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A inefetividade do processo civil brasileiro

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3. As mudanças na sociedade

CAPPELLETI nos ensina que "não é necessário ser sociólogo de profissão para reconhecer que a sociedade (poderemos usar a ambiciosa palavra: civilização) na qual vivemos é uma sociedade ou civilização de produção em massa, de troca e de consumo de massa, bem como de conflitos ou conflitualidades de massa". 12

RIBEIRO DANTAS, por sua vez, assim se manifesta sobre a sociedade de massa "caracteriza-se por sua complexidade, pelos fenômenos multi-interativos da produção, da troca e do consumo em larguíssima escala; pelos relacionamentos entre grandes grupos e pelo intenso movimento deles no seio do organismo social; por seríssimas questões interindividuais, surgidas com a superpopulação, a urbanização, a automação e a degradação ambiental; pela sofisticação dos anseios pessoais e populares, pelas novas demandas culturais; pela influência massiva dos meios de comunicação; pelo stress generalizado; pelas rápidas mudanças, pelos modismos e pela tecnologia. E, principalmente nos países de terceiro mundo, pelos grandes contrastes trazidos pela evolução desigual dos elementos sociais, pela pobreza de muitos, ressaltada na comparação com o elevado bem-estar de outros". 13

A sociedade é um organismo vivo, pulsante, pois que ela é o resultado do agir dos sujeitos. Não se pode percebê-la como uma unidade estática. Nos últimos 50 anos, o espaço social foi espancado pela velocidade e pela alternância das modificações.

Com o fim da segunda guerra mundial, a economia foi transformada de forma radical, pois que se antes ela era um representante da figura do Estado Nacional, agora, ela vive os ares do efeito da globalização. O mercado, o capital e as grandes empresas construíram a estratégia da extra-territorialização dos seus interesses. Não se limitam mais a representar as figuras limitadas do nacionalismo, mas encaram um mundo sem fronteiras, onde tanto as noções de tempo e de espaço foram alteradas com as novas tecnologias que surgiram.

No campo político, se viu o poente do Estado Liberal, e de seu direito que pretendia proteger os interesses do indivíduo contra a ação da figura estatal, para a consolidação e a crise do Estado do Bem Estar Social, e do seu direito regulador e legitimador da intervenção do aparelho estatal. Levado a extrapolar a sua própria capacidade, esse Estado providência não resistiu ao preço de estar presente em todas as esferas do campo social, e com a globalização, ocorreu a exportação dos valores do mercado para dentro do espaço político, o que justifica, em alguns sentidos, a crise porque passa o Estado nesse início de novo século.

Igualmente, houve uma revolução em curso no espaço social, pois que a radical transformação dos marcos tradicionais das fronteiras nacionais, com o advento das revoluções tecnológicas lideradas pelo setor da informática, afetou a própria forma de viver do ser humano. Ao mesmo tempo em que, hoje em dia, a informação está calcada numa visão macro, essa é proporcional à fragmentação da racionalidade, pois que essa sociedade de massas tem como resultado uma pasteurização da própria compreensão do sujeito em relação ao universo que o cerca.

É, assim, que novas formas de atuação, como o terrorismo, ou mesmo a luta pela ecologia, acaba por seduzir amplos espaços do social, sem que se dê a esse qualquer percepção de segurança, mas apenas de ações que radicalizam a própria inserção do agente em um universo globalizado.

Essas mudanças na sociedade fizeram com que o Direito, instrumento tradicional do ordenamento social, tivesse que se adaptar, notadamente o direito processual, pois que é através dele que o conflito pode ser operacionalizado, e que os novos interesses/problemas que aparecem constantemente, podem buscar a solução para os conflitos que acabam por gerar.

Repita-se: essa necessidade de mudança foi um movimento obrigatório. O direito, enquanto campo parcial do espaço social, não pode ficar distante das transformações que a sociedade sofre, pois que se ele não for dinâmico, corre o risco de se tornar uma figura obsoleta. Dessa maneira, o ordenamento jurídico faz, sempre, um esforço constante em transformar-se, mas sem perder a capacidade de conservar aquilo que é da sua essência.

É verdade que as modificações que ocorrem no direito não conseguem acompanhar a velocidade daquelas que impulsionam o espaço social. Mas, para que os sujeitos reconheçam a legitimidade da fala da lei, essa deve seguir sempre o objetivo de estar próxima do agir social. A tarefa se complica, ainda mais, quando falamos do ordenamento jurídico, pelo fato de que esse deve conviver com a tensão constante entre mudar e conservar, pois que esse conflito tem o condão de quebrar toda a legitimidade da presença da lei como mantenedora da ordem social. Alguns institutos do direito, contudo, puderam se transformar de forma mais dinâmica.

