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Tratados internacionais concessivos de isenções de tributos estadual e municipal.

A questão da vedação constitucional da isenção heterônoma

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É necessária a alteração do atual texto constitucional para que seja possível à União celebrar tratados em matéria tributária, isentando tributos das esferas de competência dos outros entes federados.

RESUMO

A presente Monografia trata das isenções de impostos, da competência de Estados–membros, Distrito Federal e Municípios, concedidas pela União através de tratados internacionais. Primeiramente, discorre-se sobre a natureza jurídica dos tratados, bem como o processo de celebração e incorporação desses ao direito interno brasileiro. Em seguida, observa-se o conflito entre o direito interno e o internacional, quando da integração ao ordenamento pátrio, suscitando o monismo e o dualismo. Posteriormente, busca-se entender as contradições entre os tratados e a lei interna e a forma como os tribunais pátrios vêm solucionando essas antinomias. Ressalta-se a problemática das responsabilidades e das competências no âmbito da federação, a fim de compreender-se o sistema tributário posto na Constituição Federal. Far-se-á um estudo do artigo. 98 do Código Tributário Nacional (CTN), analisando-se a sua constitucionalidade, verificando-se somente ser possível sua aplicação quando se tratar de tratado-contrato. Por fim, chama-se atenção para o direito tributário contemporâneo e sua relação com os tratados internacionais, realizando-se um estudo específico do que dispõe o artigo 151, III, da Constituição Federal de 1988, apresentando as discussões doutrinárias em torno deste artigo, concluindo pela vedação constitucional prevista nesse dispositivo legal, com as exceções dispostas nos artigos 155, §2°, XII e 156, §3°, II da própria Constituição. Restando demonstrado, que é necessária a alteração do atual texto constitucional para que seja possível à União celebrar tratados em matéria tributária, isentando tributos das esferas de competência dos outros entes federados.

Palavras-chave: 1)Tratados Internacionais. 2) Isenção Tributos. 3) Vedação Constitucional.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; CAPÍTULO 1. Natureza Jurídica e o processo de celebração e integração ao ordenamento jurídico dos Tratados Internacionais; 1.1. Conflitos entre Tratado e Lei Interna (Monismo e Dualismo), 1.2. Antinomia entre Tratado e Lei Interna.; CAPÍTULO 2. A Problemática das Competências e Responsabilidades no âmbito da Federação, 2.1. Responsabilidades interna e internacional ao assinar tratados, 2.2. Sistema Constitucional Tributário; 2.3. Das Competências Tributárias, CAPÍTULO 3. Tratados Internacionais e Direito Tributário contemporâneo ,3.1. Análise da Constitucionalidade do Artigo 98 do CTN.,3.2 A Vedação Constitucional da Isenção Heterônoma ;CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

O cerne desta monografia consiste na vedação imposta pela Constituição Federal de 1988, no tocante às isenções concedidas pela União via de tratados internacionais, dos tributos da competência estadual e municipal. É a chamada isenção heterônoma, ou seja, isenção de tributo realizada por ente que não detém a competência constitucional específica para instituir ou isentar determinado tributo. Esta questão gera muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais nas ordens internacional e interna, revelando-se um problema imposto aos operadores do direito como um todo. Grandes discussões são travadas em torno deste tema, tendo o estudo de seus reflexos passado a despertar os interesses políticos e econômicos dos países ansiosos pela globalização do comércio mundial. Vale destacar que para a elaboração dessa monografia foi considerado como tratado internacional: convenções, protocolos, ajustes, declarações, convênios, compromissos, bem como as notas recursais, que completam ou registram concessões recíprocas.

Estudando a celeuma posta, sob um ponto de vista cosmológico, pode-se dizer que a resolução desse tema significaria verdadeiro progresso do Brasil rumo à integração a blocos econômicos, em escala mundial, tais como a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul), por exemplo. Na ordem internacional, o país ostentaria uma imagem de país confiável e honrado no que diz respeito ao cumprimento dos compromissos assumidos perante os outros Estados soberanos. Na ordem interna, traduziria a convivência harmônica entre os entes componentes da Federação.

Muito embora, como irá restar demonstrado, não se pode desprezar preceitos contidos na Magna Carta, sob o pretexto de, ao deixar a Constituição Federal de lado, estar o fazendo em prol de um bem maior, qual seja a credibilidade internacional do Brasil. Tal credibilidade poderá ser refletida em progresso comercial, materializada com a realização de negócios, entretanto tal atitude pode vir a ferir de morte o pacto federativo, instalando o caos entre os entes componentes da República Federativa do Brasil. Além disso, acarretaria à Nação arcar com o descrédito no plano interno e até mesmo internacional, por desrespeito aos formalismos necessários ao convívio social.

Desta feita, o sistema tributário de um país pode dificultar sobremaneira a celebração de um tratado internacional, considerando-se que os Estados não desprezam sua soberania fiscal. O objetivo dessa monografia será o de provar que no Brasil, pelo fato da Constituição dispor da divisão de competência no âmbito da federação, a questão torna-se de difícil solução, já que a União, mesmo representado o país em suas relações exteriores, ao firmar um pacto com outra nação tem de ficar adstrita à sua competência, não podendo conceder isenções de tributos de competência dos Estados e Municípios, comprometendo a eficácia do tratado, bem como restringindo seu âmbito de alcance, sob pena de ser considerado inconstitucional.

Destarte, pretende-se apresentar as divergências que postas nas doutrina constitucional, internacional e tributária, discorrendo-se no primeiro capítulo sobre a natureza jurídica dos tratados, bem como sua celebração e o processo de integração ao ordenamento pátrio, passando pelos conflitos com o direito interno e as contradições no âmbito do ordenamento. Demonstrar-se-á no segundo capítulo, o sistema de competências e responsabilidades no âmbito da federação e o sistema constitucional tributário brasileiro. No terceiro capítulo será destacada a relação dos tratados com o direito tributário contemporâneo, buscando-se a resolução da questão inicial, realizando-se um debate intenso sobre o artigo 98 do Código Tributário Nacional, que dispõe sobre os tratados internacionais em matéria tributária, bem como, o disposto no artigo 151, III, da Constituição da República, que trata das denominadas isenções heterônomas.

