A responsabilidade civil do Estado pela morte de detento em estabelecimentos prisionais brasileiros

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A vida e a integridade física dos detentos que cumprem pena nos estabelecimentos prisionais brasileiros é responsabilidade objetiva do Estado. Esse cenário se torna patente quando a morte ocorre por falha na fiscalização e, sobretudo, no dever de cuidado e zelo, proporcionando um cenário facilitador, inclusive, do cometimento de suicídio. Saiba um pouco mais sobre isso.

RESUMO:O presente trabalho visa a analisar a responsabilidade civil do Estado frente a morte de detentos em estabelecimentos prisionais brasileiros, seja por homicídio, seja por suicídio. Trata-se de estudo realizado através de pesquisa bibliográfica e documental, tendo sido analisadas diversas doutrinas, artigo e jurisprudência dos tribunais pátrios. A análise realizada permitiu concluir que a doutrina e jurisprudência nacionais têm se firmado no sentido de estabelecer uma responsabilidade objetiva nos casos que constituem objeto de investigação deste trabalho, modificando o posicionamento prevalente em casos de omissão estatal, uma vez que, neste caso, a regra é a responsabilidade subjetiva. Em suma, a responsabilização do Estado diante de morte de preso em estabelecimento prisional, em regra, independe de comprovação de culpa ou dolo do ente estatal, frente aos danos gerados pela omissão. 

Palavras-chave:. Omissão estatal. Homicídio. Suicídio. Detento. Responsabilidade civil objetiva.

ABSTRACT:This study aims to examine the liability of the State front the death of detainees in Brazilian prisons, either by murder or by suicide. This is study through bibliographical and documentary research and analyzed different doctrines and jurisprudence of Article patriotic courts. The analysis showed that the teaching and national law have been executed to establish an objective liability in cases that are the object of investigation of this work by modifying the prevailing position in cases of state failure, since in this case the rule it is subjective responsibility. In short, the accountability of the state before death stuck in prison, as a rule, independent of proof of fault or willful misconduct of the state entity, compared to the damage caused by the omission.

Keywords: State failure. Murder. Suicide. Detainee. Objective liability. 


INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo através da Constituição da República Federativa de 1988 (CRFB/88), adotou a responsabilidade civil objetiva (teoria do risco administrativo) pelos danos causados pelos agentes das pessoas jurídicas de direito público e privado, que prestem serviço público, conforme estabelecido no artigo 37, §6º, da referida Carta Maior. Esses agentes, em regra, devem estar atuando na condição de agentes dessas pessoas jurídicas citadas.

Ademais, fica assegurado à Administração Pública o direito de regresso contra o agente que atuou com dolo ou culpa e causou dano ao erário. Esta ação de regresso pode ser intentada a qualquer tempo, não sendo atingida pela prescrição, conforme determinado no artigo 37, §5º, da CFRB/88.

Embora não seja expresso no texto constitucional, conforme Bortoleto (2014), o dever de indenizar o administrado por parte da Administração Pública pode se dar em virtude de danos causados tanto por atos comissivos, quanto pela omissão, bem como por atos lícitos e ilícitos. Em especial, nos casos de atos comissivos, a responsabilidade civil da Administração Pública é objetiva, não cabendo a discussão de culpa ou dolo do Estado. Por outro viés, em casos de omissão estatal, a regra é a responsabilidade subjetiva, em que se deve comprovar culpa ou dolo do Estado para estabelecer o dever de ressarcimento.

Diante dessa situação, o objetivo deste trabalho é analisar a responsabilidade do Estado diante de morte de detentos em estabelecimentos penais brasileiros, seja por homicídio, seja por suicídio, buscando estabelecer a necessidade de se comprovar dolo ou culpa do Estado diante do dano gerado.

