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O princípio da dignidade humana em defesa da bioética nas pesquisas com seres humanos frente à sociedade de risco e à legislação do Mercosul

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02/11/2004 às 00:00
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RESUMO

Este artigo parte de um embasamento histórico do termo Bioética, evoluindo até a era da sociedade de risco. Possui como objetivo apontar a relevância do princípio constitucional da Dignidade Humana no âmbito das pesquisas biocientíficas com seres humanos, no âmbito do Mercosul, eis que é matéria causadora de intenso debate multidisciplinar.

Palavras-chave: Bioética – Dignidade Humana – pesquisa – seres humanos – sociedade de risco - Mercosul.


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O principal aspecto do presente artigo repousa em como resolver os problemas decorrentes da falta de informação, da escassez legislativa e da inefetividade do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana face às pesquisas envolvendo seres humanos dentro do MERCOSUL [1], uma vez que se vive, atualmente, em uma sociedade denominada de risco, ou seja, marcada pela incerteza e pelo abandono de soluções definitivas.

O assunto é polêmico e possui extrema relevância tanto para a integração latino-americana como paras as áreas, médica, científica e de pesquisa, como também para a sociedade e os operadores do Direito em geral. A todo instante a população – nesse caso, os latino-americanos - tem seus direitos fundamentais ameaçados, especialmente, o da Dignidade Humana. Tais afrontas estão intimamente ligadas aos progressos científicos e técnicos de nossas sociedades.

Diante desse disparate entre ciência e questões éticas/humanas, existente no atual Estado contemporâneo globalizado, urge que o Mercado Comum do Sul implemente o princípio da Dignidade Humana juntamente com os princípios bioéticos já consagrados em sua legislação, visando práticas geradoras de respeito e prestígio para com pessoas que se submetem às experiências trazidas pela era da tecnologia e das descobertas.

A importância da integração normativa no contexto das questões ligadas à Bioética e à dignidade humana é uma necessidade para os Estados-Membros, haja vista o avanço cada vez mais acelerado da biotecnologia e a conseqüente utilização do ser humano para pesquisas nessa área. Contudo, é preciso considerar as inúmeras dificuldades para integração das leis e para a solidificação da idéia proposta nos países do MERCOSUL, uma vez que há disparidades na questão social da Dignidade Humana dentro das Constituições envolvidas, em face o contexto cultural-humano-ambiental dos Estados-Partes, bem como, a organização não dispões de um Tribunal Supranacional [2] com poderes suficientes de decidibilidade em controvérsias que poderiam haver em torno do assunto.

Para sistematizar estas idéias, utilizou-se a ordem de dois capítulos, organizados a partir de pesquisa básica, qualitativa e exploratória. O método usado foi o dialético.

Em um primeiro momento, procurou-se focalizar o referencial histórico da Bioética no contexto mundial, propondo a análise, desde o surgimento do termo até sua aplicação, sob a forma de algumas normatizações no contexto da sociedade mercosulina atual, cruzando, inclusive, por alguns dos grandes nomes e momentos que marcaram a disciplina.

Desenvolvido este capítulo, passou-se ao estudo do princípio da Dignidade da Pessoa Humana, diante das pesquisas científicas feitas com seres humanos, abordando-se, rapidamente, a globalização e o risco frente à ciência da Bioética e à legislação do MERCOSUL. Apresentou-se uma definição deste, trazendo-se alguns exemplos de experiências feitas sem que se tenha obtido o consentimento informado [3] das pessoas a estas submetidas, imposição que vem se manifestando em vários documentos internacionais, inclusive em documentos nacionais e do MERCOSUL.

Ao final, tomando-se como parâmetro as colocações ao longo do texto, sem, contudo, encerrar qualquer discussão foram apresentadas considerações finais, as quais possuem o objetivo de despertar, não só o estudante do Direito, como a própria sociedade, para uma temática tão desafiadora e atual quanto esta.


1 O SURGIMENTO DA BIOÉTICA E SUA INSERbÇÃO NO CONTEXTO INTERNACIONAL

A sociedade contemporânea cresceu enraizada na cultura da supremacia do homem sobre a natureza. Em vista disso, as transformações e aplicações no campo da ciência e da tecnologia, consubstanciadas em novos experimentos e pesquisas, passaram a ameaçar o próprio ser humano, que atenta contra sua existência e sua ética, violando um princípio por ele mesmo instituído: a Dignidade da Pessoa Humana [4].O desejo por saber cada vez mais e descobrir a cura para todos os males da sociedade inaugura uma verdadeira corrida pelo ouro e integra a era do risco [5], característica do mundo globalizado, indicando graves sintomas de o mundo que pode estar doente [6].

