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Crime de dano contra o patrimônio do Distrito Federal

05/11/2004 às 00:00
Leia nesta página:

Suponha-se que um cidadão é preso por destruir dolosamente um bem de propriedade do Distrito Federal. Terá ele praticado o crime de dano simples ou dano qualificado?

A resposta a essa indagação merece algumas considerações.

O Crime de dano simples está assim definido no caput do art. 163 do Código Penal: "destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia: pena – detenção, de um a seis meses, ou multa".

Já as modalidades de dano qualificado, cuja pena é de detenção de seis meses a três anos e multa, estão elencadas nos quatro incisos do parágrafo único do citado dispositivo. O inciso III prevê a qualificadora quando o crime for cometido: "contra o patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista".

Como se vê, para a existência do dano qualificado de que trata o inciso III, o objeto material do delito deve pertencer à União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista. Observe-se que tal dispositivo não se refere ao patrimônio do Distrito Federal.

Diante dessa omissão e considerando que é lição de boa hermenêutica interpretar as leis sem desprezar quaisquer palavras ou expressões, pois tudo o que está no texto legal abriga um conteúdo jurídico que delineia, norteia ou limita a aplicação da norma, surgem três hipóteses para a resolução da questão em análise:

1ª) o Distrito Federal é considerado Estado e o dano é qualificado;

2ª) o Distrito Federal pode ser equiparado a Estado para fins penais e o dano é qualificado;

3ª) o Distrito Federal não é considerado Estado e o dano contra o seu patrimônio deve ser tipificado como dano simples.

Vejamos a primeira hipótese:

A Constituição Federal, no caput do seu art. 1º, dispõe que: "a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamento: (...)".

Assim, a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (art. 18- CF). Estas são as entidades que integram a estrutura federativa brasileira, ou seja, os componentes do nosso Estado Federal.

Mais adiante, no Capitulo III, ao tratar dos Estados Federados, o art. 25 reza que: "os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição".

Já o Distrito Federal tem a sua natureza jurídica definida no art. 32, nos seguintes termos:

"Art. 32 – O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição.

§ 1º. Ao Distrito Federal são atribuídas as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios.

§ 2º. A eleição do Governador e do Vice-Governador, observadas as regras do art. 77, e dos Deputados Distritais coincidirá com a dos Governadores e Deputados Estaduais, para mandato de igual duração.

§ 3º. Aos Deputados Distritais e à Câmara Legislativa aplica-se o disposto no art. 27.

§ 4º. Lei federal disporá sobre a utilização, pelo Governo do Distrito Federal, das polícias civil e militar e do corpo de bombeiros militar."

Quanto aos bens do Distrito Federal, prevê o § 3º do art. 16 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: "incluem-se entre os bens do Distrito Federal aqueles que lhe vierem a ser atribuídos pela União na forma da lei".

Por sua vez, a Lei Orgânica do Distrito Federal, no Capítulo VIII, arts. 46 usque 52 trata dos bens do Distrito Federal.

Ainda, no campo constitucional, o art. 23 refere-se à competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e Municípios para legislar em determinadas matérias; assim como o art. 24 trata da competência legislativa concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal.

Como se observa, em nenhum momento o legislador constituinte deixou de referir-se à União, Estados, Distrito Federal e Municípios como componentes da República Federativa do Brasil.

Ao contrário dos Estados, é da competência exclusiva da União organizar e manter o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública, as Polícias Civil e Militar e o Corpo de Bombeiros Militar do Distrito Federal, consoante o estabelecido no art. 21, incisos XIII e XIV da Constituição Federal.

Como se observa, o Distrito Federal não é Estado na acepção jurídica da palavra. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal definiu o Distrito Federal como: "(...) entidade integrante da Federação brasileira" (STF, RDA, 197/215).

Vejamos a autorizada doutrina de José Afonso da Silva: "A Constituição, nos arts. 1º e 18 incluiu o Distrito Federal como um dos componentes da República Federativa do Brasil, considerado sempre como unidade federada ou unidade da Federação, onde essas expressões foram usadas. Não é Estado. Não é Município. Em certo aspecto, é mais do que o Estado, porque lhe cabem competências legislativas e tributárias reservadas aos Estados e Municípios (art. 32, § 1º e 147). Sob outros aspectos, é menos do que os Estados, porque algumas de suas instituições fundamentais são tuteladas pela União (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e Polícia). É nele que se situa a Capital Federal (Brasília). Tem, pois, como função primeira servir de sede ao governo federal. Agora, goza de autonomia político-constitucional, logo não pode mais ser considerado simples autarquia territorial, como o entendíamos no regime constitucional anterior. Parece que basta concebê-lo como uma unidade federada com autonomia parcialmente tutelada" (Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 545).

