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A pertinência da inquisitoriedade na fase pré-processual da "persecutio criminis"

27/10/2004 às 00:00
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Quando um cidadão através de um ato de violência ou ardil pratica um ato delituoso instala-se um desequilíbrio no corpo social. A vítima imediata, que teve seu bem jurídico vilipendiado, bem como o Estado (vítima mediata de todos as infrações penais perpetradas) são atingidos de súbito, sem chance de qualquer defesa.

O que há neste momento é a surpresa, o arrebatamento, o "bote". O que há nas cenas desse episódio de angústia, e por vezes de medo, é a rendição incondicional, a subjugação, a fragilização do indivíduo e das instituições. Por óbvio, há casos que excepcionam a regra (e que por isso a ratificam), em que o algoz vê sua vítima lançar mão de uma reação que vence a conduta perversa e arreda o ato nefasto.

Observa-se, in ictu oculi, que o autor do fato age sem avisar e sob o manto de uma ação reptícia faz concretizar os seus intentos deletérios. Ele utiliza estratagemas vis para colocar à disposição de suas pretensões a vida, a integridade física, a liberdade, o patrimônio e a moral alheios. Os que são submetidos à ação violenta ou ameaçadora não têm outra opção senão a inércia, sob pena de ensejar ao sujeito ativo pretexto para a condenação a uma execução sumária da pena capital, sem direito a ampla defesa e qualquer contraditório. Estes últimos passam a ser mero objeto da sanha daquele que se arvora em impor a sua vontade em detrimento de qualquer direito.

É claro, que a discussão sobre a temática do crime, do criminoso e da vítima exige inexoravelmente uma perquirição Criminológica profícua. Todavia, as presentes reflexões pretendem alcançar as dimensões e nuances da persecução criminal pré-processual.

Por conseguinte, diante do desequilíbrio causado pelo ato criminoso na sociedade (tal qual a enfermidade que debilita o soma) o Estado há de apresentar remédio para amenizar imediatamente os sintomas da doença que se faz presente, e evitar que outros indivíduos sejam acometidos da mesma debilidade. Vale dizer, há que haver uma resposta imediata em prol da retomada da normalidade.

A partir da constatação da prática de um crime ascende proporcionalmente a exigência social de sua repressão. O Estado-Administração passa, neste diapasão, a perseguir criminalmente aquele que trouxe insegurança e desestabilidade ao tecido social, para satisfazer a sua pretensão punitiva que se concretizou quando da prática da infração penal.

Segundo escólio do Mestre Fernando da Costa Tourinho Filho [1], in verbis:

"(...) o Estado não pode auto-executar o direito de punir. Por isso, quando do cometimento de uma infração penal, cabe ao Juiz dizer se o pretenso autor deve ou não ser punido. E, para que isso ocorra, é preciso que o Estado-Administração leve a notícia do fato ao conhecimento do Estado-Juiz, apontando-lhe o respectivo autor, afim de que, apreciando e analisando a notícia, declare se procede ou improcede, se é fundada ou infundada a pretensão estatal. "

Mas como promover uma persecução criminal imediata e amplamente eficaz, sob a égide dos princípios do Estado Democrático de Direito, sem permitir que o autor do crime se mova afastando provas e inviabilizando a futura ação da Justiça Criminal?

Como reprimir a prática da infração penal sem deixar que o sujeito ativo mobilize inclusive instrumental jurídico para procrastinar a prospecção dos elementos probatórios mínimos para o estabelecimento da verdade real?

Somente através de um procedimento inquisitorial, plenamente vinculado, é que se alcançarão as condições ideais, vale dizer paridade de armas, para o devido êxito da ação penal em prol da aplicação da lei penal condenatória.

Com a prática do crime o seu autor está em vantagem de armas em relação aos agentes estatais que laboram em prol da repressão delitual. Ele tem a priori o domínio factual, está um passo à frente... Ele conhece todos os meandros do ato que partejou, sabe onde está o nó górdio que o põe adstrito ao delito que praticou e envidará todos os esforços para impedir que venham à tona as provas que o incriminam.

