O legado no Direito Romano

13/06/2017 às 19:41
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O artigo discute a questão do legado e de institutos como o fideicomisso no Direito Romano.

O legado era definido no direito romano como uma disposição patrimonial de última vontade a título particular.

No testamento pode o de cuius, além de instituir um herdeiro, fazer liberalidades a favor de terceiros.

É da essência do legado que ele constitua uma liberalidade a favor do legatário, como resulta das fontes, Modestino, § 1º, Inst. 2, 20: Legatum est donatio quedam a defuncto relicta, legatum est donatio testamento relicta.

Fala-se que é qualquer disposição que não atribua a qualidade de herdeiro. É uma disposição a título particular, seja qual for o seu conteúdo e constituía ela ou não uma diminuição da herança, uma deixa a cargo do herdeiro.

Essas liberalidades diferiam da herança em que, sendo disposições a titulo particular, se traduzem na transmissão exclusiva do ativo ou de parcela dele, ao passo que a herança, sendo uma disposição a titulo universal, importa a transferência de todo o patrimônio, do ativo e do passivo.

O legado devia ser feito em testamento, após a instituição do herdeiro; não poderia haver legado para herdeiro ab intestato. No Império, poderiam os codiciclos conter legados, desde que fossem   confirmados por testamento anterior ou posterior; a regra segundo o qual o legado deve ser colocado após a instituição do herdeiro ficou atenuada.

Na época clássica, os legados eram vazados em termos sacramentais, sob pena de nulidade. Havia quatro espécies de legado: per vindicationem, per damnationem, sinendi modo e per praeceptionem.

No primeiro, mediante a fórmula Titio hominem Stichum do lego, o testador transfere diretamente ao legatário, no momento da aceitação da herança, a propriedade de um de seus bens ou de um direito real, como uma servidão real, um usufruto ou uma habitação. O legatário, por sua vez, tinha uma ação real respectiva.

No segundo, per damnationem, através das palavras Heres meus Stichum servum meum Titio dare damnas esto, o testador constitui para o herdeiro uma obrigação em favor do legatário.

A fórmula do legado sinendi modo era: Heres meus damnas esto sinere Lucium Titium Stichum sumere atque sibi habere. Era uma fórmula atenuada do legado , per damnationem e consistia em constranger o herdeiro a uma abstenção; permitia que o legatário se apossasse de uma coisa da herança ou do próprio herdeiro, da qual adquiriria a propriedade por usucapião.

No legado per praeceptionem empregava-se a fórmula: Titius hominem Stichum praecipito. Para Ebert Chamou(Instituições de direito civil, 1968, pág. 496) não era, senão, uma espécie do legado per vindicationem. Assim, a despeito de não ser possível legar a um único herdeiro, podia o testador, a princípio, autorizar um dos coherdeiros a tomar antes da divisão, um objeto determinado da massa hereditária; era o praelegatum.

Justiniano estabeleceu a validade plena do prelegado.

O  prelegado é  quando o legado é atribuído a herdeiro legítimo.

Os  Sabinianos reputavam nulo o legado per praeceptionem que era instituído em proveito de alguém que não fosse herdeiro. Os Proculianos combateram tal opinião: a partir deles era lícito fazer essa espécie de legado a um estranho, que podia reivindicar o objeto legado.

No tempo os quatro tipos de legados se avizinharam e quase se amalgamaram.

Uma constituição dos filhos de Constantino, de 329, suprime as fórmulas dos legados, facultando ao testador o emprego de qualquer das palavras.

O legado tem três sujeitos: o testador, que é o autor, o herdeiro, que deve executar o legado, e o legatário, em cujo favor é feita a liberalidade. Mas a figura do herdeiro pode ser substituída pela do legatário, se este ficar onerado com outro legado(sublegado). No direito clássico, o onerado com o legado há de ser o herdeiro testamentário.

Para validade do legado é necessário que os seus sujeitos tenham a capacidade respectiva, como explicou Ebert Chamoun(obra citada, pág. 498).