Para tanto, o presente trabalho considerou a metodologia de pesquisa sobre dois aspectos: método de abordagem e técnica de pesquisa. O primeiro diz respeito ao método hipotético-dedutivo, em que se partiu da análise da legislação brasileira, sobretudo da CRFB/88, para chegar a análise do caso específico que constitui objeto deste trabalho. Já as técnicas de pesquisa utilizadas foram as bibliográfica e documental, em que se procedeu à leitura de doutrina e jurisprudência.

Por fim, este trabalho divide-se em três capítulos e as considerações finais. O primeiro capítulo trata-se da introdução; o segundo aborda a evolução histórica das teorias que buscaram explicar a responsabilidade civil estatal, bem como a teoria adotada pelo atual ordenamento jurídico brasileiro; o terceiro trata-se da discussão acerca da responsabilidade civil do Estado na morte de detento; e, por último, as considerações finais.


1. TEORIAS SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

1.1.  Evolução histórica da responsabilidade civil do Estado

A responsabilidade civil do Estado pelos danos causados por atos de seus agentes variou ao longo da história, sendo que a primeira teoria que buscou determinar tal responsabilidade foi a da irresponsabilidade do Estado pelos danos causados por seus agentes, também chamada de teoria regaliana ou regalista, conforme Bortoleto (2014).

No primeiro momento da história, no direito comparado, aplicava-se para o Estado a Teoria da Irresponsabilidade do Estado. Nesse momento, o dirigente era quem ditava a verdade, que dizia o certo e o errado, portanto, jamais ele iria admitir uma falha, agindo segundo a máxima americana “the king do not wrong” (o rei nunca erra). (MARINELA, 2015, p. 955).

Portanto, neste primeiro momento da história, na época dos Estados absolutistas, conforme Bortoleto (2014), não se poderia falar em responsabilidade do Estado pelos danos causados por seus atos, sendo que seria uma afronta à soberania estatal cogitar a possibilidade de que o Estado praticasse um ato e gerasse um dano, pois o governo estava baseado na máxima the king do not wrong (o rei nunca erra).

Após esse primeiro período, já no século XIX, a irresponsabilidade estatal foi superada e passou-se a considerar a possibilidade de responsabilizar o Estado por certos atos, desde que preenchidos os respectivos requisitos. Surgiram, a partir de então, as chamadas teorias civilistas, que se dividiam em duas, conforme Bortoleto (2014): teoria dos atos de império e atos de gestão e teoria da culpa civil.

A primeira das teorias considerava que o Estado praticava duas espécies de atos, quais sejam, os atos de império e atos de gestão. Naquele caso, o Estado agiria utilizando-se do seu poder de império e se um dano adviesse desses atos, não haveria dever de ressarcimento. Por outro viés, quando se falava em atos de gestão, o Estado atuaria no mesmo patamar dos particulares, sem fazer uso de seu poder de império e, por isso, responderia caso de danos.

A segunda das teorias civilistas era a teoria da culpa civil. Neste caso, extinguiu-se a divisão entre atos de império e gestão e passou-se a discutir a culpa do funcionário do Estado que causou o dano. Nesta situação, devia-se verificar se o funcionário agiu com dolo ou culpa, para obrigar o Estado a indenizar, ficando clara a adoção da responsabilidade subjetiva.

Esse segundo período de evolução da responsabilidade civil do Estado, em que houve destaque para as teorias civilistas, foi superado no final do século XIX, em especial pelo Caso Agnès Blanco, de 1873, julgado pelo Conselho de Estado da França.

Nesse caso, a menina Agnès Blanco, ao atravessar uma rua na cidade de Bordeaux, foi atropelada por um vagonete da Cia. Nacional de Manufatura do Fumo, tendo seu pai ingressado com ação civil de indenização sustentando que o Estado é responsável pelos danos causados a terceiros, em razão da conduta de seus agentes. Houve conflito de competência entre a jurisdição administrativa e a comum, e o Tribunal de conflitos decidiu que cabia ao tribunal administrativo, porque se cuidava de apreciar a responsabilidade decorrente do funcionamento do serviço público e que essa responsabilidade não poderia ser regida pelo direito civil e sim por regras especiais (BORTOLETO, 2014, p. 641).