Essa mesma sociedade que busca desenfreadamente soluções para os problemas advindos da cultura global parece não estar agindo com a precaução e a sensibilidade que deveria brotar de preocupações éticas, dando margem a grandes discussões em torno das novas ciências, dos novos direitos [7].

Nos últimos anos, a Medicina, a Biologia e a Engenharia Genética alcançaram extraordinários avanços: desenvolvem-se embriões de células-tronco para transplantes de órgãos, que se multiplicam consideravelmente; experiências bem sucedidas com animais aumentaram; inseminações artificiais e fertilizações in vitro (nascimentos de pessoas fora do corpo humano) se tornaram corriqueiras.

Infelizmente, o Direito, em especial nos países que fazem parte do MERCOSUL, apesar de dar seus primeiros passos em busca de legislação simétrica e especializada, não está conseguindo acompanhar o ritmo das mudanças e novidades trazidas pelo avanço da biotecnologia.

Em meio a essas metamorfoses da modernidade, surge a ciência da Bioética [8]. Tal ciência tem procurado orientar, não apenas os médicos, cientistas e pesquisadores dedicados às experiências genéticas, mas também a sociedade. Àqueles que atuam nas áreas de pesquisa e experimentação, alerta-os para os limites da sua investigação; à sociedade, cumpre promover-lhe o esclarecimento e, aos operadores jurídicos - especialmente os legisladores - para que produzam as leis seguindo princípios éticos e, passem a visualizar de forma humana, situações que envolvam a nova geração de ciências e direitos trazidos pela sociedade de risco em que se inserem.

Tendo em conta que as definições para Bioética não são poucas, eis que, cada qual aborda um aspecto diferente, toma-se como alicerce as palavras de Durant, que traduz o termo como significando a pesquisa do conjunto das exigências do respeito e de promoção da vida humana e das pessoas no setor biomédico. (1995, p. 20).

Por outro lado, Oliveira aborda o caráter social e atual da Bioética ao estudar o termo, argumentando que,

... hoje é também uma disciplina norteadora de teorias para o biodireito e para a legislação, com a finalidade de assegurar mais humanismo nas ações do cotidiano das práticas médicas e nas experimentações científicas que utilizam seres humanos.(1997, p. 48).

Nesse viés, pode-se dizer que a Bioética começou a tomar formas já na antigüidade, com os problemas éticos surgidos em decorrência do exercício da Medicina.Vale lembrar o célebre juramento de Hipócrates [9], que zelava pela aplicação da Medicina para o bem dos doentes, segundo o saber e a razão, nunca para prejudicar ou fazer mal a quem quer que seja, conservando puras a vida e a arte [10].

A primeira normatização sobre a ética de pesquisa envolvendo seres humanos é o Código de Nuremberg, de 1948 [11], resultado do julgamento de crimes cometidos contra a humanidade pelo regime nazista. Sua revisão pela Assembléia Geral da Associação Médica Mundial resultou na Declaração de Helsinque, documento de referência internacional atualizado por cinco vezes (em 1964, 1975, 1983, 1989 e 1996) [12], que estabelece diretrizes para as pesquisas médicas de modo a preservar a integridade física e moral dos voluntários.

Em análise à decisão do Tribunal de Nuremberg, Martins enaltece a vida humana:

A antecipação representada pela decisão do Tribunal de Nuremberg, todavia, traduz, a clara noção de que há direitos que o Estado pode apenas reconhecer e não criar, não se justificando qualquer ação contra a dignidade humana sob a alegação de estarem as autoridades a aplicar e cumprir as leis do seu país, apesar de reconhecidas como injustas, tirânicas e atentatórias aos direitos e garantias universais planados no direito natural. (1999, p. 128).

Tomando-se como ponto de partida a ocorrência de uma verdadeira banalização do corpo humano no século XX, ocasionada pela feroz introdução da tecnologia nas áreas médica e biológica aliada à visão antropocentrista [13] centrada, principalmente, no ambiente hospitalar e laboratorial dos Estados Unidos, foi-se emoldurando a ciência da Bioética. Um dos primeiros documentos tratando desse assunto foi a Carta dos Direitos do Enfermo, aprovada pelos hospitais dos Estados Unidos nos anos 70.

Expressando a influência estadunidense na desenvoltura da Bioética, Jungues entende ser compreensível que o surgimento e o desenvolvimento da Bioética estejam ligados e respondam, nos seu início, a desafios e problemas típicos do ambiente anglo-saxão americano, (1999, p. 15), até porque, desde aquela época, a tecnologia dos Estados Unidos já se sobrepunha ao resto do mundo.