Há várias espécies de legados:

  1. Legado de coisa determinada: a coisa deve existir no patrimônio do testador no momento do testamento e no momento da morte. Em tais hipóteses, como explicou Roberto de  Ruggiero(Instituições de direito civil, volume III, terceira edição, tradução Ary dos Santos, pág. 554), a coisa é imediatamente adquirida pelo legatário, no momento da morte do testador, pois a propriedade passa reta via do defunto ao legatário, sem intervenção do herdeiro, que é obrigado a fazer-lhe a entrega;
  2. Legado em gênero: a coisa pode ser determinada apenas em gênero, indicando o testador o número, a medida e a quantidade. Deve tratar-se de coisas móveis, quanto as quais se costuma falar de gênero e de quantidade;
  3. Legado de coisa a tirar de um certo lugar: trata-se de coisa ou de quantidade pertencente a um dado gênero, mas o gênero e delimitado, mesmo individualizado com a designação do lugar em que se encontram as coisas de entre as quais se deverá tirar a legada;
  4. Legado alternativo: é o legado de uma entre várias coisas;
  5. Legado de universalidade: tal como uma só coisa ou um só direito, da mesma forma podem legar-se complexos de coisas ou complexos de direitos, tanto uma universalidade de fato(uma biblioteca); uma universalidade de direito(uma herança, um estabelecimento comercial);
  6. Legado de crédito;
  7. Legados anuais ou periódicos, isto porque pode ser legado uma prestação correspondente a anos, a meses, ou a outros períodos, tal como uma renda vitalícia ou uma pensão;
  8. Legado de coisa alheia onde deve-se distinguir a quem pertence.

Havia o legado de alimentos, isto é, coisas que se consumiam primo usu; a prestação deles, se não foi determinada pelo testador, tinha por base a medida em que o testador a executou em vida, ou o que deixou a outras pessoas da mesma condição social, no direito justiniâneo, às necessidade do legatário.

Havia legado envolvendo a remissão de uma dívida do legatário, de uma servidão de um penhor etc. O legatário tinha a ação ex testamento para obter do herdeiro a aceptilação da dívida e uma exceção de dolo para repelir a ação deste.

Havia o legado envolvendo a constituição de uma obrigação, um crédito do de cuius(legatum nominios), caso em que o legatário tinha uma ação útil; ou de um débito(legatum debiti). Nesta última hipótese, em que o devedor lega a seu credor, o que este lhe deve, em princípio, o legado era considerado nulo, pois não havia liberalidade nenhuma para o legatário. Seria válido apenas se trazia  alguma vantagem para o credor.

O legado parciário se traduzia em uma cota de herança. O herdeiro era obrigado a repartir a herança com legatário, transferindo-lhe a propriedade de coisas corpóreas, segundo a vontade do testador. Em geral, o legatário parciário era uma mulher, que não poderia ser herdeira em virtude da Lei Vocônia. Quanto aos débitos e aos créditos, que não passavam ao legatário, costumavam herdeiro e legatário efetuar estipulações recíprocas.

No direito romano, para que o legado fosse válido, era necessário que os seus sujeitos tivessem capacidade respectiva, exigida para a legitimidade do testamento.

Poderiam ser objeto do legado as coisas da mais variada natureza. Inicialmente, coisas da propriedade do testador ou alheias. No primeiro caso, o único permitido para os legados  per praeceptionem, eram entregues no estado em que se encontravam no dia da aquisição definitiva, com os acréscimos e melhorias, diminuições ou deteriorações, ainda que não previstas pela vontade do testador. No outro  caso, somente admissível no  legado per damnationem, o legado era válido apenas se o disponente tinha consciência de que a coisa era de terceiro, devendo o herdeiro diligenciar a sua aquisição; se não havia qualquer ciência por parte do disponente, o legado era nulo, salvo se fosse feito a um dos parentes próximos do testador ou a sua mulher e se o herdeiro não conseguisse adquirir a coisa, devia pagar o seu valor. 

O legado podia ser objeto de revogação direta ou indireta.

A revogação direta ou especial ocorria quando o testador, no testamento, ou no codicilo por este confirmado, declarava expressamente a revogação. A princípio, era necessário empregar uma formula inversa da usada na redação do legado per vindicationem, e ne dato, para o legado per damnationem.

Iure pretório admitia-se a revogação tácita, quando irrompia uma grave inimizade entre o testador e legatário, quando o legatário houver recebido o objeto do legado enquanto vivo e testador ou se o testador aliena o objeto do legado. A alienação da coisa legada per damnationem em si não anulava o legado, pois, por essa forma, se podia legar coisa alheia. Alguns juristas concediam o exceptio doli, que era fundada numa revogação tácita;  se a coisa alienada era legada per vindicationem, em si, o legado seria nulo, pois não se podia legar coisa alheia por essa forma, mas havia juristas, baseados no senatus-consulto Neroniano, admitiam a convalidação do legado.

