Aspectos jurídicos do combate às drogas e reflexões sobre a descriminalização

06/06/2017 às 00:58
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Que existem esforços sérios voltados à busca de uma solução à problemática das drogas, isso é fato. Se estes esforços estão surtindo efeitos positivos, a resposta é clara e está constantemente exposta em muitos noticiários. A Lei nº 11.343/06 foi um dos resultados desses esforços envidados. Inevitável se questionar, ante esse quadro, se a descriminalização não seria uma solução mais eficaz.

            Basta abrir qualquer jornal, ou assistir qualquer noticiário no Brasil, para perceber a dimensão da crise que o país enfrenta em relação às drogas. O combate ao tráfico de narcóticos que toma as manchetes policiais diariamente é um problema conhecido da sociedade, mas que, em geral, é encarado de forma rasa, em um sistema que procura combater com rigidez o mal evidente, porém se preocupa pouco em entender suas raízes.

            A chamada “Guerra às Drogas”, em que pese aceita pela maioria dos cidadãos nacionais, é uma política que tem se mostrado ineficiente para solucionar o problema do consumo e tráfico de narcóticos, além de custar bilhões de reais anualmente aos cofres públicos, e causar milhares de mortes, tanto de policiais, quanto de infratores. Proibir é a regra, mas visivelmente não está funcionando.

            Quando um fato toma a complexidade que as drogas adquiriram na sociedade brasileira, o Direito é ferramenta essencial para buscar uma solução. No caso em tela, manifesta a relevância da questão, ela chega às raias da ultima ratio do ordenamento jurídico, o Direito Penal, que se tornou praticamente o único ramo do Direito a lidar com a alarmante situação das drogas, que fora sempre tratada pelo sistema brasileiro primeiramente como caso de segurança pública, sem se considerar a esfera de questões sociais que envolve o problema.

            Uma das formas encontradas pelo Direito de trabalhar esse tema foi a criação de leis penais específicas, que permitem um tratamento mais detalhado das hipóteses criminais relacionas, em contraste às tipificações sintéticas do Código Penal. Não obstante, as leis específicas permitem ir além da mera cominação de sanções, possibilitando que outras medidas de cunho não punitivo sejam também pensadas.

            Entretanto, a primeira lei especial sobre drogas, Lei n°6.368 de 21 de outubro de 1976, embora brevemente tratasse da recuperação dos dependentes, e mencionasse um intuito de prevenção, possuía um caráter de intensa repressão, influenciado fortemente pelo regime ditatorial militar que era vivenciado no país à época de seu desenvolvimento[1].

            A referida lei trouxe consigo a intensificação do viés proibicionista, e tanto o usuário como o traficante passaram a ser entendidos como “inimigos do Estado”, contra os quais se instaurou uma verdadeira guerra, com uma série de efeitos colaterais. Por exemplo, à medida que o combate aos traficantes é feito de forma militar, aqueles buscam resposta igualmente bélica, e acabam fortalecendo também o tráfico de armas e o aumento crítico da violência, que é largamente apontada pela mídia e pelas autoridades como produto da produção e consumo de substâncias, e não como resultado do modelo armado de repressão utilizado pelo Estado.

            Vale registrar que esse modelo, em grande parte por influência midiática, foi majoritariamente abraçado pela sociedade, que ao considerar apenas o resultado superficial da problemática de drogas – ignorando as origens do fato social – apoiou e legitimou a política de proibição.

            Em meados da década de 2000, o entendimento sobre o assunto começou a apresentar sinais discretos de mudança, ao menos no que tange os usuários, e os indícios disso são perceptíveis especialmente com o tratamento dado à temática com o advento da denominada Nova Lei de Drogas, Lei n°11.343 de 23 de agosto de 2006, que revogou a lei anterior de 1976.

            A nova lei antidrogas trouxe mudanças significativas para o tratamento dado pelo Direito Penal ao usuário de drogas, prevendo uma série de medidas de caráter educacional e de conscientização sobre os riscos do consumo, e a criação do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD objetivando a prevenção do consumo e a reinserção do usuário na sociedade.

            Nessa seara, sem dúvida a mudança mais expressiva foi a extinção da pena de prisão para a conduta de usuário, tipificada no artigo 28 da nova lei[2], in verbis:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

            A mudança na pena destinada aos usuários, que na lei anterior[3] era de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e pagamento de 30 (trinta) a 100 (cem) dias-multa, é um formidável caso de novatio legis in mellius que demonstra a adoção por parte do Estado de uma concepção mais moderna e razoável sobre o usuário de drogas, indicando o reconhecimento de que este é tanto vítima quanto culpado no consumo de substâncias.

