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O princípio da proteção da confiança e o art. 54 da Lei nº 9.784/99

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15/07/2017 às 09:00
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Este trabalho busca firmar o instituto da decadência, manifestado no art. 54 da Lei nº 9.784/99, como instrumento de harmonização entre a potestade anulatória da Administração e a confiança legítima gerada nos administrados.

1. Introdução.

O presente trabalho objetiva defender a tese de que o princípio da confiança legítima configura obstáculo à invalidação de determinados atos, ainda que eivados de algum vício.

Nesse sentido, busca-se encontrar um elemento que harmonize a potestade anulatória do Estado e a confiança gerada nos administrados quanto à lisura dos atos estatais.

Propõe-se, nesse sentido, como tal elemento de concordância prática, o instituto da decadência, cujos traços fundamentais serão adiante abordados.

1.1. Sobre a incidência legal.

A Lei nº 9.784/99 regula o processo administrativo na seara da Administração Pública Federal. Nesse sentindo, vincularia apenas o âmbito da União e serviria apenas como mero parâmetro, indicativo, para os demais entes federativos. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça tem decidido pela aplicação subsidiária da referida lei aos Estados, Distrito Federal e Municípios, caso estes não possuam regulação própria sobre a matéria, consoante se vê do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial (AgRg no AREsp) nº 263635 / RS, cujo relator é o Ministro Herman Benjamin, julgado em 16 de maio de 2013[1], nos termos da seguinte ementa:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS. REVISÃO DE ATO ADMINISTRATIVO. DECADÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. APLICABILIDADE DO ART. 54 DA LEI 9.784/1999 POR ANALOGIA. POSSIBILIDADE. 1. O Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que mesmo os atos administrativos praticados anteriormente ao advento da Lei Federal 9.784, de 1º.2.1999, estão sujeitos ao prazo de decadência quinquenal contado da sua entrada em vigor. A partir de sua vigência, o prazo decadencial para a Administração rever seus atos é de cinco anos, nos termos do art. 54. 2. Na hipótese dos autos, a administração passou a pagar, por ato unilateral, vantagens ao servidor decorrentes de portarias emitidas nos anos de 1996 e 1998. Em 2002 a administração reviu seu ato e cancelou o pagamento da vantagem. Logo, a revisão foi feita dentro do prazo de cinco anos, a contar da data em que vigente a lei supracitada. 3. Ademais, ao contrário da tese defendida pelo agravante, a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de que a Lei 9.784/1999 pode ser aplicada de forma subsidiária no âmbito dos demais Estados-Membros e Municípios, se ausente lei própria que regule o processo administrativo local, como ocorre na espécie. [...]

Assim, na esteira do que vem decidindo o STJ, todos os entes federativos que estejam em mora quanto à elaboração de lei geral reguladora do processo administrativo deverão aplicar, de forma subsidiária, a Lei 9.784/99.

1.2. Decadência como instrumento de concordância prática entre a potestade anulatória e a proteção da confiança.

A tese é de que o princípio da proteção da confiança, a partir do qual se protege a confiança das pessoas no que tange aos atos, procedimentos e condutas do Estado, afigura-se como relevante obstáculo à invalidação dos atos administrativos, viciados ou não. Certo ainda que a preservação de tal estado de certeza em favor do administrado submete-se à presença de condicionamentos ou critérios objetivos, expressos no art. 54 da Lei nº 9.784/99.

De fato, não é todo ato administrativo viciado que merece a tutela do princípio em epígrafe. Como já explicitado, a regra é o poder-dever da Administração de anular os atos ilegais, visto que contrários ao Direito. A manutenção do ato inválido no ordenamento jurídico representa exceção.

No cotejo entre legalidade e proteção da confiança, Maffini (2005) propõe um elemento de ponderação com base no princípio da concordância prática, o qual “tem como meta coordenar, harmonizar e combinar bens constitucionais conflitantes, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros” (BULOS, 2011, p. 450). Tal elemento consiste na fixação de um prazo máximo, de natureza decadencial, para que a Administração Pública exerça seu poder de autotutela. Passado tal período de tempo, e presentes os demais requisitos, o Poder Público estaria impossibilitado de proceder à extinção do ato.

Nesse sentido, a decadência se afigura como um utilíssimo instrumento de ponderação e concordância entre legalidade e proteção à confiança, fazendo prevalecer, conforme o caso concreto, uma ou outra.

Com efeito, para que esse prazo decadencial não seja aplicado de maneira arbitrária, patrocinando meros casuísmos, e, assim, a própria insegurança jurídica[2], é necessário o emprego de critérios objetivos e predeterminados.

Tais critérios/parâmetros estão estampados no art. 54 da Lei nº 9.784/99. Para melhor análise, veja-se o conteúdo do citado artigo:

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.

§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento.

§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato. (BRASIL, 1999, sublinhado nosso)

Partindo da leitura do texto normativo, depreendem-se três condições para a implementação do prazo decadencial, quais sejam, condutas ampliativas, boa-fé do destinatário, decurso de lapso temporal.

