Introdução.
Tecer comentários sobre a corrupção é sempre uma tarefa complexa. Dificilmente uma pessoa irá afirmar, categoricamente, que é corrupta. Não obstante, é estrutural e atinge tanto a vida privada, quanto a pública. Furtado (2015) defende em sua obra que o principal fator da proliferação da corrupção no cenário brasileiro é a deficiência da legislação, seguido da certeza de impunidade e o excesso de oportunidades de desvio dos recursos públicos (p. 19).
Apesar de o nosso ordenamento jurídico considerar o flagrante preparado como crime impossível, experiências internacionais, como a dos ‘‘carros íscas‘‘ (bait cairs no original), demonstram que não é uma experiência unicamente pátria. Conforme o The Washington Post (2009), a introdução de íscas diminuiu a criminalidade. A intenção, neste caso, é criar um clima de medo: a certeza da punição, em consonância com a proposta de Furtado.
Conforme IBOPE (2008), 98% do eleitorado brasileiro acredita que os conhecidos já cometerem atos ilícitos. Quando questionados diretamente, 68% admitem que realizaram no minimo um dos itens listados. Seguindo a pesquisa, 75% dos eleitores brasileiros cometeriam atos de corrupção, se estivessem na posição dos políticos na época. A pesquisa vai além, constatando que, de fato, a aceitação dos atos de corrupção, visando obter vantagem para os parentes e a amigos próximo, é maior.
Já em pesquisa realizada pela FUNDEP/UFMG (2009), os índices de aceitabilidade dos atos de corrupção ficaram entre 21-30%, demonstrando que a problemática continua na nossa sociedade.
DaMatta (1986), constrói a ideia de que a lei no Brasil, diferente da legislação de outros países modelos na Europa, está distanciada da realidade social. Aqui, existem dois ''direitos'': o possível e o desejável. Na ausência da possibilidade de efetuar o direito ''desejável'', o brasileiro se contenta em fazer o possível, utilizando o jeitinho brasileiro. Como o autor coloca no texto, na mediação entre a lei e as pessoas, é melhor ferir a lei, já que ela é insensível. Neste prisma, é possível dizer que existe uma confusão entre a esfera pública e a privada, que se agrava com o nível de pessoalidade da conduta, como podemos identificar pelos dados levantados entre as pesquisas.
Partindo deste ponto, e considerando que a administração pública é formada, majoritariamente, pela povo brasileiro, o objetivo deste artigo é analisar a construção da teia de relacionamentos na administração pública, seu fundamento de poder, e questionando se a cordialidade desta situação, e se a própria existência de dois ''interesses públicos'' (o primário, coletivo, e o secundário, o interesse estatal) não produz um ambiente propício para a confusão entre os interesses e a banalização dos efeitos negativos da corrupção.
2. A Estrutura Jurídico-Administrativa como Produto da Necessidade em Ehrlich e Ross.
Ehlirch (1986) apresenta uma proposição importante: de que as normas foram, primariamente, construídas no âmago das associações humanas (p. 31). O direito não é simplesmente uma produção Estatal, mas sim o reflexo da sociedade.
Ross (2000), trata a ideia do direito vigente como ''o conjunto de normas que efetivamente operam na cabeça do juiz“ (p. 59).
Existe uma convergência entre a estrutura do sistema juridico em Ross e Ehrlich: a opinio necessitatis, a crença de que uma lei deve ser seguida pois é necessária ao ordenamento afetado.
Tal proposta está de acordo com o papel das altas cortes judiciais, como o supremo Tribunal Federal brasileiro, capaz de interpretar a constituição e forçar o cumprimento uniformizado destas diretrizes, partindo de uma análise dos direitos constitucionais imanantes (Sarlet 2015 p. 153). A questão aqui se coloca: tal premissa pode ser compreendida para além do judiciário, penetrando na Administração Pública?