            É mais que oportuno observar que essa mudança despertou uma forte controvérsia na doutrina penal, com o surgimento de uma corrente (atualmente minoritária) de juristas que entendiam ter ocorrido uma descriminalização do uso de drogas com o fim da pena de prisão para esse tipo penal, enquanto a outra corrente entende ter havido mera despenalização da conduta.

            Dentre os juristas que defenderam ter ocorrido abolitio criminis no artigo 28 da lei ora tratada, está Luis Flávio Gomes[4], que interpretou a mudança como sendo uma descriminalização formal, e que a conduta descrita se tratava de uma infração sui generis e não mais um crime.

No novo texto legal (art. 28) já não se comina a pena de prisão. Logo, como vimos nos comentários ao art. 27, o fato deixou de ser criminoso (em sentido estrito). Houve descriminalização “formal”, porém sem concomitante legalização. O art. 16 foi apenas formalmente descriminalizado, mas a posse da droga não foi legalizada.

            No polo oposto da discussão, penalistas de renome como Damásio de Jesus[5] asseveraram que a conduta foi apenas despenalizada, porém permanece sendo crime.

De observar-se que a Constituição Federal declara que “a lei regulará a individualização da pena (criminal) e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição de liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos” (art. 5º, XLVI – parêntese nosso). Nota-se, portanto, que o Texto Maior expressamente autoriza a existência de crime sem a cominação de pena privativa de liberdade. Essa conclusão ganha esforço quando se nota na Carta Maior a previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica (Art. 173, §5º, e 225, §3º); os entes fictícios, por óbvio, não ficam sujeitos à prisão, muito embora cometam crimes.

            Rogério Greco[6] segue a mesma linha de entendimento, abordando também o aspecto da própria organização topográfica da Lei nº 11.343, que insere o artigo 28 no capítulo referente aos crimes e às penas.

Contudo, podemos afirmar que se trata de um crime, em virtude da situação topográfica da Lei nº. 11.343/2006. Isso porque o Art. 28 está inserido no capítulo III do Título III do novo estatuto

Antidrogas, que cuida dos crimes e das penas, razão pela qual, em razão da disposição expressa no mencionado Capítulo III, podemos afirmar que o consumo de drogas encontra-se no rol dos crimes previstos pela lei 11.343/2006, não se tratando, outrossim, de contravenção penal, mesmo que em seu conceito secundário não conste as penas de reclusão ou mesmo de detenção, conforme o disposto no art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal.

            À despeito do interesse que o debate desperta, é dominante na doutrina o entendimento de que houve despenalização da conduta, e não descriminalização. Conveniente ressaltar que no plano prático essa é a corrente que se consolida, ao passo que a jurisprudência nacional é uníssona nesse sentido, já tendo o Superior Tribunal de Justiça declarado que o fenômeno do artigo 28 é mera despenalização[7].

            Mas, se por um lado a nova lei de drogas trata de forma mais branda o usuário, por outro, aumentou a punição para a figura do traficante, tipificada no artigo 33, cuja pena mínima passou dos 3 anos de reclusão cominados na lei anterior, para 5 anos de reclusão. Ou seja, a Lei nº 11.343/06 segue a linha de sua antecessora, pautando-se em forte repressão estatal para tentar vencer as drogas.

            Nesse diapasão, há inclusive quem entenda que a nova lei possa ter agravado o problema das drogas, deixando demasiada subjetividade nos critérios para tipificar um sujeito como usuário ou traficante, resultando em uma série de prisões que, talvez, não ocorressem se os critérios fossem mais objetivos. Um fato que impulsiona essa visão é o aumento da população carcerária presa por delitos relacionados a drogas que, segundo informações da imprensa, em 2005 era cerca 9% dos presos, e em 2014 já correspondia à 28% dos encarcerados[8].

            Tais fatos demonstram que a nova lei, apesar de visar uma política de redução de danos em relação ao usuário, mantém o viés de “guerra” em relação ao traficante, de modo que, mesmo depois de seu advento, o problema das drogas continua se agravando.


CONCLUSÃO

            Em que pese existam esforços no Direito para buscar uma solução para o problema das drogas, como a própria Lei nº 11.343/06 aqui abordada, é cada vez mais nítido que o foco na repressão e proibição não está surtindo resultados, e que tratar o combate às drogas como uma guerra não é o caminho para superar esse desafio. A descriminalização se insurge mais do que nunca como a opção menos prejudicial dentre as existentes até o momento.

            Essa percepção já alcançou vários países no mundo, como a Espanha e o Uruguai, que estão se distanciando do proibicionismo e trabalhando mais intensamente em práticas de redução de danos.