1.2.1. Presunção de validade como “base da confiança”.

Ressalve-se, antes do mais, que os atributos dos atos administrativos não são meros privilégios conferidos à Administração Pública somente por ser o Estado atuando enquanto tal, mas verdadeiras prerrogativas necessárias ao exercício de sua função, que é eminentemente o alcance do interesse público. Assim, Mello (2011, p. 418) leciona que

A justificação dos poderes, juridicamente regulados, que assistem à Administração Pública, reside na qualidade dos interesses que lhe incumbe prover. Bem por isso, a utilização de suas prerrogativas só é legítima quando manobrada para a realização de interesses públicos e na medida em que estes sejam necessários para satisfazê-los.

No que tange à presunção de validade, não se trata propriamente de um requisito para a contagem do prazo decadencial, mas, sobretudo, de um atributo presente em todo e qualquer ato administrativo, o qual se afigura como conditio sine qua non para a existência do que se pode chamar de “confiança legítima”, ou seja, de situação merecedora da tutela do princípio da proteção da confiança. Isso porque, sem esse atributo, não haveria qualquer garantia ao administrado de que o ato do qual é destinatário estaria revestido da necessária legalidade e, desse modo, não poderia surgir uma confiança legítima, mas mera expectativa de juridicidade, derivada da boa-fé objetiva que deve haver no tratamento recíproco entre as partes de uma relação jurídica.

Dividindo esse atributo em dois pontos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2010, p. 197-198) explica que a presunção de legitimidade “diz respeito à conformidade do ato com a lei; em decorrência desse atributo, presumem-se, até prova em contrário, que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei”. Já a presunção de veracidade “diz respeito aos fatos; em decorrência desse atributo, presumem-se verdadeiros os fatos alegados pela administração”. Com efeito, fica claro que a presunção é apenas juris tantum, podendo ser elidida através de prova em contrário, a ser produzida pelo particular interessado.

Por consequência dessa presunção, enquanto o ato não for retirado do mundo jurídico, seja pelo Judiciário, seja pelo próprio poder responsável pela sua edição, continuará produzindo seus efeitos como se válido fosse, devendo ser cumprido normalmente pelo destinatário.

1.2.2. Conduta ampliativa.

Atos ampliativos são aqueles dos quais decorrem efeitos favoráveis aos seus destinatários. Fazem contraponto aos atos ablativos, do quais decorrem restrições à esfera de direitos do administrado.

Por certo, o prazo decadencial para o exercício da potestade invalidatória aqui defendido diz respeito apenas aos atos ampliativos. Isso porque, na esteira do que expõe Maffini (2005, p. 149), “não se há de admitir que a boa-fé do destinatário de um ato administrativo viciado ou que a confiança por ele depositada possam ser empregadas para a preservação de uma conduta administrativa que seja contrária aos seus interesses”.

Nesse sentido, caso o ato administrativo seja prejudicial ao destinatário, ou seja, restrinja seus direitos, não haverá que se falar em prazo decadencial, podendo a invalidação ser feita a qualquer tempo[3]. Repita-se a inexistência de prazo refere-se apenas aos atos inválidos que sejam prejudiciais ao administrado.

Não se pode olvidar, todavia, que alguns problemas poderão surgir diante do presente critério. O primeiro é que um mesmo ato pode ser, em relação ao mesmo destinatário, ampliativo e ablativo. Como exemplo, cita-se um ato administrativo em que se garanta, concomitantemente, a possibilidade de exercício de determinada atividade profissional e imponha restrições no que concerne à forma desse exercício. Outra hipótese tormentosa é a situação em que um mesmo ato administrativo tem vários destinatários, sendo benéfico em relação a uns e prejudicial em relação a outros. Ilustrando essa hipótese, Maffini (2005) exemplifica com a situação de uma seleção pública (licitação, concurso público) em que alguns destinatários gozarão de seus efeitos e outros serão preteridos.

Em relação ao primeiro caso, poderia ser solucionado através da aplicação do prazo decadencial apenas à parte do ato administrativo da qual decorra efeitos favoráveis ao destinatário, de modo que, quanto à parte da qual decorra efeitos prejudiciais, a revisão poderia ser feita a qualquer tempo. Assim, no exemplo dado, as restrições relativas ao modo de exercício profissional poderiam ser modificadas a qualquer tempo, enquanto a garantia de desempenho da atividade teria um prazo decadencial para ser revisada.

Já quanto à segunda situação, seguindo mais uma vez o que ensina Maffini (2005), a solução dependerá das providências tomadas pelo destinatário prejudicado. Nesse sentido, se os destinatários preteridos não tomarem qualquer medida ou meio de impugnação dentro do prazo conferido, e se implementadas as demais condições para a aplicação do prazo decadencial, este deverá prevalecer. Assim, no exemplo de uma licitação, se a pessoa (física ou jurídica) prejudicada não interpuser tempestivamente o recurso cabível e a Administração prosseguir regularmente com o procedimento, ultrapassado o prazo decadencial, não poderá mais ocorrer a invalidação do ato.

1.2.3. Boa-fé do destinatário.

De início, registre-se que a boa-fé é sempre presumida, tendo em vista a ressalva feita no final do caput do artigo 54 da Lei de Processo Administrativo Federal, que diz “[...] salvo comprovada má-fé”. Desse modo, eventual má-fé do destinatário deve ser comprovada pela Administração.