Intentar-se–á então saber se o Brasil inserido no contexto da globalização da economia mundial, fenômeno esse irreversível, com intuito de integrar-se política, econômica, social e culturalmente, conseguirá fazer prevalecer o direito internacional em detrimento ao direito interno. Essa indagação se desenvolverá com os seus desdobramentos, sem, contudo, ter-se a pretensão de exauri-la, elaborando-se apenas uma resposta para essa questão tão controvertida.


CAPÍTULO 1

Natureza jurídica e o processo de celebração e integração ao ordenamento jurídico dos Tratados Internacionais

Tanto a natureza jurídica dos tratados como sua classificação doutrinária são temas de diversos embates teóricos. Alguns autores acreditam que os mesmos quanto à classificação da sua natureza, podem ser subdivididos em tratados-leis e tratados-contratos, outros estudiosos não aceitam essa distinção [1].

Sabe-se que os tratados que trazem em seu bojo a lei em sentido lato caracterizando-se pelo fato desta ostentar sua compulsoriedade e generalidade, ninguém poderá descumpri-la a seu bel prazer, mesmo existindo as normas dispositivas, pois essas não podem ser tidas como facultativas, ainda que possibilitando a seus subordinados uma conduta distinta da estabelecida na lei. Cabe somente à lei, com sua força cogente, consentir ou vedar atitudes ou deliberações, sendo imposta aos cidadãos, não podendo ser ponderado o seu descumprimento.

Por outro lado, o tratado de natureza contratual traz consigo a idéia de necessidade de livre expressão de vontade. O contrato tem como pressuposto a liberdade de firmar a avença, tendo a obrigatoriedade de cumprimento emanada da anuência dos celebrantes, que os torna diretamente vinculados ao seu conteúdo. Este raciocínio se aplica a celebração dos tratados internacionais, que não são impostos ao Estado, respeitando-se sua soberania. A manifestação voluntária de se comprometer na ordem externa faz com que os Estados pactuantes aceitem o conteúdo do tratado para que seus preceitos sejam plenamente eficazes, em seu ordenamento jurídico.

Diante do exposto, fica patente na doutrina, que a natureza jurídica dos tratados é a mesma, modificando-se apenas seus conteúdos, existindo tratados que disciplinam interesses comuns dos Estados (tratados-contratos) e outros que estabelecem normas gerais (tratados-lei). Essa classificação atende mais a interesses políticos ou funcionais do que jurídicos.

Referindo-se aos próprios institutos jurídicos do Direito brasileiro, há avenças envolvendo o patrimônio que não são consideradas pela doutrina clássica contratos porque não geram direitos nem obrigações objetivando apenas fixar regras a serem cumpridas para a realização dos atos pressupostos, sendo, entretanto, esses negócios jurídicos, em sua essência, autênticos contratos, como também o é a natureza jurídica dos tratados internacionais.

Entendida a natureza jurídica passaremos a conceituação de Tratado Internacional, que em linha gerais segundo Luis Avani de Amorim Araújo:

é um ato jurídico através do qual os Estados Soberanos e Organizações Internacionais que obtiveram personalidade por acordo entre diversos Estados criam, modificam ou extinguem uma relação de direito que existe ou que passará a existir entre eles [2].

Com base nesta definição, pode-se dizer que tratado internacional é a anuência recíproca que se dá entre duas ou mais nações com intuito de constituir, regular, alterar, modificar ou extinguir um elo de direito, através do qual dois ou mais Estados soberanos, manifestam formalmente, por escrito, suas vontades, com a finalidade de surtir efeitos jurídicos, bem como fazendo lei entre as partes, obrigando uma postura uniforme para o cumprimento dos pontos pactuados.

No que diz respeito ao processo de celebração dos tratados, para que esses integrem o ordenamento jurídico brasileiro, devem seguir os trâmites legais de negociação, celebração e ratificação. Neste processo o Presidente da República e o Congresso Nacional têm diferentes competências e objetivo único que é o de inovar na ordem jurídica.

A Constituição da República Federativa do Brasil [3], em seu Título III (Organização do Estado), Capítulo II, art. 21, I, dispõe que:

"Art. 21. Compete à União:

I - manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais;"

Já o art. 84, VIII [4], elenca como uma das atribuições privativas do Presidente da República a manutenção de relações com Estados estrangeiros:

"Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

[...]

VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional."

Com isto, a Constituição, permite que a União represente a República Federativa do Brasil, em suas relações exteriores, manifestando-se perante a ordem internacional em nome próprio e em nome dos Estados, Municípios e Distrito Federal.

A lei n° 5.172/66, que deu redação ao Código Tributário Nacional (CTN) [5] na parte que disciplina as normas gerais de Direito Tributário, dando ênfase no artigo 98, configura o tratado como uma fonte desse ramo do direito. A Constituição Brasileira de 1988, ao disciplinar a forma de introdução desses acordos internacionais no ordenamento interno, estabeleceu limitações hermenêuticas aos preditos dispositivos legais, posto que, para que o tratado seja constituído como fonte do direito, precisa passar antes por um processo de celebração, aprovação e ratificação, que se dá de forma especial, sendo incorporado no mesmo nível de hierarquia que a lei ordinária.

Equipara-se ao tratado internacional à lei interna, com primazia do que for posterior, em perfeita consonância ao que se conhece como monismo moderado. A jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal mostra que não há exceções a essa regra, mesmo em matéria fiscal, fato esse muito discutido na doutrina.

Decisão, por unanimidade, do Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), tendo como relator o Ministro Celso de Mello bem exemplifica esta posição:

PARIDADE NORMATIVA ENTRE ATOS INTERNACIONAIS E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS DE DIREITO INTERNO.