É preciso, portanto, o engendramento de ações que permitam que o Estado-Administração se lance inexoravelmente sobre os fatos e pessoas envolvidas na ação criminosa, promovendo a mais ampla angariação de provas em prol do estabelecimento da verdade real. Neste sentido, elucidar-se-á a autoria e a materialidade, elementos indispensáveis para a promoção exitosa da ação penal.

Esse é o primeiro momento de atuação estatal frente ao crime, e ele tem que o sê-lo o mais profícuo possível. É na persecutio criminis extra juditio, com o aparato de investigação policial, que o sujeito ativo do crime vai ter superado a vantagem inicial que dantes era detentor. Na verdade, o êxito de toda a persecução criminal e a satisfação da pretensão punitiva depende da boa condução deste momento pré-processual.

Leciona Magalhães Noronha [2], expressis verbis:

"No sistema processual adotado pelo Código (CPP), é o inquérito ‘preliminar ou preparatório da ação penal’, conforme se lê no item IV da exposição de Motivos. É nele que se colhem elementos que seria impossível ou difícil obter na instrução judiciária, v.g., auto de prisão em flagrante, exames periciais, declarações do ofendido etc. É, então, o inquérito instrução provisória, como ainda se fala naquela Exposição. Não é ele processo, mas procedimento administrativo, destinado, na linguagem do art. 4º, a apurar a infração penal e a autoria. Fornece, pois, ao órgão da acusação a base ou supedâneo necessário à propositura da ação penal. Dele se encarrega a Polícia Judiciária (...)." (grifei)

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Na esteira do processualista paulista, constata-se que com o moderno instrumental da Criminalística, com as hodiernas técnicas de investigação, as quebras de sigilo realizadas, v.g., telefônica, bancária, fiscal e de dados (sempre com autorização judicial), com a decretação de segredo das investigações, o Estado vai superando o estágio inicial de perplexidade diante da perpetração do crime e vai se colocando de maneira consistente numa posição pró-ativa no contexto criminal, promovendo a devida repressão da ação delituosa e ensejando o locus amoenus para a futura persecução criminal em sede judicial.

Dessa forma, se justifica a inquisitoriedade do Inquérito Policial. Ele há de ser assim para poder ensejar uma repressão criminal realmente efetiva. Há de se entende-lo inquisitório na medida de não existir em seu bojo contraditório ou ampla defesa e de ser centralizado na figura da Autoridade Policial o diligenciamento de todos os atos procedimentais.

Como salienta o Supremo Tribunal Federal [3], ipsis verbis:

"a investigação policial, em razão de sua própria natureza, não se efetiva sob o crivo do contraditório, eis que é somente em juízo que se torna plenamente exigível o dever estatal de observância do postulado da bilateralidade dos atos processuais e da instrução criminal. A inaplicabilidade da garantia do contraditório ao inquérito policial tem sido reconhecida pela jurisprudência do STF. A prerrogativa inafastável da ampla defesa traduz elemento essencial e exclusivo da persecução penal em juízo."

Noutro giro, mesmo sem contraditório nem ampla defesa, e por vezes desenvolvido sob segredo de justiça, o Inquérito Policial não pode ser instrumento de abuso. Para tanto há o controle externo da atividade Policial exercido pelo Parquet, há à disposição de todos e de qualquer um, sem qualquer restrição, o remédio heróico do Habeas Corpus e há as Corregedorias das Polícias Judiciárias.

Inquérito Policial: Inquisitório necessariamente, efetivo e eficaz sempre, abusivo em nenhuma hipótese.


Notas

1 Tourinho Filho, Fernando da Costa. Código de Processo penal Comentado, Vol. I, p. 25, 3. ed., Saraiva, São Paulo, 1998.

2 Noronha, Edgar Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, p. 22, 25 ed., Saraiva, São Paulo, 1997.

3 STF – 1ªT. – HC nº 69.372/SP – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 7 maio 1993, p. 8.328.

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Sobre o autor
Adriano Mendes Barbosa

Delegado de Polícia Federal, Professor da Academia Nacional de Polícia para os Cursos de de Pós-Graduação em Ciências Policiais, Mestre em Ciência Política pela Naval Postgraduate School, CA, EUA, Articulista e Palestratnte.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Adriano Mendes. A pertinência da inquisitoriedade na fase pré-processual da "persecutio criminis". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 477, 27 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5830. Acesso em: 27 abr. 2024.

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