Pergunta-se: a quem se refere a boa-fé exigida no mencionado artigo? Com efeito, parece que a melhor resposta é a referência apenas aos destinatários, não importando o estado, se de boa-fé ou não, do agente público responsável pela elaboração do ato[4]. Isso porque não parece razoável condicionar a proteção da confiança do administrado ao estado anímico de outra pessoa. Ora, se o agente público deliberadamente agiu de má-fé, o administrado, em geral, não teria como saber, especialmente porque, na maioria dos casos, é desconhecedor dos trâmites burocráticos relativos ao trato da coisa pública. Assim, não se justificaria que sofresse as consequências advindas de situação como a proposta.

Nesse sentido, até mesmo o princípio da moralidade, eventualmente violado por servidor público, deveria ser também ponderado com a proteção da confiança. Com a devida vênia a quem pensa em contrário, parece ser este o entendimento mais razoável.

Por último, pergunta-se: no que consiste a boa-fé exigida pelo preceito legal? Celso Antônio Bandeira de Mello (1997, p. 34) responde da seguinte maneira:

O que é, pois, agir de boa fé? É agir sem malícia, sem intenção de fraudar a outrem. É atuar na suposição de que a conduta tomada é correta, é permitida ou devida nas circunstâncias em que ocorre. É, então, o oposto da atuação de má fé, a qual se caracteriza como o comportamento consciente e deliberado produzido com o intento de captar uma vantagem indevida (que pode ou não ser ilícita) ou de causar a alguém um detrimento, um gravame, um prejuízo, injustos.

Assim, pode-se dizer que a boa-fé desejada pelo legislador é a não atribuição ao destinatário do fato causador da invalidade, ou seja, o destinatário não ter dado motivo ou contribuído para o vício do ato. Nessa linha, se a causa do vício do qual é eivado o ato administrativo não puder ser imputada ao seu beneficiário, estará atendido o requisito exigido no caput do art. 54.

No mesmo sentido, Couto e Silva aduz que

A boa fé, a que alude o preceito, quer significar que o destinatário não tenha contribuído, com sua conduta, para a prática do ato administrativo ilegal. A doutrina alemã, neste ponto, fala numa <<área de responsabilidade>> [...] do destinatário. Seria incoerente proteger a confiança de alguém que, intencionalmente, mediante dolo, coação ou suborno, ou mesmo por haver fornecido dados importantes falsos, inexatos ou incompletos, determinou ou influiu na edição de ato administrativo em seu próprio benefício. (2004, p. 66)

Sem dúvidas, provar eventual má-fé do destinatário é tarefa difícil, razão pela qual, para não se desviar a arbitrariedades ou juízos meramente subjetivos, baseados no “achismo” do magistrado, a Administração deve mostrar, de forma objetiva, que o beneficiário participou da ilegalidade perpetrada, ou se locupletou conscientemente dela, contribuindo, dessa maneira, para a mácula do ato administrativo.

1.2.4. Decurso de lapso temporal.

Este último requisito é talvez o mais importante para a aplicação do prazo decadencial. O transcorrer de considerável período de tempo gera no destinatário do ato a confiança de que o mesmo foi elaborado regularmente e, dessa maneira, não deverá mais haver qualquer alteração, razão pela qual poderá planejar os próximos passos da vida na segurança da inalterabilidade.

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Com base no art. 54 da Lei nº 9.784/99, esse prazo é de cinco anos, contados a partir da data em que o ato foi praticado (caput) ou da percepção do primeiro pagamento, no caso de efeitos patrimoniais contínuos (§1º). Trata-se, pois de um lapso de tempo razoável, já que é prazo suficiente para que a Administração possa revê-lo, caso seja necessário, sem também sujeitar o administrado a excessiva espera. Estender o prazo além dos cinco anos seria incorrer em desproporcionalidade, tendo em vista ser bastante gravoso ao administrado aguardar demasiadamente por um estado definitivo, não podendo, pela incerteza, planejar novos passos na vida profissional ou pessoal.

Exemplo de prazo abusivo é aquele previsto pela Lei 8.213/91, em seu art. 103-A[5], que traz norma específica a ser aplicada no âmbito da Previdência Social. Isso porque o prazo de dez anos gera no beneficiário a sensação de insegurança e provisoriedade, o que é estranho ao Estado de Direito. Além disso, a irrazoabilidade fica ainda mais patente quando se pensa em quem são os seus destinatários, geralmente pessoas de idade avançada, as quais necessitam de segurança e tranquilidade para transcorrer o restante de seus anos.

Nesse sentido, o prazo decadencial de cinco anos funciona como verdadeiro “divisor de águas” para a atuação da Administração. Antes de transcorrido esse período, o Poder Público tem não só o poder (autotutela), mas o dever de anular os atos administrativos ofensores da legalidade. Por outro lado, passados os cinco anos, a Administração decai de sua potestade anulatória, privilegiando-se nesse caso, a confiança depositada pelo administrado, o que valoriza, como defendido, o próprio princípio do Estado de Direito.