Os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito internacional público, mera relação de paridade normativa. Precedentes. No sistema jurídico brasileiro, os atos internacionais não dispõem de primazia hierárquica sobre as normas de direito interno. A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (lex posterior derogat priori) ou, quando cabível, do critério da especialidade. (6)

Em seguida, há que se tratar segundo Alberto Xavier [7] da fase das negociações, iniciando-se com a intermediação de agentes do Poder Executivo e findando com a declaração das partes envolvidas (autenticação), definindo-se o texto a ser ratificado, não importando ao Estado signatário o ônus de adimpli-lo, demonstrando apenas, a intenção do Governo do país em seguir o trâmite de celebração do tratado.

Ainda consentaneamente o magistério de Alberto Xavier [8] reiterando o disposto no art. 84 da Constituição Federal, a fase de celebração dos tratados dispõe de:

1.somente o Presidente da República poderá celebrar tratados internacionais;

2.celebrados os tratados, há a necessidade de referendo pelo Congresso Nacional para que seja operada a ratificação. Depreende-se disto que, trata-se de ato complexo, que para se tornar perfeito deve conjugar as vontades dos Poderes Executivo e Legislativo.

Resumindo-se, para incorporação de um tratado ao ordenamento jurídico brasileiro, após a fase de negociação deve-se seguir uma seqüência de atos:

1.o Presidente da República celebra o acordo;

2.o tratado é levado à apreciação do Congresso Nacional, que o referenda ou não por meio de Decreto Legislativo;

3. regressa o referendo ao chefe do Executivo para que este o ratifique, depositando o instrumento. Se não for ratificado o tratado tem-se que o mesmo foi rejeitado tacitamente, pois a anuência de ratificação é ato inerente à soberania do Estado e, como conseqüência, constitui o exercício regular de um direito, não infringindo quaisquer regras de direito internacional;

4.Após ser ratificado e devidamente assinado pelos representates dos Estados pactuantes é que o tratado internacional se transmuda em fonte de direito pátrio.

Segundo Flávia Piovesan nesse sentido:

se consagra, assim, a colaboração entre o Executivo e o Legislativo na conclusão de tratados internacionais, que não se aperfeiçoa enquanto a vontade do Poder Executivo, manifestada pelo Presidente da República, não se somar à vontade do Congresso Nacional. Logo, os tratados internacionais demandam, para seu aperfeiçoamento, um ato complexo", no qual se soma à vontade do Presidente da República, pela celebração, e a do Congresso Nacional, pela aprovação, mediante decreto legislativo. Vale ressaltar ainda, que no Direito brasileiro, a união de vontades entre Executivo e Legislativo esteve presente no texto de todas as Constituições de outrora, para a conclusão de tratados internacionais. (9)

João Grandino Rodas leciona que, a aprovação dos tratados segue no Congresso a mesma tramitação que a elaboração da lei, ou seja, a promulgação por decreto Executivo e a publicação no órgão oficial e fazem parte de uma fase diversa das anteriormente citadas, qual seja a fase integratória da eficácia da lei ou do tratado.

A promulgação atesta a adoção da lei pelo Legislativo, certifica a sua existência e o seu texto e afirma, finalmente, seu valor imperativo e executório. A publicação, que se segue à promulgação, é condição de eficácia da lei. [10]

Com respeito aos tratados que não se submetem à ratificação do Executivo, o referido autor assinala que a promulgação é dispensada sendo esses tratados somente publicados no Diário Oficial da União. É o caso dos "acordos intergovernamentais", ou acordos do executivo. Por isso, alguns doutrinadores defendem a existência da fase integrativa de eficácia tratando-se apenas de formalismo, já que é a partir do depósito do instrumento que o tratado passa a ter vigência no ordenamento jurídico.

Assim de forma sucinta, esta é a formatação adotada pelo Estado brasileiro para a válida incorporação do tratado no âmbito interno.

1.1. Conflitos entre Tratado internacional e lei interna (Monismo e Dualismo)

Não é recente a discussão a respeito dos conflitos existentes sobre a prevalência entre os tratados internacionais e a ordem jurídica interna, sobretudo no que concerne à hierarquia entre as normas.

O então Ministro, do Supremo Tribunal Federal, Moreira Alves [11] em Conferência inaugural do XXII do Simpósio Nacional de Direito Tributário em sua palestra fez uma análise do problema da integração dos Tratados frente a ordem jurídica brasileira, demonstrando, inclusive, a posição mais recente do STF a esse respeito. O citado Ministro proferiu que no seu sentir essa problemática tem de ser colocada sobre dois ângulos tendo em vista o "Direito Comunitário" que está se instaurando no Mercosul, a saber:

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ângulos esses que na Europa são examinados, e que, a meu ver, por isso mesmo determinam que os países europeus colocassem em suas Constituições a possibilidade de haver uma ordem jurídica supraconstitucional, no sentido de que um ordenamento jurídico fosse diverso daquele ordenamento jurídico constitucional, e de certa forma fosse supraconstitucional por ser supranacional. Por isso mesmo é que, quando se examina esse problema de Direito Comunitário, nós verificamos que há uma poderosa corrente que considera que o problema é antes de competência do que de constitucionalidade.

Continua o Ministro dizendo que no Brasil, essa problemática é estudada como sendo tema de constitucionalidade antes de ser de competência. Para Moreira Alves, a diferença diz respeito ao fato de que:

quando se examina a questão como problema de competência, nós temos na realidade de admitir dois ordenamentos. Um ordenamento interno e um ordenamento supranacional. Então, quando se examina o problema sob o ângulo da constitucionalidade, nós temos uma questão diferente. Não temos dois ordenamentos. Temos um ordenamento, que tem que se integrar dentro do ordenamento interno, e por isso há necessidade de verificar se as normas do Direito Comunitário são susceptíveis de compatibilização com as normas constitucionais de cada um dos países que integram esse sistema comunitário. (12)

Segue a palestra, o multicitado Ministro reitera que nos paises europeus como: Alemanha, França e Itália e na América Latina, a Argentina admite-se a ordem jurídica supranacional conviver perfeitamente com a ordem jurídica nacional, e conseqüentemente permite a adoção da solução de problemas dentro da esfera de competência: competência da ordem supranacional e competência da ordem nacional.