Após esse julgamento, o paradigma para análise da responsabilidade civil do Estado se modificou, permitindo o surgimento das chamadas teorias publicistas, dentre as quais a teoria da culpa do serviço (faute du service) e a teoria do risco, que se subdivide em risco administrativo e risco integral.

A primeira teoria tratada é chamada de teoria da culpa do serviço, culpa anônima ou culpa administrativa e estabelece que, quando houver um dano decorrente da culpa do serviço, haverá o dever do Estado de indenizar o lesado. Diante desta situação, não se discute culpa ou dolo do agente público, mas sim uma falta ou culpa do próprio serviço, que se caracteriza no momento em que o tal serviço inexiste quando deveria existir, funciona de forma inadequada ou atrasada, conforme afirma Bortoleto (2014). Conforme Filho (2008), cabia ao lesado demonstrar a culpa do serviço e, por isso, ainda prevalecia a responsabilidade subjetiva.

Entretanto, em momento posterior, a responsabilidade civil do Estado diante de um dano ao administrado deixou de necessitar da análise de culpa ou dolo e passou a considerar  uma responsabilidade objetiva. A teoria que consolidou tal responsabilidade foi a teoria do risco, que se divide em risco administrativo e risco integral. “Pela teoria do risco, a responsabilização do Estado se dá de maneira objetiva, sendo necessária, apenas, a demonstração do dano e que este fora causado por agente público, ou seja, basta a ação estatal, o dano e o nexo de causalidade” (BORTOLETO, 2014, p. 642).

A teoria do risco administrativo diferencia-se da teoria do risco integral no momento em que possibilita que a responsabilidade civil do Estado seja excluída por determinadas situações, quais sejam, o caso fortuito ou força maior, culpa exclusiva da vítima e culpa exclusiva de terceiro.

No Brasil, desde a Constituição Federal de 1946, adota-se a teoria objetiva, pautada, sobretudo, na teoria do risco administrativo.

“No Brasil, a teoria objetiva foi reconhecida desde a Constituição Federal de 1946 e é adotada até os dias de hoje. A responsabilidade objetiva já era reconhecida como regra no sistema brasileiro, tornando-se constitucional com a Constituição de 1946, em seu artigo 194. Daí por diante, a regra não foi mais excluída, levando os textos seguintes a serem aperfeiçoados. A Constituição de 1967 dispunha sobre o assunto no art. 105; em 1969 a disposição estava no art. 107, com texto bem equivalente ao atual art. 37, §6º, da CF/88” (MARINELA, 2015, p. 956).

Conforme Bortoleto (2014), apesar de ordenamento jurídico brasileiro adotar tal teoria como regra, doutrina minoritária admite, em algumas situações, há a  presença da teoria do risco integral, como, por exemplo, em casos de danos causados por acidente nuclear, estabelecido no artigo 21, XXIII, “d”, da CRFB, e os danos decorrentes de atos terroristas, atos de guerra ou de eventos correlatos, contra aeronaves de empresas brasileiras, conforme a Lei n. 10.309, de 2001.

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Ademais, além da aplicação da teoria do risco, que se orienta por uma responsabilidade objetiva, Marinela (2015) reconhece que doutrina e jurisprudência têm admitido a presença da responsabilidade subjetiva decorrentes de atos omissivos, em que aplicaria a teoria da culpa do serviço, culpa anônima ou culpa administrativa.

1.2. Teoria adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro

O artigo 37,§6º, da CRFB/88, consagra em seu texto a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos que forem ocasionados por atos de seus agentes, “[...] pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável no caso de dolo ou culpa” (BRASIL, 1988).

Conforme demonstrado, a responsabilidade civil do Estado em relação à vítima é objetiva, mas a responsabilidade do agente frente ao Estado é subjetiva, somente tendo o dever de indenizar quando agir com dolo e culpa.