Corroborando o entendimento até então defendido, transcreve-se parte da ementa de julgado da Quinta Turma do STJ, no Recurso Ordinário em Mandado de Segurança (RMS) nº 24339 / TO, relatado pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, com julgamento em 17 de novembro de 2008:

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. ENQUADRAMENTO DE PROFESSORA DO ESTADO DE TOCANTINS, COM BASE EM ASCENSÃO FUNCIONAL. LEI ESTADUAL DE TOCANTINS 351/92, POSTERIORMENTE REVOGADA. NORMA INCONSTITUCIONAL. ATO PRATICADO SOB OS AUSPÍCIOS DO ENTÃO VIGENTE ESTATUTO DO MAGISTÉRIO DO ESTADO DE TOCANTINS. PREPONDERÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA RAZOABILIDADE. CONVALIDAÇÃO DOS EFEITOS JURÍDICOS. SERVIDORA QUE JÁ SE ENCONTRA APOSENTADA. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

1.   O poder-dever da Administração de invalidar seus próprios atos encontra limite temporal no princípio da segurança jurídica, pela evidente razão de que os administrados não podem ficar indefinidamente sujeitos à instabilidade originada do poder de autotutela do Estado, e na convalidação dos efeitos produzidos, quando, em razão de suas consequências jurídicas, a manutenção do ato atenderá mais ao interesse público do que sua invalidação.

2.   A infringência à legalidade por um ato administrativo, sob o ponto de vista abstrato, sempre será prejudicial ao interesse público; por outro lado, quando analisada em face das circunstâncias do caso concreto, nem sempre sua anulação será a melhor solução. Em face da dinâmica das relações jurídicas sociais, haverá casos em que o próprio interesse da coletividade será melhor atendido com a subsistência do ato nascido de forma irregular.

3.   O poder da Administração, destarte, não é absoluto, de forma que a recomposição da ordem jurídica violada está condicionada primordialmente ao interesse público. O decurso do tempo ou a convalidação dos efeitos jurídicos, em certos casos, é capaz de tornar a anulação de um ato ilegal claramente prejudicial ao interesse público, finalidade precípua da atividade exercida pela Administração.

4.   O art. 54 da Lei 9.784/99 funda-se na importância da segurança jurídica no domínio do Direito Público, estipulando o prazo decadencial de 5 anos para a revisão dos atos administrativos viciosos (sejam eles nulos ou anuláveis) e permitindo, a contrario sensu, a manutenção da eficácia dos mesmos, após o transcurso do interregno quinquenal, mediante a convalidação ex ope temporis, que tem aplicação excepcional a situações típicas e extremas, assim consideradas aquelas em que avulta grave lesão a direito subjetivo, sendo o seu titular isento de responsabilidade pelo ato eivado de vício.

5.   Cumprir a lei nem que o mundo pereça é uma atitude que não tem mais o abono da Ciência Jurídica, neste tempo em que o espírito da justiça se apoia nos direitos fundamentais da pessoa humana, apontando que a razoabilidade é a medida sempre preferível para se mensurar o acerto ou desacerto de uma solução jurídica. [...] (BRASIL, 2008)

1.2.4.1. Aplicação do prazo decadencial e os atos editados antes da Lei nº 9.784/99.

Trata-se de problemática acerca dos atos administrativos elaborados antes de 29 de janeiro de 1999, data em que se iniciou a vigência da referida lei. Há duas posições principais sobre a matéria: a) posição do STJ: a contagem do prazo decadencial se iniciaria a partir da vigência da Lei nº 9.784/99; b) o prazo é contado normalmente a partir da edição do ato.

Quanto ao primeiro posicionamento, a orientação majoritária do STJ[6] é de que não se pode conferir efeitos retroativos à Lei nº 9.784/99. Assim, mesmo que o ato tenha sido praticado muitos anos antes da citada lei, o início da contagem do prazo decadencial para que a Administração exerça seu poder de invalidação será em 29 de janeiro de 1999, começo da sua vigência[7].

Defendendo a segunda posição, Almiro do Couto e Silva (2004) argumenta que, embora a aplicação das leis vise ao futuro, a adoção de prazo decadencial mesmo antes da edição da lei federal de processo administrativo deriva diretamente do princípio constitucional da segurança jurídica. Nesse sentido, afirma que, se inexistisse a segurança jurídica como princípio constitucional, não seria defensável, em face do princípio da legalidade, a constitucionalidade do art. 54 da Lei nº 9.784/99. O autor menciona o seguinte exemplo:

Na aplicação, porém, do princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) e não da regra decadencial, há situações que praticamente impõem a manutenção do status quo [...] – com o afastamento, portanto, do princípio da legalidade – como aquelas, por exemplo, que envolvem proventos de aposentadoria ou pensões, em que a anulação, ainda que só com eficácia ex nunc, implicaria grave modificação das condições de vida dos beneficiários que confiaram em que as vantagens seriam mantidas. (COUTO E SILVA, 2004, p. 71)

Destarte, em respeito ao princípio da segurança jurídica (mais especificamente na sua vertente subjetiva, o princípio da proteção da confiança), parece mais razoável a segunda posição defendida, segundo a qual o prazo decadencial derivaria diretamente do princípio da segurança jurídica, independendo, desse modo, de positivação; todavia, é pacífico o entendimento contrário do STJ sobre a matéria.

