma vez demonstrada essa especificidade, obviamente há de se corrigir a aplicação do princípio geral de igualdade, no sentido de que se reconhece que pessoas diferentes devem ser tratadas diferentemente de forma a diminuir a desigualdade porventura derivada do não reconhecimento da diferença. Porém, como já dito, não se mostra qual é essa especificidade. Também não se procura demonstrar como, uma vez admitido esse traço distintivo, o sistema de cotas geraria o reconhecimento da diferença de modo que não seja entendido como uma mero benefício. Note-se, ainda, que essa especificidade, paraservir de mote para as políticas de cotas, deve derivar de alguma característica intrínseca aos negros, de modo a justificar que a exclusão de outros grupos marginalizados da mesma prerrogativa.
Há, ainda, de se levar em consideração outro dado estatístico que não é trabalhado pelos defensores das cotas: o fato de que, mesmo os negros com nível superior têm uma média salarial inferior à dos brancos na mesma situação. Assim, a discriminação não deriva do fato dos negros não terem concluído um curso superior. Como, então, as cotas ajudariam a resolver o problema? Essa pergunta deveria estar devidamente respondida quando se quer defender as cotas como política plausível de ação afirmativa.
Alguns argumentos falaciosos também são apresentados contra aqueles que defendem posturas contrárias às cotas. Um argumento que tem sido bastante apontado em discussões públicas é o seguinte: como algumas vezes quem defende uma postura contrária às cotas é branco, desqualifica-se a crítica porque ela parte de uma pessoa branca. Outras vezes, se o argumento parte de um negro, diz-se que ele é contrário às cotas porque tem mentalidade de uma pessoa branca. No primeiro caso, temos um argumento ad hominem, em que, no lugar de discutir o argumento, discute-se a qualidade do emissor a partir de características pessoais (é como dizer que Carlos Alberto Parreira não poderia ser técnico de futebol porque nunca foi jogador ou que Lula não poderia ser presidente da República porque foi torneiro mecânico). Nas duas hipóteses, temos a falácia de uso denominada invulnerabilidade: o argumento torna-se invulnerável, pois não pode sofrer crítica alguma. No primeiro caso, porque o emissor é branco; no segundo, porque, embora sendo negro, tem mentalidade de uma pessoa da raça branca. Torna-se impossível criticar o mérito do argumento.
Há outros argumentos contrários às cotas para afrodescendentes que normalmente são desqualificados a priori pelos defensores desta modalidade de ação afirmativa. Um desses argumentos é o seguinte: "como ninguém consegue discernir quem é branco e quem é negro no Brasil, as cotas poderão beneficiar brancos". Há uma falácia também neste argumento (a falácia da pendente escorregadia), que é a seguinte: ora, como há casos intermediários em que não se pode delimitar com precisão quem é branco e quem é negro, então a distinção se torna ilegítima. Com efeito, há tais casos limítrofes, mas também há casos em que a distinção é clara. Todavia, embora falacioso nos moldes em que apresentado, o argumento apresenta um importante aspecto: as cotas podem beneficiar pessoas que não poderiam se beneficiar por serem brancos. De outro lado, a forma pela qual se contra-argumenta também é falaciosa. Diz-se: "os brancos sempre souberam quem é negro e quem não é na hora de discriminá-lo. Como agora dizem que a distinção é fraca e que não há, com certeza, como distinguir brancos e negros?". É um argumento que busca uma conexão entre o agir e o falar do emissor (no caso, os brancos), ou seja, uma compatibilidade entre o que se fala e o que se faz. É um argumento moral: supõe que as pessoas devam falar tal qual agem. Embora se deva concordar com isso de modo geral (é o que se espera dos políticos, por sinal), é de se ver que, no caso, supõe uma equivalência de situações que não há: quando os brancos racistas discriminam um negro, há uma situação privada; quando a distinção é feita em uma política pública como as cotas, a situação é pública. O argumento supõe uma equivalência equivocada das duas situações, e por isso se torna falacioso.
3. Conclusões
O propósito deste artigo foi debater, a partir de um ponto de vista lógico-argumentativo, as principais alegações que têm sido apresentadas nas revistas e nos debates públicos a favor e contra as cotas. O que se pretendeu foi apontar as incoerências argumentativas que têm aparecido no debate acerca das cotas para populações afrodescendentes no acesso ao sistema universitário. É importante deixar claro que, em nenhum momento se defende que não exista discriminação racial no Brasil nem que medidas de ação afirmativa não sejam necessárias. O que se pretendeu deixar claro é que, nos moldes como o debate tem sido colocado em favor das cotas, ele é falacioso.
De qualquer modo, como conclusões, é possível formular as seguintes: se se pretende aplicar um sistema próximo do aplicado nos Estados Unidos, com certeza não se deve proceder a uma aplicação pura e simples de cotas no vestibular. É necessário lembrar a distinção entre cotas (quotes) e alvos (target) no sistema norte-americano: é sempre permitido adotar programas de ação afirmativa que visem alcançar determinada percentagem de alunos de um grupo social, desde que a medida ataque o próprio problema da discriminação. Além disso, não se pode aplicar ao problema da exclusão social do negro um modelo norte-americano sem remeter às peculiaridades históricas brasileiras que nos diferenciam dos Estados Unidos da América, sob pena de se criar mais problemas do que soluções.
O intuito do artigo é levar à reflexão sobre o tema e mostrar algumas das incoerências argumentativas. O pressuposto teórico dessa perspectiva, como já salientado, é o de que os debates democráticos, principalmente acerca de questões que afetam interesses públicos tão importantes, devem manter um nível argumentativo tal que exponha da melhor forma possível os argumentos e seus pressupostos.
NOTAS
1 No original : "Does segregation of children in public schools solely on the basis of race, even though the physical facilities and other "tangible" factors may me equal, deprive the children of the minority group of equal educational opportunities? We believe that it does... in the field of public education the doctrine of "separate but equal" has no place. Separate educational facilities are inherently unequal. Therefore, we hold that the plaintiffs and other similarly situated... are, by reason of the segregation complained of, deprived of [equal protection of the laws under the Fourteenth Amendment]". In: COOTER, Robert D. The Strategic Constitution. Princeton: Princeton University Press, 2000. p. 336.
2 DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 37.
3 COOTER, Op. Cit., p. 338.
4 GHIRALDELLI JR., Paulo. Filosofia e movimento negro – o caso da ação afirmativa. Disponível em < http://www.ghiraldelli.pro.br/filosofia_e_movimento_negro.htm> Acesso em 09 jul 2004.