É preciso destacar que o dever de indenizar a vítima é das pessoas jurídicas de direito público ou direito privado, que prestem serviço público, e não dos seus agentes. No primeiro caso, incluem-se a União, os Estados, Municípios, Distrito Federal (DF), autarquias, fundações públicas de direito público e os consórcios públicos com personalidade de direito público, conforme afirma Bortoleto (2014).

Já no segundo caso, estão presentes as pessoas jurídicas de direito privado, como as fundações públicas com regime de direito privado, empresa pública, sociedade de economia mista, consórcio público com personalidade de direito privado e demais sociedades empresárias que prestem serviço público. Cabe ressaltar que, no caso das pessoas jurídicas de direito privado, a responsabilidade somente será objetiva se prestarem serviço público.

Bortoleto (2014) destaca divergência existente com relação à responsabilidade civil das prestadoras de serviço público diante de danos causados a usuários e não usuários. Essa controvérsia, entretanto, foi resolvida no âmbito do STF, no RE 591.874/RS, no qual ficou estabelecida a necessidade de indenização por danos causados a usuários e não usuários, sendo reconhecida a “[...] responsabilidade de uma empresa de transporte coletivo em indenizar ciclista morto em acidente com um de seus ônibus já que não houve a exclusão do nexo de causalidade em razão de culpa exclusiva da vítima ou força maior” (BORTOLETO, 2014, p.644).

EMENTA: CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO PRESTADORAS DE SERVIÇO PÚBLICO. CONCESSIONÁRIO OU PERMISSIONÁRIO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM RELAÇÃO A TERCEIROS NÃO-USUÁRIOS DO SERVIÇO. RECURSO DESPROVIDO. I - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal. II - A inequívoca presença do nexo de causalidade entre o ato administrativo e o dano causado ao terceiro não-usuário do serviço público, é condição suficiente para estabelecer a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica de direito privado. III - Recurso extraordinário desprovido (RE 591874, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 26/08/2009, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-237 DIVULG 17-12-2009 PUBLIC 18-12-2009 EMENT VOL-02387-10 PP-01820 RTJ VOL-00222-01 PP-00500).

Deve-se reconhecer que o Estado não se isenta de responder pelos danos causados pela pessoa jurídica de direito privado que é concessionária ou permissionária do serviço público. Conforme afirma Bortoleto (2014), quando a administração permite ou concede que outra pessoa preste o serviço público, não há transferência de titularidade do serviço, restando uma responsabilidade subsidiária do Estado em que caso de danos. Nessa circunstância, caso a prestadora de serviço público não consiga arcar com a indenização dos danos causados, deve o Estado responder, conforme Marinela (2015).

Portanto, o Estado responde pelos danos causados por outra pessoa jurídica em segundo lugar, conforme a seguinte ordem de preferência: “primeiro paga a pessoa jurídica que presta os serviços e, caso essa não tenha condições financeiras, o Estado é chamado à responsabilidade”. Nessa hipótese, o Estado terá que indenizar a vítima por um ato de um agente de outra pessoa jurídica, agente que não faz parte de seus quadros, o que se denomina responsabilidade subsidiária” (MARINELA, 2015, p. 960).

Ademais, o Estado deverá indenizar tanto diante de danos causados por atos lícitos, quanto ilícitos, devendo-se apenas verificar se da conduta do agente público decorreu um dano e se existe nexo de causalidade entre aquela e este. Assim como no caso de atos ilícitos, nos atos lícitos podem existir atos jurídicos ou materiais que causem danos. Bortoleto (2014) coloca como exemplo de ato jurídico, que decorre de comportamento lícito, mas gera dano, a determinação de fechamento de ruas no centro de uma cidade, o que ocasiona danos para o comércio legal, bem como aos donos de estacionamentos que cobram pela guarda de veículos.