Desta forma, ocorreu em relação ao processo civil, uma verdadeira revolução, com a adaptação de institutos seculares aos novos tipos de demandas que surgiram, agora não mais individuais, mas, igualmente, coletivas latu sensu14.


4. Evolução do processo civil

As ações coletivas iniciaram sua história no sistema processual brasileiro com a lei da ação popular (Lei 4717/1965), sendo essa o primeiro instrumento sistemático e autônomo, voltada à tutela de alguns interesses coletivos em juízo, em especial o patrimônio público.

Tal lei subverteu dois dogmas do processo, a legitimação ativa e a coisa julgada. No seu artigo 1. º, ela legitimou o cidadão15, e o seu discurso político, a cidadania, para defender, em nome próprio, os direitos não só pertencentes a sua esfera, mas de toda a população, através da substituição processual, e em seu artigo 18, ampliou a qualidade da coisa julgada, dando-lhe um efeito erga omnes, desde que a ação fosse julgada procedente; caso fosse julgada improcedente por deficiência de provas, qualquer cidadão poderia propor novamente a ação, desde que fundada sob nova prova.

Contudo, a época em que essa lei surgiu não foi muito propícia ao seu desenvolvimento, pois que estávamos a viver em plena ditadura militar, assim, não era de se esperar que conseguisse florescer um instrumento para coibir justamente os atos praticados pelo poder público.

Mas, é em 1981, que as ações coletivas passam a se estabelecer no sistema processual brasileiro com o surgimento da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (lei 6938/1981), onde se previu a responsabilidade civil para aqueles que poluíssem o ambiente, ao mesmo tempo em que se atribuía ao Ministério Público, a legitimidade para o ingresso da ação em defesa da natureza degradada ou em perigo de degradação.

Entretanto, a força maior da preocupação coletiva ocorreu com o surgimento da Lei da ação civil pública - LACP (Lei 7347/1985), que aprimorou os institutos processuais coletivos como a extensão da legitimidade ativa a vários órgãos, pessoas e entidades ou associações (artigo 5º); o inquérito civil, destinado as investigações preliminares a propositura da ação pelo ministério publico (artigos 8º e 9º); bem assim, a instituição de um fundo para o qual reverteriam, em alguns casos, as indenizações, com vista à reconstrução dos bens lesados (artigos 13 e 20). Todavia, o seu objeto ainda se mantinha limitado, pois que estava restrito a defesa do "meio ambiente, do sujeito consumidor, dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico".

Com a Constituição de 1988, e o seu corolário em nome das garantias individuais, e dos direitos fundamentais, o ordenamento jurídico brasileiro consagrou o direito processual coletivo.

Em seu artigo 129, III, o objeto da ação civil pública foi ampliado, passando a albergar a proteção de qualquer direito difuso e coletivo, sem nenhuma restrição quanto à tutela jurisdicional de direitos lesados ou ameaçados de lesão. Além disso, criou uma série de ações constitucionais coletivas além de aperfeiçoar as já existentes, tais como o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, a ação popular, a ação civil pública, a ação de dissídio coletivo e a ação de impugnação de mandado eletivo.

Em 1990, com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor - CDC, tal lei trouxe regras específicas para a tramitação dos processos coletivos. Os sistemas processuais do CDC e da LACP passaram a estarem interligados, formando um microssisterma processual coletivo, sendo aplicáveis indistintamente a um e ao outro reciprocamente, conforme os artigos 90 do CDC e 21 da LACP, este último introduzido pelo artigo 117 do CDC.

Há, por assim dizer, perfeita interação entre os dois sistemas, que se completam e podem ser aplicados às ações que versem sobre direitos ou interesses coletivos lato sensu.


5. Resistência ao microssisterma processual coletivo

"- Que coisa. Morreu mesmo?

- Morreu!

- Mas, morreu como?

- Ora, morreu morrendo. Está morta.

- Mas foi de morte morrida ou de morte matada?

- Tão dizendo que foi de morte matada. Coitada... Tão jovem

- De morte matada?