A resposta parece positiva, porém, antes de entrar propriamente na questão da administração pública, convém traçar mais um comentário deixado por Ehrlich, que tangencia a teoria defendida por Ross: o estado é uma associação militar, que coloca os recursos necessários para o monarca (atualmente, o executivo), realizar seus objetivos (Ehrlich 1986 p. 110). As normas, neste paradigma, são as entendidas como necessárias para o devido funcionamento desta maquina, asseguradas pela formação de um corpo jurídico estatal em consonância com esta mentalidade (Ehrlich 1986 p. 113-114) . Em Ross (2000), compreendemos a natureza de legitimidade do uso do poder estatal, dirigido aos juízes, como padrões de aplicação e interpretação do sistema normativo, pois ''jamais seria possível edificar um ordenamento jurídico eficaz se não existisse no seio da magistratura um sentimento vivo e desinteressado de obediência pela ideologia jurídica em vigor“ (p. 79).
Assim, a Administração Pública, como o braço executivo do Estado, também se aproveita desta mesma legitimidade do ordenamento jurídico para o uso da força, pois, se de um lado o juiz autoriza (e reconhece!) o uso da força, o executivo administra a sociedade conforme este ordenamento jurídico pressuposto. Ademais, a Administração Pública, não podendo inovar este ordenamento jurídico, no caso brasileiro, executa apenas o que a lei permite. Em última análise, é por acreditar na validade da norma que a administração pública executa as ordens do legislativo e do judiciário, que aceita fazer apenas o que a lei manda e aceita a hierarquia de competências legais.
É esta ordem dirigida do Estado aos tribunais e juízes (Ehrlich 1986 p. 114; Ross 2000 p. 58) que é compreendida como necessária (Ross 2000 p. 79) e que, interpretada nos tribunais, condiciona a organização do Estado, pelas regras imanantes (Sarlet 2015 p. 153), que organiza em uma instância a Administração Pública, legitimando e sendo legitimida pela aceitação das competências. Tal questão, que em Bourdieu (1989), se explica no habitus, pois incorporam o papel esperado legitimando o jogo e sendo legitimados por ele (p. 85-87), como estruturas estruturantes do campo burocrático.
3. Poder Simbólico e Estrutura do Poder em Derrida e Bourdieu.
Derrida (2002 p. 239-240), ponderando sobre Montaigne, levanta a ideia de um fundamento místico da autoridade residindo no poder. A lei é lei pois, em última análise, tem força na sociedade e é percebida assim. Derrida desenvolve a necessidade, e a possibilidade, de desenvolver o poder da lei nos fundamentos da justiça. Tal constatação vai de encontra a opinião sobre a necessidade da lei, e o ordenamento jurídico como regras de utilização do poder (Ross 2000, p. 58). Neste sentido, autoridade e violência (legítima) andam juntos (Derrida 2002, p. 234).
Para Bourdieu (1994), o campo burocrático é o campo de luta dos outros campos, pois ele permite a construção do Estado como aparato tanto simbólico quanto real. O Estado controla a produção das estruturas estruturantes, criando referenciais que se reproduzem, reforçando a sua própria manifestação simbólica e real. E neste ponto, considerando a abordagem proposta por Derrida (2002 p. 233), sobre a expressão ‘‘enforce the law‘‘ a lei se reafirma, dentro da opinião de necessidade, produzida (e sendo legitimida) pelo poder simbólico produzido no campo burocrático. É no habitus dos tribunais e dos aparato burocráticos, estruturados pelas regras de competência, que fomentam a realização do direito como prática.
Se em Ehrlich (1986) as leis são percebidas como necessárias para o funcionamento das estruturas, e o trabalho majoritário do Estado envolve recepciona-las, e em Ross (2000), temos o componente psicológico da submissão voluntária dos operadores, tal conceito gera uma problemática que é resolvida separando em dois os fundamentos desta força: os interesses públicos primários e secundários.
Assim, considerando o conceito usado por Mello (2009 p. 65-69), o interesse público secundário (estatal) está ligado, diretamente, a opinio necessitatis, dos operadores da Administração Pública, que organizam e executam as ordens por considerarem necessárias ao funcionamento, pois ''não é de interesse público a norma, medida ou providência, que tal ou qual pessoa ou grupo de pessoas estimem que deva sê-lo – por mais bem fundadas que sejam estas opiniões do ponto de vista político ou sociólogico-“ (p. 68).
Neste processo de autorreferência, o poder simbólico se reforça, legitimando e criando espaço para futuras legitimações. O Estado, sustentando e sendo sustentado por este aparato, cria o capital e reparte, aumentando o próprio meta-capital que legitima os outros capitais (Bourdieu 1994 p. 4). Em suma, o Estado permite a existência do poder que ele cria, e dividir este poder legitima a existência do Estado.