1.3. O art. 54 da Lei nº 9.784/99 e as ressalvas dos seus parágrafos 1º e 2º.

Em seu § 1º, o art. 54 da Lei 9.784/99 aduz que, “no caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento”. Consideram-se efeitos patrimoniais contínuos aqueles que se protraem no tempo, como os benefícios previdenciários[8].

Por essa razão, enquanto não percebido o primeiro pagamento pelo beneficiário, não há problema que se falar em início da contagem do prazo decadencial, entendimento que é reforçado pela jurisprudência do STJ[9].

Relevante questão surge no caso de o pagamento da primeira prestação ser atrasado por inércia da Administração. Nesse caso, poderia o destinatário arcar com as consequências da mora administrativa? A Primeira Seção do STJ, no MS nº 15432 / DF, decidiu que o inadimplemento da primeira prestação por inércia do Poder Público conduz à aplicação do caput do art. 54, consoante trecho da ementa abaixo transcrito:

3. A regra prevista no parágrafo primeiro do art. 54 da Lei 9.784/99, no sentido de que, no caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da percepção do primeiro pagamento, pressupõe que esse pagamento tenha sido efetuado no tempo devido. Em se tratando de anistia política, o art. 18 da Lei 10.559/02 determina o prazo de 60 dias para que os pagamentos sejam efetuados. 4. No caso dos autos, não obstante o impetrante tenha sido declarado anistiado político em 2002, até a presente data o benefício da prestação mensal continuada não foi implementado. Dessa forma, a inércia da Administração em iniciar os pagamentos devidos ao impetrante não pode resultar na postergação do termo inicial do prazo de decadência previsto no art. 54 da Lei 9.784/99.

Assim, a contagem do prazo decadencial a partir do pagamento da primeira prestação pressupõe que este tenha sido feito no prazo devido. Caso contrário, o termo inicial passa a ser aquele previsto no caput do art. 54 da lei 9784/99.

Já no § 2º, a lei prescreve que se considera “exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato”.

Com efeito, o próprio art. 1º, §2º, III, da lei em análise, conceitua o termo “autoridade” como “o servidor ou agente público dotado de poder de decisão”.

Nesse sentido, Almiro do Couto e Silva (2004, p. 69) assim preleciona:

Portanto, só ato de quem esteja investido do poder de decidir sobre a anulação do ato administrativo em causa é que impede que se opere a decadência, seja ela a própria autoridade que exarou o ato administrativo, seja autoridade hierarquicamente superior ou a quem tenha sido legalmente atribuída competência para revisar, em função de controle, a legalidade do ato administrativo. Desse modo, opiniões manifestadas em atos preparatórios, como pareceres e informações, não têm o condão de atingir esse resultado, a menos que aprovados por autoridade, no sentido que acabamos de expor.

Corroborando o entendimento supra, a Primeira Seção do STJ, no MS nº 19621 / DF[10], decidiu que o termo “autoridade administrativa” não deve ser empregado a todo e qualquer agente público, sob o risco de tornar inaplicável a regra geral contida no caput, mas apenas aos agentes públicos competentes para realizar as medidas concretas de impugnação à validade do ato, conforme se vê do seguinte excerto da ementa:

5.   Tratando-se de prazo decadencial, não há que se falar em suspensão ou interrupção do prazo. Entretanto, a Lei 9.784/99 adotou um critério amplo para a configuração do exercício da autotutela, bastando uma medida de autoridade que implique impugnação do ato (art. 54, § 2o.).

6.   O art. 1º, § 2º, III da mesma lei, define autoridade como sendo o servidor ou agente público dotado de poder de decisão.

7.   Dessa forma, a impugnação que se consubstancia como exercício do dever de apurar os atos administrativos deve ser aquela realizada pela autoridade com poder de decidir sobre a anulação do ato. Além disso, somente os procedimentos que importem impugnação formal e direta à validade do ato, assegurando ao interessado o exercício da ampla defesa e do contraditório, é que afastam a configuração da inércia da Administração.

8. O § 2o. do art. 54 da Lei 9.784/99 deve ser interpretado em consonância com a regra geral prevista no caput, sob pena de tornar inócuo o limite temporal mitigador do poder-dever da Administração de anular seus atos, motivo pelo qual não se deve admitir que os atos preparatórios para a instauração do processo de anulação do ato administrativo sejam considerados como exercício do direito de autotutela.

Destarte, medidas genéricas ou meramente preparatórias não se prestam a interromper a fluência do prazo decadencial a favor do destinatário do ato, sendo de verificar-se quando a prática errônea da Administração foi efetivamente combatida, a critério de expressa manifestação do agente público com poderes para tanto.