Nós não temos isso e conseqüentemente a meu ver daí que surgem os problemas, porque, embora tenhamos uma norma que é o artigo 4.°, par. único, no sentido de que ‘a República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações’, essa norma, pelo menos no meu entender, é uma norma programática. [13]

Continua o Ministro, expondo que surge um problema dramático, criado principalmente pelos modernos constitucionalistas, que evitam discutir a auto-aplicabilidade, em eficácia das normas constitucionais, por entenderem que todas as normas constitucionais têm pelo menos a eficácia de revogar a legislação anterior que lhe fosse contrária, e obviamente estabelecer os parâmetros a serem observados pela legislação que lhes sobrevenha, incluindo-se também as normas programáticas. Relembrou, a despeito desse assunto, que tratou do problema da criação de tribunais supranacionais no Mercosul ministrando uma palestra demonstrando que:

achava difícil tendo em vista a circunstância de que no Brasil não havia preceitos constitucionais à semelhança dos que há com relação a países da Europa justamente para sua integração no Mercado Comum Europeu. Que nós deixássemos de lado os princípios constitucionais, inclusive a cláusula pétrea que está contida no art. 5.°, inciso XXXV da Constituição ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"), e aí o problema que se coloca é se não podemos admitir, em face dessa cláusula pétrea, que questões que ocorrem com relação ao nosso território sejam retiradas do livre acesso ao Poder Judiciário? (14)

Respondeu o multicitado Ministro que o professor Cesare Mirabelli, juiz da Corte Constitucional italiana, que falou logo após ele nesse simpósio, colocando a questão da competência em face da constitucionalidade, sustentando que o problema é o de competência. Rebatendo tal colocação afirmou Moreira Alves: o professor italiano afirmou deste modo porque em seu país se admite constitucionalmente que haja uma ordem jurídica supranacional, não havendo problema algum nesse sentido, porque tal é um problema de competência. "o que é da competência do Direito Comunitário fica dentro da esfera desse ordenamento jurídico; o que é da competência da ordem interna fica dentro da competência da ordem interna". (15)

No Brasil este problema encontra sérias restrições, já que trata-se de questão referente à constitucionalidade e não à competência. Ademais, os tratados ingressam no Brasil como lei ordinária como resta demonstrado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 1480/DF (que tratou das dispensas injustificadas de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), bem como no caso de habeas corpus com referência à prisão civil do devedor em se tratando de alienação fiduciária em garantia, contraponde-se ao Pacto de San José da Costa Rica, que restringe essa forma de prisão a descumprimento de obrigação alimentar. Nesse caso especifico, Moreira Alves diz que é possível a prisão civil do depositário infiel:

Primeiro, porque se fixou que o Pacto ingressa na ordem jurídica brasileira neste caso como lei ordinária, tendo em vista que o Pacto tratava genericamente dos direitos fundamentais, o que implicava dizer-se com base na Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (LICCB) não revogava as leis especiais a respeito da matéria. E que toda a legislação que diz respeito ao depositário infiel, quer no direito material — tratando-se portanto de problemas como os penhores sem desapossamento, alienação fiduciária em garantia — quer o que diz respeito ao direito processual, com a ação de depósito que sem a possibilidade de prisão civil praticamente fica descaracterizada, que esta legislação, por ser uma legislação especial, não estava revogada pelo Pacto de San José da Costa Rica. (16)

Sustenta ainda que o:

§ 2° do artigo. 5°stenta ainda dizitario o Leio ordinaria de acordo com a OIT), bem como o caso de habeas a, França e Italia só se aplica aos Tratados anteriores à CF/88 e ingressam como lei ordinária. Os Tratados posteriores não, senão por meio de Tratados teríamos Emendas constitucionais a alterar a Constituição. Tratado posterior não pode modificar a Constituição nem se torna petrificado por antecipação. Os Tratados posteriores são leis ordinárias gerais ou especiais conforme a matéria de que trata. Então, não são sequer leis complementares. [17]

Para finalizar a palestra, o Ministro Moreira Alves respondeu às quatro perguntas temas do Simpósio, sendo relevante para essa monografia apenas a quarta pergunta:

O tratado de Assunção, bem como os acordos posteriores e complementares, podem disciplinar tributos estaduais e municipais, inclusive concedendo isenções nessas esferas (art. 151, III)? Resposta: Num primeiro exame me parece pouco difícil. Ainda não me convenci com a tese de que a União é uma ordem internacional, e, na ordem interna, outra ordem. Quando uma lei complementar contiver alguma norma ordinária, nem por isto esta deva ser considerada norma de lei complementar. É questão de competência. [18]

Nesse ponto tratou o Ministro do Código Tributário Nacional como lei ordinária recepcionada como Complementar.

Ives Gandra entende que a resposta à pergunta é negativa em respeito, justamente ao disposto no artigo 151, III que combinado com o artigo 84, VIII, conferem a União, "através do Presidente da República e com aval do Congresso Nacional, obriga a Nação nos tratados, que, todavia, não podem afrontar a Constituição", já que se assim o fizesse "o tratado seria inconstitucional e não surtiria efeito no pais". [19]

Hans Kelsen, em sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado [20], demonstra no Capitulo VI a existência de duas correntes principais, que nos dias de hoje, ainda dividem as opiniões dos internacionalistas no que concerne a introdução dos tratados internacionais no direito interno de cada país (a monista e a dualista) especificamente sobre a hierarquia das normas. Essa dicotomia, nos dias atuais, não tem mais a mesma valia que teve nos tempos de outrora, sendo reconhecida pelo próprio Kelsen a prevalência da doutrina dualista. No entanto, os doutrinadores brasileiros justificam o estudo destas doutrinas pelo fato de ser difícil perceber se o direito internacional público e o direito interno são independentes ou se são dois ramos de um mesmo sistema jurídico.

Iniciando pelo monismo, vale ressaltar que o Professor Heleno Torres leciona que o monismo como corrente doutrinária abarca três orientações: [21]

1.Inicia o dito Professor pelo predomínio ao direito interno, valendo-se do conceito de soberania dos Estados, cujo pressuposto é a preponderância do direito interno sobre o direito internacional;

2.a segunda vertente concede predomínio ao direito internacional, entendendo existir uma ordem internacional de interesses que se sobrepõe aos Estados soberanos, atribuindo primazia de aplicabilidade do direito internacional em face da lei interna;

3.a última vertente, que é a do monismo moderado, considera a correspondência das normas internas e internacionais, reafirmando o princípio da lei posterior derroga a anterior, para resolver os conflitos entre elas.