Nesse mesmo sentido, atos materiais também podem causar danos como na situação em que “[...] o nivelamento de rua, por motivos técnicos, fazendo com que algumas casas fiquem em nível mais elevado ou rebaixado em relação à rua, causando desvalorização do imóvel” (BORTOLETO, 2015, p. 644). Por fim, de outro lado, tem atos jurídicos e materiais decorrentes de comportamento ilícito que geram danos, como, por exemplo, no caso de apreensões ilegais e espancamento de preso por agente público.

Com relação à ação do agente que gera o dano, é dito no §6º, do artigo 37, da CRFB/88, que o agente deverá estar atuando na qualidade de agente da pessoa jurídica em questão. Entretanto, conforme afirma Bortoleto (2014), ainda que o agente não esteja no estrito cumprimento de sua função, se utilizar equipamento específico desta, poderá ser caracterizada a responsabilidade da pessoa jurídica pela qual tal agente atua. Neste sentido, o RE 213.525, em que o STF reconheceu a responsabilidade do Estado por ato ilícito perpetrado por policial, que se encontrava de folga, utilizando arma da corporação militar.

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO. ATO OMISSIVO. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA. AGENTE PÚBLICO FORA DE SERVIÇO. CRIME PRATICADO COM ARMA DA CORPORAÇÃO. ART. 37, § 6º, DA CF/88. 1. Ocorrência de relação causal entre a omissão, consubstanciada no dever de vigilância do patrimônio público ao se permitir a saída de policial em dia de folga, portando o revólver da corporação, e o ato ilícito praticado por este servidor. 2. Responsabilidade extracontratual do Estado caracterizada. 3. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. 4. Agravo regimental improvido.(RE 213525 AgR, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 09/12/2008, DJe-025 DIVULG 05-02-2009 PUBLIC 06-02-2009 EMENT VOL-02347-05 PP-00947 RTJ VOL-00209-02 PP-00855).

Ademais, é preciso destacar que a teoria do risco administrativo, que se orienta por uma responsabilidade objetiva, admite excludentes desta responsabilidade. Conforme afirma Bortoleto (2014), a CRFB/88 dispensou o lesado de demonstrar a culpa ou dolo do agente público que provocou o dano. Entretanto, nada impede que a Administração Pública prove que o dano somente ocorreu por força maior, caso fortuito, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, excluindo o nexo de causalidade entre o ato do agente e o dano, descaracterizando a responsabilidade.

No caso de força maior e caso fortuito, há divergência doutrinária com relação ao conceito de cada um, conforme afirma Bortoleto (2014), o que não interfere, entretanto, no resultado que ambos produzem, pois estes são fatos imprevisíveis com efeitos idênticos. O próprio STF já se posicionou no sentido de considerá-los excludentes de responsabilidade, independente de diferenciação entre eles.