            É preciso humildade para reconhecer as falhas na política de proibição, e admitir que hoje no Brasil, o fato de uma droga ser ilegal não impede seu consumo. Ao contrário, este parece ser cada vez maior e de mais fácil acesso. Nesse panorama, seguir reprimindo e proibindo tende a piorar uma situação que já é gravíssima, resultando no aumento da violência, da perda de vidas, dos gastos públicos, da superlotação dos presídios, etc.

            Não obstante exista repercussão de seus efeitos na segurança pública, o consumo de drogas ilícitas é, sobretudo uma questão de saúde pública, e deve ser encarado como tal, com políticas que visem a prevenção e conscientização sobre os danos, dando conhecimento ao usuário sobre os riscos que corre, tal qual é feito em relação ao consumo de álcool e tabaco, drogas lícitas de potencial ofensivo inclusive maiores que o da maconha, por exemplo, que é ilegal.

            É dever do Estado proteger o cidadão,  mas também o é respeitar sua liberdade de escolha, fornecendo os meios para que cada individuo o faça da forma mais consciente possível. A própria sociedade já se encontra em um novo momento de compreensão do assunto, e os valores e entendimentos já se modificam na direção da descriminalização e da busca de novas alternativas para solucionar o problema das drogas. Resta agora ao Direito observar a nova conjuntura social que se apresenta no país, e também mudar.

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Notas

[1] SENADO FEDERAL. História do combate às drogas no Brasil. Disponível em:< https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/dependencia-quimica/iniciativas-do-governo-no-combate-as-drogas/historia-do-combate-as-drogas-no-brasil.aspx>. Acesso em: 17 de fevereiro de 2017.

[2] BRASIL. Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Artigo 28. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 17 de fevereiro de 2017.

[3] BRASIL. Lei nº 6.368 de 21 de outubro de 1976. Artigo 16. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6368.htm>. Acesso em: 17 de fevereiro de 2017.

[4] GOMES, Luiz Flávio (coord.). Lei de Drogas comentada artigo por artigo: Lei 11.343/06, 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.120.

[5] JESUS, Damásio de. Lei Antidrogas anotada / Damásio de Jesus – 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2010. p. 53-54

[6] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial / volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes contra a pessoa / Rogério Greco. 5 ed. – Niterói, RJ: Impetus, 2008.p. 92.

[7] Ementa: HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. WRIT SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. DESVIRTUAMENTO. ARTIGO 16 DA LEI N. 6.368 /1976. SUPERVENIÊNCIA DA LEI N. 11.343 /2006. DESCRIMINALIZAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. MERA DESPENALIZAÇÃO. REINCIDÊNCIA. CONFIGURAÇÃO. MINORANTE PREVISTA NO § 4º DO ARTIGO 33 DA LEI N. 11.343 /2006. PRETENDIDA APLICAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PACIENTE REINCIDENTE. MANIFESTO CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. 1. O Superior Tribunal de Justiça, alinhando-se à nova jurisprudência da Corte Suprema, também passou a restringir as hipóteses de cabimento do habeas corpus, não admitindo que o remédio constitucional seja utilizado em substituição ao recurso em ação cabível, salvo nas hipóteses de flagrante ilegalidade, abuso de poder ou teratologia jurídica. 2. Este Superior Tribunal, alinhando-se ao entendimento firmado pela Corte Suprema (Questão de Ordem no RE n. 430.105-9/RJ), também firmou a orientação no sentido de que, com o advento da Lei n. 11.343 /2006, não houve descriminalização (abolitio criminis) da conduta de porte de substância entorpecente para consumo pessoal, mas mera despenalização. 3. Uma vez constatada a existência de condenação definitiva anterior pela prática do crime previsto no artigo 16 da Lei n. 6.368 /1976, e considerando que a conduta disciplinada desse dispositivo legal (agora prevista no artigo 28 da Lei n. 11.343 /2006) não deixou de ser crime, não há como se afastar da condenação do paciente a agravante genérica da reincidência, como pretendido. 4. Reconhecida a reincidência do paciente, mostra-se inviável a aplicação, em seu favor, da causa especial de diminuição de pena prevista no § 4º do artigo 33 da Lei n. 11.343 /2006, haja vista a vedação legal expressa da concessão desse benefício aos condenados reincidentes. 5. Habeas corpus não conhecido.

[8] PEREIRA, Néli. Lei de Drogas é 'fator chave' para aumento da população carcerária, diz ONG. Disponível em: < http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38590880>. Acesso em: 18 de fevereiro de 2017.

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Sobre o autor
Alisson Messias Rocha

Acadêmico de Direito na Universidade Federal de Pelotas no Rio Grande do Sul. Estagiário no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo redigido para fins de avaliação na disciplina de Direito Penal II no curso de Direito da Universidade Federal de Pelotas.

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