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Dessarte, claro está que o Distrito Federal é um ente federado próprio, não sendo, portanto, considerado Estado.

Vencida essa questão, passemos para o exame da segunda hipótese:

O art. 1º do Código Penal e o Art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal tratam do princípio da legalidade ou da reserva legal, grafados nos mesmos termos. Esses dispositivos prevêem que: "não há crime sem anterior lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal." Assim, só a lei tem o poder de declarar o que é crime ou não.

Este princípio, pedra angular do Direito Penal nos regimes democráticos, e calçado na expressão latina "nullum crimem, nulla poena sine lege", implica o reconhecimento de que qualquer conduta, por mais imoral ou danosa que seja, caso não esteja expressamente definida pela lei como infração penal, não será como tal reconhecida e seu agente não poderá pela mesma ser apenado.

Desse modo, nenhum comportamento humano pode ser considerado crime sem que uma lei anterior à sua prática o defina como tal. Cabe aqui observar que a lei penal deve ser regularmente votada pelo Congresso Nacional, por intermédio de procedimento estabelecido na Constituição Federal, excluindo-se as medidas provisórias, decretos, resoluções, portarias etc.

Deve a lei penal, por força da determinação taxativa, que é um dos corolários do princípio da legalidade, definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida.

O cidadão só poderá sofrer a pena se cometeu uma conduta que se amolde perfeitamente na descrição do tipo penal. Assim, quando a lei não define de forma clara, certa e precisa o crime cometido, o fato é atípico.

Portanto, para o caso aqui em exame, o Distrito Federal não pode ser equiparado a Estado.

Vejamos a terceira e última hipótese:

Poderia ser aplicada a analogia para enquadrar o dano contra o patrimônio do Distrito Federal na qualificadora do art. 163, parágrafo único, inciso III (2ª figura - Estado) do Código Penal?

A resposta é não, eis que, com relação às normas penais incriminadoras, não se admite a analogia. Não pode a analogia criar figura delitiva não prevista expressamente, ou pena que o legislador não haja determinado. Diz bem Damásio de Jesus: "É proibida, pois, a analogia in malam partem. Isto significa que o juiz não pode lançar mão do suplemento analógico para admitir infração que não esteja expressamente definida em lei" (Direito Penal, São Paulo, Saraiva, 2003, v. 1, p. 46).

No mesmo sentido:

"O tipo, que é sempre de garantias, a partir do princípio da reserva legal, não pode ser distendido, ao gosto do intérprete, para cobrir hipóteses nele não contidas" (TACrimSP, Rec. Rel. Régio Barbosa, R, 669:330).

"O princípio da legalidade, viga mestra do Direito Penal, não admitindo interpretações, impõe precisos balizamentos em matéria de aplicação de pena" (STJ-RHC 950056731-8/MG. Rel. Vicente Leal, j. 12.1.96).

"(...) é inadmissível em Direito Penal a analogia in malam partem" (STJ, RE 1994/0029104-3. Rel. Min. Edson Vidigal).

Portanto, não sendo possível enquadrar o dano contra o patrimônio do Distrito Federal como dano qualificado, deve sê-lo como dano simples, previsto no caput do art. 163 do Código Penal.

Conclusão. Em síntese, pode-se responder às três hipóteses iniciais dizendo-se que:

1ª) o Distrito Federal e um ente integrante da Federação brasileira com autonomia parcialmente tutelada, portanto, não é Estado e não é Município;

2ª) in casu, o Distrito Federal não pode ser equiparado a Estado em face do princípio da legalidade ou da reserva legal, previsto no art. 1º do Código Penal e Art. 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal;

3ª) por falta de previsão legal e uma vez que a doutrina e a jurisprudência são uníssonos no sentido de que é inadmissível em Direito Penal a analogia in malam partem, quem destrói, inutiliza ou deteriora bem pertencente ao patrimônio do Distrito Federal pratica o crime de dano simples, tipificado no art. 163, caput, do CP.

Cabe observar que essas mesmas fundamentações são aplicáveis ao delito de receptação qualificada, quando o objeto material do crime for bens ou instalações do patrimônio do Distrito Federal (art. 180, § 6º, do Código Penal).

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Sobre o autor
Horácio Joaquim Gomes Rolo

Delegado de Polícia do Distrito Federal,Pós-graduado em Polícia Judiciária, Professor de Direito Penal na UNIP/DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROLO, Horácio Joaquim Gomes. Crime de dano contra o patrimônio do Distrito Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 486, 5 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5882. Acesso em: 24 nov. 2024.

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