E M E N T A: INDENIZAÇÃO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO - PRESSUPOSTOS PRIMÁRIOS DE DETERMINAÇÃO DESSA RESPONSABILIDADE CIVIL - DANO CAUSADO A ALUNO POR OUTRO ALUNO IGUALMENTE MATRICULADO NA REDE PÚBLICA DE ENSINO - PERDA DO GLOBO OCULAR DIREITO - FATO OCORRIDO NO RECINTO DE ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL - CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO MUNICÍPIO - INDENIZAÇÃO PATRIMONIAL DEVIDA - RE NÃO CONHECIDO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO - PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. - A teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros desde a Carta Política de 1946, confere fundamento doutrinário à responsabilidade civil objetiva do Poder Público pelos danos a que os agentes públicos houverem dado causa, por ação ou por omissão. Essa concepção teórica, que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público, faz emergir, da mera ocorrência de ato lesivo causado à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público. - Os elementos que compõem a estrutura e delineiam o perfil da responsabilidade civil objetiva do Poder Público compreendem (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o eventus damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva, imputável a agente do Poder Público, que tenha, nessa condição funcional, incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 - RTJ 71/99 - RTJ 91/377 - RTJ 99/1155 - RTJ 131/417). - O princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite o abrandamento e, até mesmo, a exclusão da própria responsabilidade civil do Estado, nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias - como o caso fortuito e a força maior - ou evidenciadoras de ocorrência de culpa atribuível à própria vítima (RDA 137/233 - RTJ 55/50). RESPONSABILIDADE CIVIL DO PODER PÚBLICO POR DANOS CAUSADOS A ALUNOS NO RECINTO DE ESTABELECIMENTO OFICIAL DE ENSINO. - O Poder Público, ao receber o estudante em qualquer dos estabelecimentos da rede oficial de ensino, assume o grave compromisso de velar pela preservação de sua integridade física, devendo empregar todos os meios necessários ao integral desempenho desse encargo jurídico, sob pena de incidir em responsabilidade civil pelos eventos lesivos ocasionados ao aluno. - A obrigação governamental de preservar a intangibilidade física dos alunos, enquanto estes se encontrarem no recinto do estabelecimento escolar, constitui encargo indissociável do dever que incumbe ao Estado de dispensar proteção efetiva a todos os estudantes que se acharem sob a guarda imediata do Poder Público nos estabelecimentos oficiais de ensino. Descumprida essa obrigação, e vulnerada a integridade corporal do aluno, emerge a responsabilidade civil do Poder Público pelos danos causados a quem, no momento do fato lesivo, se achava sob a guarda, vigilância e proteção das autoridades e dos funcionários escolares, ressalvadas as situações que descaracterizam o nexo de causalidade material entre o evento danoso e a atividade estatal imputável aos agentes públicos. (RE 109615, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Primeira Turma, julgado em 28/05/1996, DJ 02-08-1996 PP-25785 EMENT VOL-01835-01 PP-00081)

Com relação à culpa exclusiva da vítima ou de terceiro, a responsabilidade civil do Estado é afastada, uma vez que o ato que ocasionou o dano partiu exclusivamente da vítima e não de agente do Estado. Na primeira situação, Bortoleto (2014) exemplifica apontando o caso em que uma pessoa se atira na frente de ônibus ou veículo oficial e, no segundo caso, com a situação de dano causado por multidão.

Além da responsabilidade civil do Estado por atos comissivos, a Administração Pública também responderá por omissões que ocasionem danos. Entretanto, no caso de atos comissivos, a responsabilidade será objetiva e, no caso de omissões a responsabilidade será subjetiva. Conforme Bortoleto (2014), o Estado deverá ser responsabilizado quando devia ter agido e não agiu.

Haverá o reconhecimento da responsabilidade subjetiva do Estado por culpa anônima, em razão da faute du service, isto é, da culpa do serviço. É considerada de cunho subjetivo, pois deve ser demonstrada a culpa da Administração (não do agente) e se verifica a culpa no serviço quando o serviço não existe (e deveria), funciona inadequadamente ou funciona atrasado (BORTOLETO, 2014, p. 646)

Conforme Marinela (2015), doutrina majoritária e jurisprudência dominante, sobretudo do STF e STJ, apontam a responsabilidade civil subjetiva para situações de dano gerado por omissão estatal, a exemplo do REsp 1.069.996/RS, RE 179.147 e RE 109.615-2. Para a referida autora, a responsabilidade subjetiva possui quatro elementos definidores, quais sejam, o comportamento estatal (omissão), o dano, o nexo de causalidade entre este e aquele e a culpa ou dolo.

Além destes requisitos gerais, é preciso verificar alguns requisitos específicos, conforme determina Marinela (2015). Cabe avaliar a possibilidade de o Estado ter impedido o dano e a compatibilidade com os padrões possíveis do serviço, diante das dificuldades insuperáveis do Estado. “O fato é que o Estado não pode ser responsável pelas faltas do mundo, não pode ser tratado como anjo da guarda ou salvador universal, por isso os limites são necessários” (MARINELA, 2015, p. 964).