1.4. Da decadência frente aos atos administrativos inconstitucionais.

Como explanado, em caso de ilegalidade, há chance de o ato ser mantido no ordenamento jurídico, desde que transcorrido o prazo decadencial e presentes os demais requisitos apontados pela lei.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal tem decidido que o transcurso de prazo decadencial não deve consolidar situações flagrantemente inconstitucionais, ou seja, atos que ofendam diretamente a Constituição. Nesse sentido, no caso de provimento em serviços notariais e de registros sem concurso público, após a Constituição de 1988, o Supremo afastou a aplicação do prazo decadencial previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, consoante se vê da ementa do Agravo Regimental em Mandado de Segurança nº 28273 / DF[11], julgado em 13 de dezembro de 2012:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. PROCEDIMENTO DE CONTROLE ADMINISTRATIVO. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. AFASTAMENTO DE TITULARES DE SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS DA ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO SEM CONCURSO PÚBLICO, MEDIANTE DESIGNAÇÃO OCORRIDA APÓS O ADVENTO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. LEGALIDADE. CONCURSO PÚBLICO. EXIGÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO. I – O Supremo Tribunal Federal sempre se pronunciou no sentido de que, sob a égide da Constituição de 1988, é inconstitucional qualquer forma de provimento dos serviços notariais e de registro que não por concurso público; II – Não há direito adquirido à efetivação em serventia vaga sob a égide da Constituição de 1988; III – O exame da investidura na titularidade de cartório sem concurso público não está sujeito ao prazo previsto no art. 54 da Lei 9.784/1999, por se tratar de ato manifestamente inconstitucional. IV – Agravo regimental a que se nega provimento.

Na mesma linha, seguindo o escólio do STF, também tem se posicionado o STJ, nos termos da ementa do Mandado de Segurança nº 18606 / DF, julgado em 10 de abril de 2013, com o seguinte registro: “não se olvida que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que situações flagrantemente inconstitucionais não devem ser consolidadas pelo simples transcurso do prazo decadencial previsto no art. 54 da Lei 9.784/99”.

Com efeito, tal entendimento se justifica pela grave afronta à Constituição, cuja manutenção significaria a subversão de seus preceitos e de sua supremacia. Desse modo, manifesta inconstitucionalidade não poderia ser superada por simples preceito legal, sob o risco de inversão do próprio ordenamento jurídico pátrio, em que uma lei ordinária (Lei nº 9.784/99) teria o poder de superar eventual inconstitucionalidade. Tal fato seria inconcebível dentro do sistema legal adotado no Brasil, em que a Constituição se encontra em patamar hierárquico superior.

1.5. Concreta aplicabilidade dos limites à revisão em face de atos administrativos sujeitos a registro pelos Tribunais de Contas.

Caso recorrente nos tribunais brasileiros[12] é a revisão de aposentadorias ou pensões realizada pela Administração. Em geral, após muitos anos, o agente público percebe que alguma vantagem ou forma de cálculo foi aplicada ilegalmente ao beneficiário, motivo pelo qual busca reformar o ato, no intuito de adequá-lo aos comandos da lei.

Como já vem sendo afirmado, a regra, em casos como esse, é o dever de a Administração revisar o ato, em obediência aos princípios da legalidade e do interesse público. A dificuldade surge quando o destinatário é surpreendido após dez, quinze ou vinte anos da concessão da aposentadoria com uma simples comunicação de revisão, para menos, do valor dos proventos.

A justificativa alegada pela Administração é de que a concessão de aposentadorias e pensões é ato complexo, razão pela qual só se aperfeiçoaria após o registro feito pelo Tribunal de Contas competente. Desse modo, somente após esse registro é que o prazo decadencial passaria a transcorrer.

Nesse contexto, é lógico que o aposentado ou pensionista já elaborou seu planejamento financeiro confiando na imutabilidade e na certeza do ato, ou seja, programou despesas e gastos, estabilizou-se em determinado padrão de vida, conforme os proventos que vinha recebendo durante todos os anos anteriores. Diante do fato exposto, pergunta-se: como preservar a segurança jurídica e a confiança gerada no administrado nesse caso? Tendo em vista que um dos aspectos tutelados pelo princípio da proteção da confiança é a manutenção de situações estáveis, poderia o destinatário ficar sujeito por período excessivamente longo à lentidão da máquina administrativa?

Procurar-se-á refletir sobre tais questionamentos nos próximos tópicos.

1.5.1. Do controle de legalidade exercido pelos Tribunais de Contas.

Posto na Constituição como órgão exercente de função auxiliar no controle externo feito sobre as operações contábeis, financeiras e orçamentárias dos demais entes integrantes da Administração Pública direta e indireta, função que está diretamente a cargo, no plano federal, do Congresso Nacional e que, pelo princípio da simetria, é exercida pelo Poder Legislativo dos demais entes federados[13], os Tribunais de Contas tem a missão de apreciar a validade dos atos de concessão de aposentadorias, reformas (no caso de militares), e pensões, nos termos do art. 71, III, da Constituição da República Federativa do Brasil, abaixo transcrito:

Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: [...]

III - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório;

Tal apreciação consiste na verificação, sem caráter jurisdicional, da adequação desses atos administrativos aos parâmetros exigidos pela lei, verificando a existências dos pressupostos de fato e de direito necessários à formação do ato.