A Escola de Viena defende o monismo com primazia do direito internacional. Dentre seus membros estão Kelsen, Verdross e Kunz. Kelsen, por exemplo, quando criou a teoria pura do direito [22], baseou seu estudo na pirâmide de normas, na qual uma é oriunda e retira sua obrigatoriedade da que ocupa hierarquia superior a ela. Estando no ápice da pirâmide a norma fundamental (grundnorm). Por se caracterizar, em um primeiro momento, como norma hipotética essa fase ficou conhecida como a fase da livre escolha. Depois de alguns anos por influência de um dos membros da escola de Viena, Alfred Von Verdross, Kelsen, finalmente passou a considerar a norma fundamental como sendo a norma de Direito internacional costumeira pacta sunt servanda (tratado fazendo lei entre as partes). Kelsen defendeu desde então ser inconcebível a existência válida de dois sistemas jurídicos na mesma ordem jurídica global. A corrente do monismo com primazia do direito internacional sustenta a existência de uma única ordem, que abarca a ordem interna e internacional. Os defensores dessa corrente, propugnam ainda que no caso do Estado obrigar-se na ordem internacional estaria valendo-se de sua soberania, tendo que o direito interno tem como fonte o direito internacional, dele retirando seu fundamento de validade e com ele não podendo se contrastar e que os compromissos assumidos pelo Estado comprometeriam também os indivíduos subordinados a este passando os mesmos a sujeitos de direitos e obrigações internacionais. A escola realista francesa, através de Duguit e Politis em 1927, também se posicionou em favor da prevalência do Direito Internacional, tendo como fundamento argumentos sociológicos. Essa Escola valeu-se da noção de soberania, que deve ser entendida dentro do contexto dependente da ordem internacional, prevalecendo, destarte, em caso de conflito o direito internacional [23].

A maior parte dos autores brasileiros segue essa corrente doutrinária, existindo registros que a Corte Suprema já adotou esse entendimento. Isto posto, inexistiriam, ordens jurídicas isoladas, havendo um direito único, coordenando e disciplinando a ordem nacional e internacional.

O monismo com primazia do direito interno, fustigado por Kelsen, de outro lado, propugna pela supremacia do direito nacional sobre o direito internacional, ficando a critério do Estado soberano a adoção ou não das normas estrangeiras. Como pode-se inferir do presente contexto, o modelo filosófico Hegeliano assinala tal doutrina, através do qual a visão de Estado é fincada principalmente na idéia de soberania estatal absoluta, na qual o Estado não se sujeita a nenhum sistema jurídico que não seja oriundo de sua própria vontade. Jellinek, nesse sentido, entendia que o Direito Internacional tem como fundamento a autolimitação do Estado, retirando sua obrigatoriedade do Direito interno. Assim, o Direito Internacional é reduzido a simples direito estatal externo, já que para os defensores dessa corrente não existem ordens jurídicas autônomas que se relacionem. Doutrinadores como: Wenzel, o próprio Verdross, no inicio, e os irmãos Zorn, Decencière-Ferrandière defendiam que o Direito Internacional é um direito interno que os Estados aplicam na sua relação internacional. Da mesma forma autores soviéticos, como Korovin, defenderam que o direito internacional somente tem validade se for parte do direito nacional. Georges Burdeau, considera ainda a existência de ‘um direito nacional para uso externo’ se referindo ao Direito Internacional Público. Esta corrente foi combatida, principalmente pela legislação internacional pelo Pacto de Viena de 1969, que tem o Brasil como país signatário, especificamente em seus artigos 26 e 27, desse diploma legal que em linhas gerais assim dispõe: todo tratado em vigor obriga às partes acordantes, devendo ser cumprido por elas de boa-fé, não podendo ser invocadas as disposições de direito interno como justificativa para a desobediência ao tratado.

Em suma, a teoria monista tenta demonstrar que a ratificação dos tratados produz efeitos, no mesmo lapso temporal tanto no plano internacional quanto no interno; já os defensores da dualista entendem ser necessária a tramitação de projeto de lei especial, formalmente disposto nos termos do tratado ou da convenção internacional.

A teoria dualista, tendo como pilares de sustentação Triepel e Dionisio Anzillotti, propugna ao contrário dos monistas a existência de duas ordens distintas, uma interna e outra internacional, que não mantêm qualquer tipo de relacionamento, muito menos, qualquer interdependência. Tornando-se necessária a emissão de uma norma de caráter especial, através da qual há uma metamorfose do tratado em lei interna para que possam ter suas normas vigência no ordenamento jurídico pátrio.

Segundo Albuquerque Mello [24], Henrich Triepel, em 1899, na obra Volkerrecht und Landesrecht foi o primeiro a estudar a matéria publicando uma obra literária. Parte o jurista da concepção de que o Direito Internacional e o Direito Interno são "noções diferentes" e, em conseqüência, as duas ordens jurídicas podem até se tocar em um ponto, anologicamente às retas tangentes, mas jamais se assemelham a retas secantes, isto é, são independentes, nitidamente separadas não possuindo qualquer área em comum. Tal argumento se baseia, em três premissas básicas que opõem as duas ordens em comento:

1.diz respeito as relações: que tem a ordem internacional regulando as relações entre Estados, enquanto a ordem interna disciplina a convivência civil de modo harmônico entre indivíduos de um mesmo Estado;

2.o segundo aspecto está relacionado às fontes nas duas ordens jurídicas: o Direito Interno é o resultado da livre manifestação de vontade de um Estado soberano, enquanto o Direito Internacional tem como fonte a vontade coletiva dos Estados, que se materializa nos tratados-leis e tacitamente no costume internacional. Triepel, neste aspecto, fundamentou sua teoria num termo utilizado por Bindin, qual seja,Vereinbarung, significando convenção, ato-união, que redundaria na fusão de vontades diferentes com um mesmo conteúdo. Sendo manifestada nas decisões do Congresso. A Vereinbarrung divergiria da idéia de Vertrag (contrato), pelo motivo de que as vontades têm conteúdo diferente;

3.a última premissa diz respeito a estrutura das duas ordens jurídicas: a interna está baseada em um sistema de subordinação e a internacional na coordenação.