No direito imperial, a validade do legado independe da instituição do herdeiro; o pretor decidia que, se o testamento era válido e o herdeiro testamentário, que seria ab intestato, repudia a herança para não pagar os legado, devia, entretanto, efetuar o pagamento.

A revogação indireta podia dar-se quando mudava o legatário, o herdeiro ou o objeto do legado e quando uma condição era aposta ao legado puro e simples ou retirada de um legado condicional.

Por sua vez, falava-se em que o legado era considerado caduco quando, válido ab initio, não podia ser recolhido pelo legatário.

A caducidade do legado verificava-se em vários casos: em virtude de nulidade do testamento;  por morte ou falta de capacidade do legatário verificada antes do óbito do testador; pela perda da coisa; pela insuficiência do ativo, uma vez que, em regra, o herdeiro respondia pelos legados até o montante do ativo.

A lei Furia testamentária(550-585) proibia os legados de valor superior a mil asses, excetuados os cognados até o sexto grau; a sanção era a actio per manus inictionem para que visa à pena do quádruplo.

A lei Vocônia, de 585 de Roma(160 a.C) preceituava que o legatário não poderia receber mais do que recebia o herdeiro e proibia aos cidadãos de primeira classe instituir herdeiras as mulheres.

As Lei Furia e Voconia entraram em desuso antes do direito justiniâneo.

A Lei Falcídia(140 a.C) determinava que, seja qual fosse o montante dos legados e o número dos legatários, ao herdeiro cidadão devia sempre ser reservado ¼ da herança(quarta Falcídia).

No cômputo da quarta se considerava o ativo da herança no momento da morte do testador, excluídos os débitos e as despesas que incumbiam ao herdeiro como tal, bem como os acréscimos posteriores. Na quarta era imputada o que o herdeiro recebesse a título de herdeiro, o valor dos objetos por ele excluídos, os frutos que recolheu da coisa legada a termo ou sob condição, não, porém, os que percebeu por negligência do legatário em reclamar o legado, e, mais tarde, outras aquisições embora não fosse consideradas hereditárias, como a doação inter vivos da quarta, feita ao herdeiro.

Se o legado excedia à quarta era reduzido ipso iure e se há mais de um, todos eram reduzidos proporcionalmente.

A quarta era aplicada a todas as heranças testamentarias, salvos os legados contidos em testamento militar, ao legado de um escravo a ser libertado pelo legatário, aos legados que não diminuem a sucessão, como o legatum debiti ou o legado do dote, ao legado feito pelo marido à mulher de objetos de uso pessoal.

Distinguiam-se dois momentos na aquisição do legado: o dies certans, em que nascia o direito eventual e transmissível  em favor do legatário e o dies veniens, em que o legado era exigível e a ação competente poderia ser usada.

O dies cedens era o momento da morte do testador, o momento da abertura do testamento. O legatário adquiria a certeza da aquisição futura do legado que era transmissível ao seu herdeiro. Ela era intransmissível nos legados de usufruto e de habitação, que eram intransmissíveis.

Os legados ditos sob termo suspensivo incerto equiparavam-se aos condicionais, sendo intransmissíveis antes do termo, uma vez que sua validade dependia da sobrevivência do legatário em relação ao herdeiro. O pretor permitiu que o legatário pudesse exigir do herdeiro a cautio legatorum servandorum causa, consistente na promessa garantida por fidejussores, de executar o legado e de não se envolver em dolo; se há recusa de prestá-lo, o legatário pode apossar-se dos bens da herança.

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Para os Proculianos, pendente condicione, o objeto do legado era  reputado res nullius, ao passo que que pelos Sabinianos era considerada uma propriedade do herdeiro, posição que prevaleceu.

No direito romano, se um legado é conferido a várias pessoas e uma delas recusa a sua parte, os colegatários recolhem-na, em virtude do direito de acréscimo, desde que, em virtude das cláusulas do testamento ou de uma interpretação do pensamento do testador, tenha este concedido aos colegatários uma vocação eventual a todo o objeto legado.

Eram essas as regras firmadas pela jurisprudência romana no tocante ao acréscimo: na hipótese de que todos os legatários aceitam, se a coisa foi legada per vindicationem ou per praecptionem, os legatários se tornam dela coproprietários; se foi legada per damnationem, quando os colegatários são mencionados numa mesma fase do testamento, têm um crédito indiviso; quando em fases sucessivas, cada um tem um crédito distinto em relação à coisa.