A responsabilização do Estado pela omissão dá-se em virtude de condutas ilícitas, ficando caracterizada quando ocorrer descumprimento de um dever legal. Entretanto, não poderá ser reconhecida, em regra, por danos causados por eventos da natureza, atos de terceiros, quando o dano era inevitável e quando o Estado prestava o serviço dentro de seu padrão normal. Entretanto, existem situações que, mesmo diante destas excludentes, o Estado será responsabilizado, pois se estará diante de um descumprimento de dever legal.

Com relação a eventos da natureza, Marinela (2015) diz que se o administrador público descumpre o dever de manter as galerias de escoamento de água desobstruídas ou deixa de colocar para-raios em determinados locais e, em decorrência de enchentes ou de raios, danos são ocasionados, a Administração Pública deverá responder pelos danos ocorridos, em virtude de ausência de serviço.

No que tange aos atos de terceiros, a supracitada autora diz que, em determinadas situações, “[...] torna-se notória a omissão do Poder Público, porque teria ele a possibilidade de garantir a proteção e evitar os danos, descumprindo um dever legal, já que o dano era evitável e ele não o impediu” (MARINELA, 2015, p. 964). Cite-se o caso do REsp 1.142.245/DF, em que o STJ reconheceu a responsabilidade do Estado diante de agressões físicas e morais que aluno de escola pública do DF perpetrou contra professora da mesma instituição. No caso em questão, o aluno já ameaçava a professora havia certo tempo, dando sinais de que efetivaria aquilo que vinha prometendo. O Estado nada fez para afastar o referido aluno da escola, bem como não reforçou a segurança do colégio, nem tampouco a segurança pessoal da professora. Diante dos danos sofridos, o Estado foi responsabilizado pela omissão diante de ato de terceiro.

Outro ponto a ser analisado diz respeito à possibilidade de que o dano que afetou o administrado tivesse sido evitado, diante da situação em que o Estado poderia ter impedido o prejuízo, mas nada fez. É cabível tal discussão, por exemplo, quando se trata de assalto em via pública, em que os guardas assistem à ação dos bandidos, apesar de terem como impedi-los, mas nada fazem. Diante disso, reconhece-se um descumprimento de dever legal e, por conseqüência, responsabilidade do Estado pelos danos ocasionados.

Por fim, com relação ao padrão normal de execução do serviço, afirma Marinela (2015, p. 965) que este conceito não está previsto em lei, mas deve ser estabelecido conforme o “[...] meio social, o estágio de desenvolvimento tecnológico, cultural, econômico e da conjuntura da época”. Esse padrão está moldado pelo princípio da reserva do possível, que estabelece o dever de o Estado prestar o serviço de acordo com as condições orçamentárias, estruturais e tecnológicas que possui.

Apesar disso, conforme jurisprudência do STJ, esse princípio não pode justificar a ausência ou má prestação do serviço público, eximindo o Estado de suas obrigações. Por entendimento firmado no julgamento do AgRg no REsp 1.136.549/RS, o STJ estabeleceu que é necessário que a Administração Pública garanta, pelo menos, o mínimo existencial relacionado aos serviços públicos.

Dessa maneira, para o Estado se eximir da responsabilidade, deve-se observar as condições reais. Se o serviço é organizado e eficiente, mas não foi possível impedir o evento danoso por força alheia à vontade estatal, não lhe cabe responsabilização. Assim, quando há omissão do Estado, este não agiu ou agiu de forma insuficiente para impedir o dano, assumindo comportamento inferior ao padrão normal exigível, podendo ter impedido, mas não o fez, há dever de indenizar (MARINELA, 2015, p. 966).

Diante disso, cabe questionar qual o tipo de responsabilidade que obriga o Estado a indenizar a família de detento que foi vítima de homicídio em estabelecimento penal brasileiro, bem como em casos de suicídio de detentos nesses mesmos locais.

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