Os seguidores desta corrente doutrinária, como foi dito anteriormente, acreditam que as duas ordens jurídicas - internacional e nacional são independentes e não se confundem. Entretanto, a ratificação do tratado apenas significa que o Estado se comprometeu a legislar de acordo com o conteúdo do tratado, sob pena do Estado ser responsabilizado no plano internacional, isto não é garantia que o legislador nacional irá modificar ou implementar seu sistema jurídico interno, já que para tal é necessário que o legislador edite um ato formal, notando-se que as normas de direito internacional têm eficácia apenas no âmbito internacional, enquanto que as normas de direito interno são eficazes apenas na ordem jurídica interna.

Quanto aos doutrinadores brasileiros observa-se divergência quanto à teoria adotada pela República Federativa do Brasil.  Heleno Torres [25] defende que a teoria adotada pelo sistema da Constituição é a dualista, face ao "pluralismo sistêmico das ordens jurídicas, considerando que existem precisas fronteiras entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica internacional".

Ressalta, a dependência da aprovação do Congresso Nacional para passar a viger no ordenamento jurídico pátrio, demonstra claramente que o principio adotado na Constituição é o do dualismo. Se de outra forma fosse, a referida aprovação seria desnecessária para o ingresso na ordem interna de tratados internacionais assinados pelo Presidente da República.

Para Betina Treiger Grupenmacher [26] o sistema adotado é o misto, ou seja, a Constituição de 1988 traz em seu bojo as duas teorias, conforme o expresso no artigo 5º parágrafos 1º e 2º, relativos aos direitos e garantias individuais, o sistema é o monista, prescinde de aprovação legislativa:

Artigo 5°

[...]

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Já quando o tratado ocasiona encargos ou compromissos gravosos para o patrimônio nacional, o sistema empregado é o dualista, conforme o explicitado no Artigo 49, I da Constituição da República:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

I - resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;

A respeito do presente tema, o eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, na ADIN 1.480-DF disse que: [27]

deve-se buscar na Constituição da República Federativa do Brasil e não na divergência doutrinaria, que coloca em choque as teses monistas e dualistas, a solução normativa para a questão da integração dos atos internacionais ao sistema de direito positivo interno brasileiro.

Tomando por base a conclusão do eminente Ministro, há que se buscar, adiante, como são solucionados na prática os conflitos advindos da aplicação das normas de direito internacional e direito interno levadas aos Tribunais pátrios, uma vez que a dinâmica que envolve as relações internacionais, no começo de novo milênio, fez esmorecer a discussão sobre a prevalência entre essas doutrinas. As discussões sobre essa matéria cessaram a nível mundial porque quem irão fixar as regras para incorporação dos tratados internacionais, bem como os mecanismos por ela adotados para celebração e ratificação ao direito interno são as Constituições pátrias. Devendo-se sempre buscar a constitucionalidade de um tratado, para que esse possa ser inserido na ordem interna.

1.2. Antinomia entre Tratado e Lei Interna

Para entender-se bem a questão da antinomia entre tratado e lei interna é interessante observar a crítica predominante na doutrina que chama atenção para inexistência do direito comunitário, uma vez que se esse existisse tornar-se-ia desnecessária a recepção do tratado pelo direito interno, prescindindo do mecanismo tradicional da incorporação. Para Ventura [28], parece está "surgindo um pálido direito comunitário latino-americano à sombra do direito comunitário europeu, que ainda se confunde, utilizando as palavras de Kelsen, entre o ser e o querer ser".

Há muito se discute tanto no âmbito doutrinário quanto nos Tribunais pátrios, se consolidando através das diversas jurisprudências sobre a imperatividade dos tratados e sua relação com a ordem interna de cada Estado. Luis Flavio Gomes [29] entende, que quando um determinado país firma validamente um tratado fica patente que está expandindo "seus horizontes jurídicos", delineadores da sua soberania absoluta de ditar regras de convivência interna. Tal entendimento retrata o que tais atos representam, ou podem representar, para o país. Isto posto, tratados internacionais são instrumentos que tem por objetivo em si mesmos inovar na ordem jurídica, vez que fazem brotar no seio social direitos e deveres aos cidadãos, desde o instante de sua válida promulgação e posterior publicação, quando então passam a produzir efeitos jurídicos, tanto internamente como internacionalmente.

Aspecto que gerava muitas controvérsias dizia respeito à discussão a respeito da hierarquia entre os tratados e a lei interna. No entanto, a Constituição Federal de 1988 colocou por terra tal problemática quando em seu Artigo 102, III, b sanou a dúvida acerca de sua supremacia hierárquica diante de qualquer tratado, quando delegou ao STF o dever de julgar, em recurso extraordinário, causa em que a decisão vergastada declare tratado ou lei federal inconstitucional. Ademais, como foi dito o tratado é incorporado ao direito brasileiro como lei ordinária, visto que decisão que contrariar um tratado enseja Recurso Especial de competência do STJ conforme artigo 105, III, a e não Recurso Extraordinário.

O ex-Ministro do Supremo, Francisco Rezek [30] reiterou o entendimento que a Constituição da República sobrepõe-se aos tratados não existindo ordenamento jurídico nos dias de hoje que declare a supremacia aos tratados em detrimento à Constituição, que contrariamente se apresenta como padrão de "aferição de qualidade" das leis e tratados subjugados a ela no que concerne ao conteúdo, não podendo com ela se chocar, bem como na forma de sua elaboração. Entretanto, a nível mundial tal entendimento não é absoluto, cite-se o caso do que ocorre no seio dos paises componentes da União Européia, uma vez que na busca da integração real dos seus membros conferem aos tratados força vinculante preponderando sobre as normas internas dos países, relativizando os poderes dos Estados, em benefício do bloco.