Nesse contexto, deve o Tribunal analisar a validade dos atos administrativos e transmitir suas decisões ao ente fiscalizado, com o escopo de adaptação ao ordenamento jurídico. Assim,

ao proceder ao controle da legalidade, compete ao Tribunal de Contas apenas constatar se aquele procedimento adequou-se à norma. Não lhe compete alterar o ato concessório sujeito a registro; não lhe compete ordenar cancelamento de pagamentos, ou alterá-los; não lhe compete editar outro ato em substituição ao emanado do controle interno. Cabe-lhe apenas, ao constatar ilegalidade, ordenar à autoridade competente que tome as devidas providências para regularização da matéria, inclusive com comunicação ao Ministério Público, caso necessário, ou, ainda, o que se tornou prática das mais salutares ao aprimoramento dos procedimentos administrativos, recomendar ao administrador como proceder em face da norma dispositiva. (BUSQUETS, p. 12)

1.5.2. Do entendimento jurisprudencial sobre a matéria.

Conforme dito, a Administração tem justificado a possibilidade de revisão tardia de atos de concessão de aposentadoria ou pensão pelo fato de estes serem considerados atos complexos, ou seja, de só se fazerem perfeitos e acabados após a apreciação de sua legalidade pelo Tribunal de Contas competente.

Tal entendimento tem sido corroborado por julgados do Supremo Tribunal Federal, entendendo que o prazo quinquenal previsto no art. 54 da Lei nº 9.784/99, tratando-se de atos de concessão de aposentadoria ou pensão, só começa a transcorrer após a publicação na imprensa oficial do registro efetuado pelos Tribunais de Contas. Essa dicção é reforçada no Mandado de Segurança (MS) nº 24781 / DF, julgado em 02 de março de 2011, de cuja ementa se extrai o seguinte excerto:

I – Nos termos dos precedentes firmados pelo Plenário desta Corte, não se opera a decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/99 no período compreendido entre o ato administrativo concessivo de aposentadoria ou pensão e o posterior julgamento de sua legalidade e registro pelo Tribunal de Contas da União – que consubstancia o exercício da competência constitucional de controle externo (art. 71, III, CF). II – A recente jurisprudência consolidada do STF passou a se manifestar no sentido de exigir que o TCU assegure a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassar o prazo de cinco anos, sob pena de ofensa ao princípio da confiança – face subjetiva do princípio da segurança jurídica.

 Ademais, como se percebe do trecho acima reproduzido, no intuito de preservar a segurança jurídica, em caso de o controle externo de legalidade ultrapassar o prazo de cinco anos, deve ser oportunizado ao interessado o exercício do contraditório e da ampla defesa. Tal ressalva é feita em razão do que expõe a Súmula Vinculante nº 03, cujo teor segue ad litteram:

Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

Assim, o STF pacificou a tese do não cabimento de contraditório e ampla defesa no que concerne à reforma de ato de concessão inicial de aposentadoria e pensão no âmbito do Tribunal de Contas da União. Entretanto, posteriormente à elaboração da Súmula Vinculante nº 03, passou a fazer essa ressalva, no caso de transcurso de tempo superior a cinco anos.

Também o Superior Tribunal de Justiça, majoritariamente, partilha do entendimento de que é complexo o ato de concessão de aposentadoria ou pensão, consoante consigna o acórdão do Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial (AgRg no EREsp) nº 1143366 / PR, julgado em 1º de fevereiro de 2013, de cuja ementa extrai-se o trecho abaixo:

1. O acórdão embargado, em consonância com a jurisprudência predominante neste Superior Tribunal de Justiça, consignou o entendimento de que "a aposentadoria do servidor público, por ser ato administrativo complexo, só se perfaz com a sua confirmação pelo respectivo Tribunal de Contas, iniciando-se, então, o prazo decadencial para a Administração rever a concessão do benefício."

Visto o panorama do entendimento partilhado pelo STF e pelo STJ, passa-se ao comentário que se reputa pertinente para a avaliação das decisões firmadas por tais Cortes Superiores do País.

1.5.3. Classificação: atos complexos ou compostos?

De saída, lembrando-se da abordagem já feita quanto à composição da vontade produtora do ato, torna-se a asseverar que o ato administrativo composto é o que resulta da vontade única de um órgão, mas depende da confirmação por outro para se tornar exequível, enquanto o ato administrativo complexo é formado pela conjugação de vontades independentes de órgãos diversos.

A partir dessa simples diferenciação, defende-se que o ato de concessão de aposentadoria ou pensão não deve ser considerado complexo, visto que a Administração, já na prática do ato, implementa todas as condições necessárias para o seu aperfeiçoamento, sendo de considerar-se que o ato existe e surtirá efeitos desde a sua edição pela Administração Pública.

Com efeito, os Tribunais de Contas exercem apenas um controle de legalidade/validade. Nesse contexto, depreende-se que o ato já existe. Conforme alhures consignado, seguindo as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello, “para que se possa predicar validade ou invalidade de uma norma – relembre-se que, para Kelsen, um ato administrativo será uma norma individual – cumpre, antes, que ela exista” (2011, p. 387). Ora, se já existe é porque já obteve todas as condições necessárias para o seu aperfeiçoamento, dependendo apenas de controle de legalidade, ou confirmação, como é típico dos atos compostos.

Junte-se a isso o fato de que tais atos já produzem todos os seus efeitos desde a sua expedição e publicação, independentemente de registro pelos Tribunais de Contas, o que só ocorre em etapa posterior, normalmente anos depois.