Não é diferente com o que acontece na Administração Pública, já que, mesmo sendo incapaz de inovar na ordem legislativa, ela pode executar, dentro das premissas técnicas e da competência, o próprio poder estatal. E no interesse de manutenção do aparato estatal, cria-se este interesse público secundário, ele próprio fundamento legitimador de necessidade.
A Administração Púiblica existe pois é necessária para a Administração do Estado que a legitima, no interesse público primário. Porém, sua própria existência, na figura do interese público secundário, acaba estruturando o seu campo de ação, gerando o capital simbólico que é repartido entre todos aqueles que são beneficiados pela ordem inerente à burocracia estatal. Em que pese alternativas a este paradigma de estruturação social, ela é percebida como necessária, legitimando perante a população um enquadramento diferente do funcionário público como gestor, e guardião, da ordem e do Estado.
A Administração Pública, estruturada pelo campo burocrático, tem como um dos principais objetivos de controle interno a formação de quadros alinhados a suas políticas estruturantes. Em Bourdieu (2012) encontramos a noção do Estado como ponto de vista dos pontos de vista, que produz a Oficialidade por intermédio da desparticularização das opiniões (p. 60-61), que permite que o privado possa falar como público utilizando a legitimidade do Estado. Esta condição, que separa a pessoa do funcionário público ''não pode fundar uma ordem em cima das disposições afetivas das pessoas, uma moral ou uma política racional em cima das disposições que são fundamentalmente flutuantes“ (p. 72). Esta tensão, entre o interesse público primário e o secundário, se agrava na figura da Cordialidade.
4. Corrupção e Cordialidade em Arendt e Holanda .
Holanda (2012) cita que Estado não é uma evolução da família (p.45), não tem como função criar laços afetivos entre os seus quadros. Ele é o opositor, que não divide lealdades. O Estado moderno, como gestor do bem comum, busca a uniformidade de padrões éticos que permitem uma formação para a cidadania. É promovendo esta estrutura estruturante, na escola e nos demais centros de formação, que a ordem social necessária para a busca coletiva do bem comum é realizada. Se tal premissa é válida para o privado, maior é a válidade para os quadros da Administração Pública, que se baseiam na impessoalidade.
Os laços pessoais são, por definição, secundários na Administração Pública, que busca a impessoalidade como princípio, em que pese alguns diplomas deontológicos, notoriamente nos quadros militares, como a Lei 7289 (1984) que cria o código de ética dos policiais militares do Distrito Federal, elencarem a camaradagem e a lealdade à instituição (e não ao Estado) como traço inerente das corporações. O Decreto 1171 (1994) aque criou o Código de Ética dos Funcionários Públicos coloca uma ênfase ao funcionário como um prestador de serviços. Não obstante, Holanda (2012) coloca como traço característico a Cordialidade, isto é, o agir com sentimento, o burlar de regras. Esta conduta que, na visão de DaMatta (1989), filtra as relações pelo grau de proximidade.
Assim, a Cordialidade é o fundo emotivo da ética, que permite a relativização da impessoalidade conforme o grau de proximidade entre as partes de uma relação, que encontra na dissonância entre regras e realidades sociais (e a cordialidade é tida como parte do regramento social), uma forma de corrigir esta desigualdade. As normas, como opiniões de necessidade, são contrastadas de forma dialética com o aporte fático.
Bobbio (2015 p. 59) analisa o problema democrático do Governo dos Técnicos. Com a crescente complexidade do aparato técnico-administrativo, cada vez mais o funcionalismo público se especializa (e este é um dos traços da burocracia) e se distancia do conhecimento comum. O funcionário público é treinado não apenas para pertencer como quadro ao órgão ou departamento, mas sim como alguém apto a lidar com os problemas técnicos.
Quer seja o domínio de uma área do conhecimento humano específica, necessária para determinar se a viabilidade de um projeto, quer seja o domínio da própria burocracia necessária para o funcionamento da Administração Pública, o funcionário público acaba criando laços com os demais, representando uma consciência de classe, de como realizar as ações. Os Arcana Imperii (p. 60), o segredos do ofício.