Sempre se daria o acréscimo na hipótese de que um dos legatários recusa, nos legados translativos da propriedade(per vindicationem e per praeceptonem), sempre se dando o acréscimo pouco importando que sejam redigidos coniunctim sive disiunctim. O acréscimo ocorria portini(non personae) e sine onere, exceto no legado de usufruto; no legado per damnationem jamais se verificava o acréscimo.

As leis caducarias modificaram as regras do acréscimo, também em matéria de legados, salvo para os dispositivos pro non scriptis, para as pessoas que têm o ius antiquum e para os legados de usufruto, nos quais a consideração da pessoa era essencial, como ensinou Ebert Chamoun(obra citada, pág. 509).

O legado de usufruto subordinava-se a princípios especiais. Era controvertida a sua sujeição ás regras gerais do acréscimo, porque o usufruto era visto como um direito que se constituía dia por dia. Não comparecendo um colegatário dava-se o acréscimo em favor do outro.

Justiniano manteve o acréscimo sem indicação da parte, estabelecendo, entretanto, que, se o legado é redigido coniunctim, o acréscimo devia ser voluntário e, por isso, cum onere, e se era redigido disiunctim, o acréscimo devia ser forçado. A responsabilidade pelos onera decorre da vontade do colegatário.

O direito do legatário, se o legado é per damnationem ou sinendi modo, era um direito de crédito, sancionado pela actio ex testamento, ação de direito estrito, que, em certos casos, condenava o réu ao dobro se negasse injustamente; nos processos das ações da lei, intentava-se pela manus iniectio. Se o legado era per vindicationem, o direito engendrado era um direito real, sancionado pela reivindicação. Após o senatus-consulto Neroniano, podia-se transformar qualquer legado válido em legado per damnationem, de sorte eu o legatário poderia escolher entre a ação ex testamento e a reinvidicatio.

O herdeiro respondia por dolo ou até pela simples negligência.

Diverso do legado era o fideicomisso.

O fideicomisso era uma disposição de última vontade em virtude da qual alguém encarregava seu herdeiro legítimo ou testamentário ou o legatário(fiduciário) de fazer chegar uma coisa ao poder de um terceiro(fideicomissário).

A princípio, o fideicomisso era um simples pedido.

Os fideicomissos assim como os legados podiam ser feitos em benefício de várias pessoas, quer, no mesmo plano, quer nos planos sucessivos.

O fideicomisso se dizia de herança ou universal quando tinha por objeto a totalidade da herança ou uma fração dela. Existia, na prática, desde o século I a.C, generalizando-se no Império e decaindo no Baixo Império.

Justiniano generalizou a transmissão das ações hereditárias a todos os casos e aboliu o sistema das estipulações reciprocas, bem como a missio em favor do fideicomissário que se tonara, inútil desde que o fideicomisso gerava ação real. A  posição do fideicomissário era quase assimilada a de um herdeiro. O fideicomisso podia ser feito verbalmente ou por codicilo, ao passo que a revogação do fideicomisso não era sujeita ás formas, a instituição de herdeiro não podia submeter-se a modalidades extintivas, devido a regra semel heres semper heres, que o fideicomisso permitiu contornar; o herdeiro instituído podia, em princípio, receber, ao passo que se a adição do fiduciário é espontânea, o fideicomissário não podia receber mais do que ¾; finalmente, não ocorria a vocação hereditária para o fideicomissário, cuja aquisição mais a um legatário do que a um herdeiro; pois não se pode falar a seu respeito, de aceitação necessária, como é a do herdeiro.

A diferença entre os legados e os fideicomissos era sobretudo formal, residindo apenas no instrumento(codicilo ou testamento)  e no processo(ordinário ou extraordinário).

Essas distinções desapareceram no direito de Justiniano. Os codicilos quase eram confundidos com o testamento quando, no Baixo Império, deveriam ser feitos ao lado deste e exigem a presença de testemunhas(cinco e não sete), como ensinou Ebert Chamoun(obra citada, pág. 519), podem conter legados válidos sem ser confirmados por testamento, assim como fideicomissos. Tais legados podiam ser impostos ao herdeiro, ab intestato.

Todo o processo se torna extra ordinem.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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