Destarte, entende-se que os atos sujeitos a registro pelos Tribunais de Contas são autônomos em relação à posterior análise pela Corte de Contas, de modo que existem duas manifestações perfeitamente independentes, sendo o ato propriamente dito e o registro decorrente desse ato, o que é incompatível com o enquadramento como ato administrativo complexo (Maffini, 2005).

Robustecendo a linha de pensamento versada, Di Pietro ensina que                                                                                                                          

ato composto é o que resulta da manifestação de dois ou mais órgãos, em que a vontade de um é instrumental em relação a de outro, que edita o ato principal. Enquanto no ato complexo fundem-se vontades para praticar um ato só, no ato composto praticam-se dois atos, um principal e outro acessório. (2010, p. 222)

Em arremate, com a devida vênia e respeito, discorda-se do posicionamento majoritário até então adotado pelos egrégios Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça no tratamento da matéria objeto da presente reflexão, até por se entender que tal sistemática de julgamentos se mostra atentatória aos princípios vitais dos quais se vem dando incisiva nota.

1.5.4. Considerações finais.

Tendo em vista a adoção do entendimento de que, na realidade, o ato de concessão de aposentadoria ou pensão não é ato complexo, mas composto, o prazo decadencial deve se iniciar a partir da percepção do primeiro pagamento (art. 54, §1º, Lei 9.784/99).

Assim, compreende-se que o registro do ato de concessão de aposentadoria pelos Tribunais de Contas não equivale a uma condição suspensiva da fluência do prazo decadencial, mas a ato administrativo autônomo, acessório e complementar, cuja função é específica, sendo a de analisar a legalidade da edição do primeiro ato, o que é corroborado pelo fato de que a concessão, em si, da aposentadoria pela Administração produz efeito desde sua expedição e publicação.

Ressalte-se, ainda, que outros efeitos, no caso do ato de concessão de aposentadoria de servidor, também são produzidos, como o afastamento da atividade, a percepção de proventos e a vacância do cargo[14]. Tais efeitos expressam a vontade emanada de apenas um órgão.

Nesse sentido[15], veja-se a ementa do Recurso Especial nº 1047524 / SC, relatado pelo Min. Jorge Mussi, julgado em junho de 2009:

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. APOSENTADORIA. CONTAGEM DE TEMPO. IRREGULARIDADE APURADA PELO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. REVISÃO DO ATO. PRAZO DECADENCIAL. ART. 54 DA LEI N. 9.784/99. TERMO INICIAL.

1. A aposentadoria de servidor público não é ato complexo, pois não se conjugam as vontades da Administração e do Tribunal de Contas para concede-la. São atos distintos e praticados no manejo de competências igualmente diversas, na medida em que a primeira concede e o segundo controla sua legalidade.

2. O art. 54 da Lei n. 9.784/99 vem a consolidar o princípio da segurança jurídica dentro do processo administrativo, tendo por precípua finalidade a obtenção de um estado de coisas que enseje estabilidade e previsibilidade dos atos.

3. Não é viável a afirmativa de que o termo inicial para a incidência do art. 54 da Lei n. 9.784/99 é a conclusão do ato de aposentadoria, após a manifestação dos Tribunal de Contas, pois o período que permeia a primeira concessão pela Administração e a conclusão do controle de legalidade deve observar os princípios constitucionais da Eficiência e da Proteção da Confiança Legítima, bem como a garantia de duração razoável do processo.

4. Recurso especial improvido.

Discorrendo sobre a supracitada decisão, Busquets (p. 7-8) aduz que a mesma partiu das seguintes premissas:

1) Não há na concessão de aposentadoria conjugação de vontades para a formação de ato único, mas de duas vontades independentes e autônomas; 2) Administração e

Tribunal de Contas manejam, no caso, competências diversas: a primeira de concessão e a segunda de controle; 3) Não há admitir que entre a edição do ato e o registro pelo Tribunal de Contas — prazo que pode, eventualmente, durar anos — sejam colocados em cheque os princípios da eficiência, proteção da confiança legítima, bem como a garantia de duração razoável do processo.

Na prática, na hipótese eventual de ocorrer excessiva demora no exercício do controle de legalidade pelos Tribunais de Contas, o beneficiário não pode prescindir da estabilidade que é gerada em si com o decurso do tempo. Ora, o Poder Público é que deve arcar com as consequências da própria lentidão.

Desse modo, conclui-se ser mais razoável o entendimento de que os atos em reflexão classificam-se como compostos, com as consequências que daí advirão, já que o registro pelos Tribunais de Contas consiste em mero ato acessório. Além disso, tal ideia confere maior eficácia ao princípio da proteção da confiança legítima gerada nos administrado, coadunando-se, assim, com a boa-fé, a segurança jurídica e o Estado de Direito.

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Sobre o autor
Paulo Henrique Sá Costa

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente exerce o cargo de Procurador do Estado do Piauí.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Paulo Henrique Sá. O princípio da proteção da confiança e o art. 54 da Lei nº 9.784/99. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5127, 15 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58798. Acesso em: 22 dez. 2024.

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