- É de morte matada. Bem matada. Toda vez que ela tentava se levantar batiam de novo. Foi horrível". 16

Atualmente, temos um moderno Sistema Processual Coletivo, mas infelizmente o senso comum teórico dos juristas17 não se deu conta de todas estas modificações e ao invés de colocá-las em prática, procura ou esquecê-las ou restringi-las ao máximo.O Processo Coletivo é, dessa forma, atingido em duas frentes:

a) a primeira, pelos juristas que não se deram (ou não querem se dar) conta das modificações no sistema processual.

É o caso da recente decisão de um magistrado potiguar, da 2ª vara da Fazenda Pública, o juiz IBANEZ MONTEIRO DA SILVA, que proferiu decisão na Ação Civil Pública n.º 001.02.016869-2, em que o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte requereu a anulação do Concurso Público para provimento de cargos de Técnico Judiciário, Auxiliar Técnico e Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, por descumprimento flagrante da Constituição Estadual e da Constituição Federal, do seguinte modo:

A falta de indicação de membro do Ministério Público para integrar a comissão do concurso público para provimento de cargos no Poder Judiciário, com inobservância dos artigo 26, § 6° e 72, IV da Constituição Estadual, não afetou, de modo a prejudicar nem beneficiar, qualquer candidato inscrito no certamente. A presença do Ministério Público na comissão do concurso em nada influi, seja na sua lisura ou sob qualquer aspecto que se examine. Até mesmo como fiscal da lei não é possível admitir-se, pois, atuando como membro de comissão de concurso, o Ministério Público não está desempenhando suas atribuições institucionais. Logo, a questão não diz respeito ao interesse de qualquer candidato ou grupo de candidatos. Portanto, não configura também interesse coletivo. Ora, para haver interesse coletivo é preciso que haja, primeiro, o interesse individual; depois, que esse interesse individual seja disseminado entre outros indivíduos ligados ao mesmo grupo. Assim, por exemplo, deveria haver interesse de qualquer candidato para configurar o interesse individual, e que esse interesse fosse comum a outros candidatos, tornando-o coletivo. Mas, como se vê, não há sequer interesse individual, dado que nenhum candidato foi prejudicado ou beneficiado, ainda que indiretamente, com a falta do representante do Ministério Público na comissão do concurso. Nota-se, desse modo, que o interesse é próprio e particular do Ministério Público ou de seu representante. Não se pode confundir interesse do Ministério Público com interesse coletivo. Com efeito, a ação civil pública não se presta para a defesa de interesse particular do Ministério Público, ainda que pudesse ser entendido como interesse institucional, aliás, o que não é, pois, como já afirmei, o interesse institucional está relacionado com as atribuições próprias do Ministério Público, nas quais não se inclui a participação em comissão de concurso para provimento de cargo público.

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Desse modo, forçoso é, portanto, reconhecer a ilegitimidade do Ministério Público, neste caso. Diante do exposto, indefiro a inicial, com base no artigo 295, II do CPC, por reconhecer a ilegitimidade ativa do Ministério Público, dada a não configuração de interesses difusos ou coletivos no objeto da ação proposta. Transitada em julgado, arquive-se. Publique-se. Registre-se. Intime-se". (DOE, fls. 23, 30/11/2002)

Verifica-se que o magistrado, em questão, afirma que o Ministério Público não tem legitimidade para empreender a defesa ao cumprimento da Constituição Estadual e pleitear a lisura do Concurso Público através da Ação Civil Pública. Se isso é verdade, não se pode conhecer o por quê da existência do Ministério público, já que se colocaria, de forma perplexa, uma nebulosa em sua função.

Porém, esse fenômeno não se restringe apenas aos juízes de primeiro grau18, pois que ocorre e atinge, inclusive, tanto aos Tribunais Estaduais, bem como aos Tribunais Superiores, e, infelizmente, em larga escala.

A título de exemplo trazemos a recente decisão do Ministro Gilson Dipp, no Recurso Especial 419.187, em que o Ministério Público Federal, em Ação Civil Pública, pretendia defender direitos previdenciários, mas, para surpresa, teve a sua legitimidade rejeitada:

"A ação civil pública pode servir para a defesa do consumidor, seja em caso de direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos (CDC 81, caput)", explica. "O que não pode é servir para a defesa de direitos individuais homogêneos de outras espécies de interesses, como os dos segurados da Previdência Social, por exemplo, por falta de previsão legal", ressalva. "Nem a Lei de Benefícios, nem qualquer outra lei, autoriza a utilização da ACP para a defesa de direitos individuais homogêneos dos segurados da Previdência Social", acrescentou. Segundo Dipp, os beneficiários não se equiparam a consumidores. "Desta forma, não há que se aplicar a hipótese do artigo 82, III do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, pois o mesmo trata dos direitos individuais homogêneos", acredita. "Ante todo o exposto, divirjo da E. relatora para conhecer do recurso e lhe dar provimento, a fim de declarar a ilegitimidade ativa do ''parquet'' federal''", concluiu Gilson Dipp19.