A supremacia da Constituição em relação aos tratados internacionais é, portanto, ponto pacífico entre os doutrinadores, entretanto a relação entre esses e as legislações infraconstitucionais é que vem apresentando divergências. Desta feita, tais conflitos denominados antinomias, vêm sendo solvidos de forma desconforme pela doutrina e jurisprudência.

Pode-se conceituar como sendo antinomia a coexistência de duas normas conflitantes que geram dúvida a respeito de qual delas deverá ser utilizada para a resolução do caso concreto. Para Heleno Torres:

Existe antinomia quando duas normas válidas no sistema, no que concerne a certos critérios (material, pessoal, espacial ou temporal), conflitam entre si, quanto aos modais deônticos, ou seja, uma obriga e a outra proíbe, ou uma permite e a outra obriga, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. [31]

Na visão de Tércio Sampaio Ferraz Júnior [32], antinomia se dá quando: normas conflitantes emanam de autoridades competentes, num mesmo âmbito normativo; contradizendo-se por possuírem operadores opostos (permissão e proibição) e conteúdos refletindo negação interna um e outro (prescrição de atuação e prescrição de omissão); e, por fim, criem posição insustentável do sujeito destinatário da norma, sem qualquer recurso para solver o impasse instituído.

Entretanto, a resolução para as antinomias se dá no ordenamento jurídico. Maria Helena Diniz ensina que:

Nos conflitos entre normas de direito interno – internacional, que ocorrem quando uma lei interna contraria um tratado internacional, a jurisprudência consagrará a superioridade da norma internacional sobre a norma interna, se esses conflitos forem submetidos a um juízo internacional; mas se forem levados à apreciação do juízo interno, este poderá reconhecer: a) a autoridade relativa do tratado e de outras fontes jurídicas na ordem interna, entendendo-se que o legislador interno não pretendeu violar o tratado, exceto nos casos em que o fizer claramente, hipótese em que a lei interna prevalecerá; b) a superioridade do tratado sobre a lei mais recente em data; e c) a superioridade do tratado sobre a lei, ligando-a, porém, a um controle jurisdicional da constitucionalidade da lei. [33]

Para entender-se as hipóteses de solução de antinomias entre tratados e lei interna deve-se mergulhar nos ensinamentos de Noberto Bobbio sobre antinomias, bem como os critérios para resolvê-las. Para Bobbio [34] caracterizar-se a antinomia é necessário que:

1.as normas em conflito devem pertencer ao mesmo ordenamento;

2.devem coincidir o mesmo âmbito de validade (temporal, espacial, pessoal e material).

Os tipos de antinomia dividem-se basicamente em antinomias aparentes que podem ser solucionadas e as antinomias reais na qual o intérprete é abandonado à própria sorte, seja por falta de critério ou por conflito entre os critérios postos.Tendo como regras fundamentais para a solução das antinomias:

a) critério cronológico (lex posterior derogat priori – disposto no art. 2º, § 1º, LICCB);

Com relação a esse critério, a solução da antinomia se dá pela supremacia da norma posterior. Baseando-se na regra geral do Direito em que a vontade posterior revoga a precedente, e que de dois atos de vontade da mesma pessoa vale o último no tempo;

b) critério hierárquico (lex superior derogat inferiori);

Entre duas normas incompatíveis prevalece a hierarquicamente superior. Vimos também, anteriormente, que as normas são colocadas em planos distintos, em ordem hierárquica. Uma das conseqüências da hierarquia é justamente a de que as normas superiores revogam as inferiores com ela incompatível. Esse critério não se aplica ao caso em tela, visto que o STF considera os tratados situados no mesmo plano hierárquico que o das leis ordinárias;

c) critério da especialidade ( lex especialis – disposto no art. 2º, § 2º, LICCB).

Ainda segundo o magistério de Bobbio, quando há conflito entre duas normas contrastantes uma geral e uma especial (ou excepcional) prepondera a especial :lex specialis derogat generali. A lei especial é aquela que invalida os efeitos de uma lei mais genérica, ou que subtrai de uma norma uma parte da sua matéria para subjugá-la a uma regulamentação diferente. Quando se aplica o critério da lex specialis não acontece a eliminação total de uma das duas normas incompatíveis, mas somente daquela parte da lei geral que é incompatível com a lei especial, suspendendo sua eficácia.

A hipótese de que a lei geral derroga a lei especial é aquela em que a lei interna posterior ao tratado, seja com este antagônico. Neste caso especifico ocorre segundo definiu Noberto Bobbio [35] a "antinomia de segundo grau", devendo-se entender que se está diante de uma "incompatibilidade entre os diversos métodos para a solução da incompatibilidade entre normas". Em se tratando de lei interna posterior a um tratado desabrocha um conflito entre os critérios de anterioridade e especialidade, buscando-se qual a solução para esta contradição.

O STF se posicionou acerca desse tema conforme julgamento proferido pelo seu Pleno na célebre decisão sobre o Recurso Extraordinário nº 80.004 [36], de setembro de 1975 a junho de 1977, no qual a Convenção de Genebra foi revogada pelo Decreto n°427/69, assim a lei geral posterior derrogou a lei especial anterior. No julgamento desse recurso o Ministro Xavier de Albuquerque, que, ancorado em precedente do próprio Supremo (RE 71.154), defendendo a superioridade do direito internacional face ao direito nacional, em respeito ao compromisso firmado quando da assinatura do tratado, fundamentando seu voto conforme os ensinamentos do Professor Haroldo Valadão, que considerava a matéria da ratificação como forma de honrar a palavra do país empenhada pela subscrição de um tratado. Por outro lado, os Ministros Cunha Peixoto, Cordeiro Guerra, Leitão de Abreu, Rodrigues Alckmin, Antônio Neder, Carlos Thompson Flores e Eloy da Rocha que, mesmo sob fundamentos diversos deram provimento ao recurso.