Se o ofício do funcionário público é o funcionamento da maquina estatal, e ele detém o controle (simbólico e real), além do domínio técnico-burocrático desta realidade, legitimando o conceito do segredo neste isolamento técnico, como ''estratégia por excelência das elites para driblar a arena controlada pelos partidos políticos“ (Pereira 1996 p. 26), que se cria nos laços entre departamentos e órgãos, detentores de uma linguagem e um poder estruturante e estruturado, derivado das regras de competência.
Se o segredo é a antítese da democracia, que valida o interesse público primário, ele não é incompatível com o interesse público secundário. De fato, se existe um interesse na existência do Estado, e ele é composto por este núcleo de funcionários, lutando no campo burocrático pelo controle das estruturas estruturantes do poder simbólico, capazes de determinar padrões que atravessam toda a sociedade, na figura do meta-capital que legitima todos os outros capitais (Bourdieu 1998 p. 4), o companheiro de serviço, aliado, que entende os mesmos Arcana Imperii, acaba se tornando uma referência, ou até mesmo um aliado. A camaradagem entre os iguais, que compartilham os mesmos signos e referências acaba se tornando uma forma de proteção.
Wolfe (2015) tece comentários sobre a ausência de uma lei sobre delatores, e parte de algumas premissas culturais. Além das diferenças estrutuais entre o delator premiado e o whistleblower, está a crença de que não adianta denunciar uma situação negativa. De fato, o delator das condutas ilícitas é duplamente atacado, pois além da não expectativa de uma apuração dos fatos, ele ainda sofrerá represálias e será visto como um delator, alguém que quebrou a lógica da camaradagem corporativista. Alguém não confiável, não cordial.
Neste isolamento tecnocrático da burocracia estatal, o interesse público primário continua sendo a regra, assim como a publicidade e a legitimidade dos atos pela apreciação democrática. O segredo, o insulamento e a tecnocracia, apelam ao interesse secundário. Neste campo, os danos colaterais da Administração Pública, ao servirao interesse secundário, promovendo o segredo e o corporativismo, acabam criando um ambiente propício ao fenômeno da corrupção.
Arendt (1999 pgs. 192-4) relata o caso do nazista Einchman, que era incapaz de compreender o alcance dos próprios atos, preso a ideia de lealdade e burocracia. A falta de criatividade, de empatia, de visualizar o outro, não tão próximo: todas as definições que Arendt encontrou para maximizar a incapacidade de perceber os efeitos negativos óbvios. Arendt narra que ''A não ser por sua extraordinária aplicação em obter progressos pessoais, ele não tinha nenhuma motivação“ (p. 192). Einchmann estava preocupado apenas com o seu meio, com as relações necessárias para cumprir a sua função. Arendt segue analisando (p. 194) a função despersonalizante da administração pública, como o ''o governo de Ninguém“, também analisado por Bourdieu (2012).
Se é verdade que o funcionário público tenta se blindar dos fatores sociais e políticos para exercer a sua função, também é de se perguntar o quanto tal paradigma burocrático, em consonância com a cordialidade brasileira, não se converge em uma desparticularização da burocracia, se é que ela é possível, pois em última análise, Einchman tinha um objetivo: o ganho pessoal.
Mudando o que é necessário mudar, quando o interesse público secundário se torna a regra, quando o Estado passa a agir para reforçar o seu próprio poder, quando a burocracia se encontra como um fim em sí mesmo, a falta de empatia passa a não evidenciar os efeitos da corrupção.
O Decreto 5687 (2006) que promulga a Convenção de Merinda não conta com uma definição clara. Neste ponto Furtado (2015 p. 29) coloca a dificuldade de definir um conceito abrangente. Seguindo o autor no conceito da corrupção como desvio de finalidade, e compreendendo que o interesse público secundário, quando não acompanhado do primário, gera um risco para o processo de legitimidade. O ato de desviar a finalidade do interesse público primário gera todo o tipo de insegurança jurídica, minando a legitimidade do sistema burocrático, a transparência dos órgãos públicos e, em última análise, impedindo o controle social do Estado.
Em pesquisa realizada pela FGV (2013), foi constatada a interação direta entre desvios públicos no SUS e a mortalidade em hospitais e estabelecimentos médicos. A corrupção mata, mas de uma forma banal, os envolvidos não compreendem o alcance dos seus atos. E não é um fenômio isolado, é reproduzido e reforçado pelo poder simbólico: 75% dos brasileiros, se estivessem lá, fariam também.