A decisão demonstra um falta de assimilação a todas as mudanças advindas com a Lei de Ação Civil Pública, com a Constituição de 1988 e com o advento do Código de Defesa do Consumidor.

Destaca-se que a Constituição e o Código de Defesa do Consumidor não legitimaram o Ministério Público a defender somente os direitos dos consumidores, mas todos, leiam-se de forma contundente, todos os interesses coletivos "lato sensu" (difuso, coletivo e individual homogêneo) em qualquer tipo de matéria envolvida.

A condição fica, portanto, limitada ao fato de só poder haver restrição se o direito não for coletivo. Essa análise deve ser feita não pela matéria que se esta defendendo (por exemplo, o caso dos direitos dos beneficiários da previdência), mas pelo tipo de direito que se está a defender (isto é, o direito coletivo).

Logo, sendo os direitos dos beneficiários da previdência, no caso, direito individual homogêneo, ou seja, coletivo, não existe nenhuma restrição a atuação e a legitimidade da defesa pelo órgão ministerial.

O que ocorre com uma boa parcela da magistratura brasileira é a extrema dificuldade em se aceitar o "novo". Como afirma o professor STRECK20, "se olharmos o novo, com os olhos do velho, transformamos o novo em velho". Infelizmente é isto que está acontecendo. Por um apego a idéias de um processo voltado para solucionar demandas individuais, os magistrados têm uma dificuldade enorme em assimilar as novas modificações advindas com o processo coletivo, dando a sua devida eficácia e aplicabilidade.

b) a segunda, pelo "governo federal" que vem paulatinamente, através de Medidas Provisórias21, tentando delimitar o campo de atuação do Processo Coletivo.

Como preleciona SCARPINELLA BUENO "ao invés de estudar condições de dar cumprimento efetivo à decisão do mais alto Tribunal do país é isto que faz o governo: elimina mecanismo de tutela jurisdicional coletiva deste direito impedindo, assim, que, de uma penada, todos possam ser, igualmente, beneficiados com uma decisão uniforme a respeito do tema."22

b.1) A medida provisória n.º 1570 de 26.3.97, depois transformada na Lei n.º 9.494, de 10 de setembro de 1997, pretendeu limitar a qualidade da coisa julgada à competência territorial do magistrado prolator da sentença, alterando o artigo 16 da LACP que passou a ter a seguinte redação : "A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".(grifo nosso)

A professora GRINOVER23 assim se manifesta sobre a alteração na Ação Civil Pública "limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e de outro lado, contribui para sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente".

Por sua vez, THEDORO JUNIOR24, ainda impregnado com as influências históricas tratadas no item 2, concorda com a mudança no artigo16, afirmando que "como não há regra alguma de nível constitucional que obrigue a existir ações coletivas com força nacional, a Lei 9494, artigo2º, continuará a fazer com que cada juiz apenas disponha de autoridade para tutelar direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos dentro do território de sua jurisdição", e continua afirmando que "se contra a melhor técnica processual, o legislador entendeu de confundir numa só regra a competência territorial com os limites da força da sentença, o certo é que lei existe e, como tal, deverá ser acatada pelo Poder Judiciário. À jurisdição, a não ser como guardiã da supremacia constitucional, não é dado rever a obra legislativa para modificá-la ou revogá-la, ainda que sustentada por critérios de conveniência ditados pela melhor técnica jurídica".(grifo nosso)

Em que pese à posição do ilustre professor mineiro, entendemos que tal alteração foi inócua, pois o âmbito de abrangência da coisa julgada é determinado pelo pedido, e não pela competência. Se o pedido for amplo não será por intermédio de tentativas de restrições da competência que o mesmo poderá ficar limitado.

Se tal modificação lograsse êxito, como é do desejo de THEDORO JÙNIOR, teríamos situações esdrúxulas, tais como: a veiculação de propaganda enganosa de um produto exposto em rede nacional, se uma ação coletiva fosse ajuizada em Porto Alegre, a proibição só valeria nos limites deste município, enquanto os outros consumidores continuariam a serem enganados, ou, a venda de um medicamento cancerígeno, também só seria proibido em determinado município onde fosse ajuizada a ação, já o restante da população poderia ingerir tal medicamento e até mesmo morrer, pois a determinação judicial só teria efeito naquele território, até que fossem ajuizadas milhares de ações em todo Brasil, o que é uma ofensa a qualquer lógica racional.

b.2) Logo depois veio a medida provisória n.º1798-1, de 11.2.99, que acrescentou alguns artigos a Lei 9494/97, dentre eles o artigo2.º-A – " A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator" e seu parágrafo único – "Nas ações coletivas propostas contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços".