Fazendo a compilação de várias legislações, o Ministro Cunha Peixoto percebeu e relatou que o núcleo da questão está centrado no direito constitucional de cada país e não nas teorias sobre direito internacional. No Brasil, para que o tratado seja integrado ao direito interno, é necessário referendo do Congresso Nacional. Descreve que a Lei Uniforme passa a ser direito interno, podendo ser alterada ou revogada por qualquer lei posterior, sob pena de transformar a lei que procedeu ao tratado em "super lei" [37], sendo posta em hierarquia superior à própria Constituição. Disse ainda o Ministro que não existe na Constituição da República vedação que obstasse a apresentação de projeto de lei, por parte de um senador ou deputado que revogue lei oriunda de tratado internacional. Ao concluir seu voto o douto Ministro, ressalta que se uma lei para ser revogada pelo Chefe do Executivo necessitasse que o tratado internacional que a originou fosse denunciado pelo Presidente da República, seria considerada inconstitucional. Esposando o entendimento do acima mencionado Ministro Cunha Peixoto, o Ministro Rodrigues Alckimin, defendeu em seu voto que:

à falta de norma constitucional que estabeleça restrição ao Poder Legislativo quanto à edição de leis internas contrárias a tratados, enquanto não forem estes denunciados, princípios de escolas não justificam, na ordem positiva, o primado pretendido. [38]

O Ministro Leitão de Abreu, em seu voto entendeu não existir na Constituição disposição que fundamente o princípio da lex posterior derogat priori, sustentando que o tratado para ser tomado sem efeito necessita ser denunciado, uma vez que essa é a forma própria de sua revogação, não o sendo pela lei que o contrarie, tendo sua aplicação suspensa pelas normas legais posteriores em vigor, voltando a ter seus efeitos restaurados com a revogação da lei que o obstava.

O Ministro Cordeiro Guerra, compartilhando os entendimentos dos anteriores, defendeu a utilização do dispositivo que soluciona conflito entre as leis (lex postriror derrogat priori) para solver conflitos entre normas de direito interno e internacional, já que para o direito brasileiro ocupam o mesmo nível de hierarquia. Ademais, mesmo o direito interno recepcionando o direito internacional não é vedado aos membros do Congresso legislarem contra o conteúdo dos tratados, desfechando seu voto dizendo que "se a denúncia internacional fosse o único meio de nulificar um tratado, não se compreenderia pudesse o Supremo Tribunal Federal negar-lhe validade por vício de incostitucionalidade".

Como forma de concluir os votos dos Ministros citados há que dizer que o tratado em caso de conflito com a lei interna continua vigendo, podendo voltar a ter eficácia, numa espécie de repristinação, que, de regra (art.2º, § 3º, da LICC), é afastada pelo principio da segurança jurídica. Souza Brasil [39] retrata o entendimento do STF que ainda hoje, entende a edição de lei posterior que se oponha a texto de norma internacional suspende a vigência da referida norma, adotando tratamento paritário para as relações entre os tratados internacionais e o direito interno.

O entendimento sustentado pelo STF é combatido pelos estudiosos do direito internacional. Entretanto, desde o julgamento do RE 80.004 até os dias de hoje, o entendimento firmado ainda encontra respaldo, embora proferido pouco antes dos anos 80, pois entendem, fundamentalmente, que tal posição acarreta em enfraquecimento do Direito Internacional dificultando, sobremaneira, a participação, bem como o respeito às regras estabelecidas em tratados internacionais pela nação brasileira, o que a atrapalha no processo de integração mundial. Assim em tempos de globalização, o entendimento utilizado por grande parte dos doutrinadores é o de que o tratado internacional é norma especial, prevalecendo sobre lei interna, mesmo que posterior, corresponde aos anseios modernos do direito internacional, principalmente em matéria tributária.

Sabendo que não existe no ordenamento jurídico, norma posta para resolver o problema da antinomia envolvendo tratados internacionais e lei interna posterior, alguns doutrinadores apesar de dualistas e defensores da prevalência do direito internacional sobre o interno como é o caso de Heleno Torres [40], advogam que apesar da submissão dos tratados subscritos à Constituição esses se sobrepõem à aplicação de quaisquer lei interna posterior ou anterior a sua ratificação, independentemente do ente federado que a tenha elaborado, admitem implicitamente o principio da lei posterior derroga a anterior, uma vez que concordam com a aplicação da lei interna contrária ao tratado mesmo sabendo que isso importa em inadimplemento contratual, cujos reflexos se farão sentir de forma direta na ordem externa.

Entrementes, mesmo havendo predominância da corrente que entende ser aplicável o principio da lex posterior derogat priori, tal não é ponto pacífico na doutrina. Isto posto, o operador jurídico deve buscar, quando diante de um conflito dessa natureza, o método hermenêutico de cunho político-jurídico. Até porque, de acordo com o Ministro Rezek [41] não existe norma que dê sustentação à supremacia do Direito Internacional frente ao direito interno de qualquer Estado soberano. Além do mais, pelo fato da sociedade internacional ser descentralizada, o guia de cada Estado é sua Constituição. Para resolução desse conflito há que se inserir na referida Carta regramento que confira supremacia de tratado frente às leis internas, não apenas pelo critério da especialidade, bem como por representar um compromisso assumido pelo Estado brasileiro quando da assinatura e posterior ratificação, tendo o acordo a força de fazer lei entre as partes signatárias, sobre o qual houvesse a observância e respeito, que confira a necessária credibilidade nas relações internacionais do país.

Entretanto, há de se salientar que o descumprimento ou a quebra de tratado não é "regalia" do Brasil, visto que movidos por motivação diversa, que não a soberania, muitas Nações, a maioria delas consideradas desenvolvidas, colocam em segundo plano tratados ratificados, para garantir que os interesses nacionais sejam preservados.

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Sobre o autor
Antonio Tide Tenório Albuquerque Madruga Godoi

Bacharel em Direito –UNICAP-PE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOI, Antonio Tide Tenório Albuquerque Madruga. Tratados internacionais concessivos de isenções de tributos estadual e municipal.: A questão da vedação constitucional da isenção heterônoma. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 469, 19 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5834. Acesso em: 26 abr. 2024.

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