Tais artigos, além de tentarem impor uma nova condição para o ajuizamento das ações pelas associações civis (ata da assembléia, relação nominal dos associados e indicação dos endereços), dificultando o acesso à justiça, só demonstram a falta de conhecimento do Direito Processual Coletivo, ao tentar, novamente, limitar os efeitos da sentença, apenas aos associados, e que possuam domicílio no âmbito da competência territorial do órgão julgador, repetindo o mesmo erro de confundir competência com abrangência da coisa julgada, tratado no item b.1.

A professora paulista GRINOVER, assim, afirma que "mais uma vez o governo serve-se do instrumento da medida provisória para minar todo o trabalho edificado ao longo de anos no sentido de prestigiar os momentos associativos, de facilitar o acesso à justiça e de dotar o Judiciário de instrumentos processuais modernos e adequados à tutela dos direitos ou interesses supra individuais".

b.3) Para finalizar, a medida provisória 2.180-35 de 24 de agosto de 2001, que acrescenta o Parágrafo Único ao artigo 1.º da Lei da Ação Civil Pública – " não será cabível ação civil pública para veicular pretensões que envolvam tributos, contribuições previdenciárias, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS ou outros fundos de natureza institucional cujos beneficiários podem ser individualmente determinados".

Evidente a inconstitucionalidade da Medida provisória, pois essa teima em limitar a competência constitucional do Ministério Público na defesa dos direitos coletivos latu sensu, previsto no art, 129, III da Constituição25, já que não existe nenhuma restrição constitucional, aliás, essa declara que a legitimidade é ampla, não fazendo qualquer exceção à defesa de direitos tributários, previdenciários ou FGTS.

O STF provocado a se manifestar sobre o tema, na ADIN 225126 ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores – PT julgou a mesma prejudicada por falta de aditamento da inicial e na ADIN 235127 ajuizada pela Associação Nacional dos Oficiais Militares Estaduais – AME, e utilizou-se do mesmo motivo da anterior, julgando-a prejudicada por falta de aditamento da inicial.

Esta Medida Provisória teve o intuito de congestionar ainda mais o Judiciário. Agora será necessária uma série de ações individuais para pedir o que poderia ser obtido com uma única ação coletiva.

Em luminosa lição, SCARPINELLA BUENO esclarece que "morreu a ação civil pública que um dia ousou ir contra a voracidade fiscal do Estado e afastar, de uma só vez, toda a ganância tributária imposta à população brasileira. Não àquele que sabe o direito ou daquele que tem dinheiro para pagar tributaristas especializados na invenção de teses e mais teses que têm como premissa que todo o tributo criado no Brasil é inconstitucional (e por que ler as leis se são todas inconstitucionais?). Mas daquele humilde que paga tributo porque sequer sabe que, fosse um país sério, não teria que pagar tributo para avaliar fluxos de pagamentos de outros ingressos mal servidos, mal usados e desviados pela corja que, desde sempre, governa ou manipula o Brasil, suas instituições e seus destinos".28

Verifica-se, portanto, que o Direito Processual Coletivo é atacado de um lado, pelo senso comum teórico que não compreendem ainda o alcance de suas normas e não sabem interpretar tal sistema, e de outro lado, pelo Governo Federal que ao longo dos anos tenta diminuir todas as vantagens do mesmo, em uma clara demonstração de política autoritária, e que há muito, colocou em cheque a divisão clássica dos poderes em nosso país.

Porém, o principal entrave para a ineficácia das ações coletivas será abordado no próximo capítulo.

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Sobre os autores
Antonio Marcelo Pacheco de Souza

advogado criminalista do escritório Amadeu Weinmann, em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal, Processual Penal e Constitucional em cursos preparatórios para exames de Ordem e concursos, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciado e bacharel em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS

Emanuel B. Oliveira

advogado especializado em Direito Civil em Porto Alegre, Mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Antonio Marcelo Pacheco ; OLIVEIRA, Emanuel B.. A inefetividade do processo civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 470, 20 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5821. Acesso em: 23 dez. 2024.

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