Nesse passo, o termo Bioética foi cunhado e tornou-se público no ano de 1971, com a publicação da obra Bioethics: a bridge to the future [14], pelo cancerologista e professor norte-americano Van Rensselaer Potter [15]. Foi ele quem estabeleceu a primeira versão do referido termo, atentando para o compromisso global com o equilíbrio e a preservação do meio ambiente na relação com seres humanos.

Importa trazer a lume a definição de Bioética constante na segunda edição da Enciclopédia de Bioética do Instituto Kennedy [16], que, segundo Jungues, traz considerações críticas sobre a primeira definição:

Bioética é o estudo sistemático das dimensões morais – incluindo visão, decisão, conduta e normas morais – das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar. (1999, p.20).

Na década de 80, surgem os primeiros institutos de Bioética na Europa: o Instituto Borja de Bioética (Barcelona) tendo à frente os jesuítas F. Abel e M. Cuyás e o Centre de Études Bioéthiques (Bruxelas), cujo nome de expressão foi J. F. Malherbe.

Hoje, os institutos estão espalhados pelo mundo [17]. A entidade promotora de debates sobre a Bioética de maior prestígio, em âmbito mundial, é a Associação Internacional de Bioética, criada em 1992. Em 1993, as Diretrizes internacionais para pesquisas biomédicas envolvendo seres humanos instituídas pela Organização Mundial de Saúde definiram que as pesquisas devem ser submetidas à revisão de comitês independentes, de composição multidisciplinar. O Comitê Internacional de Bioética, vinculado à UNESCO, também foi criado em 1993, com o intuito de assegurar o respeito aos valores da liberdade e da dignidade humana estabelecidos na Declaração universal do genoma humano e dos direitos humanos [18].

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Em relação à legislação dos países componentes do MERCOSUL [19], importa ressaltar apenas aquelas de maior expressão, especialmente em um contexto Brasil-Argentina, por serem os Estados-Membros de maior relevo internacionalmente. Assim, tem-se na Argentina a Lei n° 24.742/1996, que trata da saúde pública e institui um Comitê Hospitalar de Ética, o Decreto 426/98, que traz uma Comissão Nacional de Ética Biomédica e o Código de Ética para as equipes de saúde, ordenado pela Associação Médica Argentina. [20]

No Brasil, a primeira norma que vislumbra a ética de pesquisas em seres humanos é a Resolução número 01 do Conselho Nacional de Saúde, de 1988, que determina a constituição de Comitês de Ética para acompanhar pesquisas envolvendo seres humanos. Apesar da escassez legislativa sobre Bioética, tem-se no país, a Lei de Biossegurança (Lei 8.974/1995), que estabelece diretrizes para o controle das atividades relativas à tecnologia do DNA recombinante e cria a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia.

Ademais, a Constituição brasileira estabelece, como um de seus fundamentos, o respeito à Dignidade da Pessoa Humana, e ordena a fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e à manipulação do material genético, o controle da produção, comercialização e técnicas que ponham risco à vida, sua qualidade e meio ambiente [21], bem como, a regulamentação do dispositivo invocado considera crime a manipulação genética de células germinativas humanas, a intervenção em material genético humano in vivo, a não ser para tratamento de defeitos genéticos (Lei nº 8.974/95, Lei de Biossegurança). Vale citar ainda a Lei nº 9.279/96, que restringe patentes de parte ou o todo de seres vivos.

Em 1996, o Conselho Nacional de Saúde estabeleceu a Resolução 196, elaborada com a contribuição de diversos setores da sociedade, determinando as Diretrizes de pesquisa em seres humanos e criando o Comitê Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Hoje, o Conep e a CTNBio representam os principais órgãos de vigilância para o cumprimento da ética científica no Brasil.

No âmbito do MERCOSUL, há a Resolução 129/1996 [22], do Grupo Mercado Comum, que consiste em um regulamento técnico sobre a verificação de boas práticas de pesquisa clínica nos Estados-Partes. Tal norma foi um importante passo na busca pela integração das legislações dos países que compõe essa organização e também internacionalmente [23], em matéria de bioética, o que demonstra um interesse em salvaguardar a dignidade humana das pessoas sujeitas a estudos de farmacologia clínica.

Diante desse contexto histórico e, principalmente, da legislação latino-americana a respeito das questões bioéticas nas pesquisas em seres humanos, apresenta-se uma conclusão sobre o termo Bioética, tem-se a definição mais recente feita por O’Neall [24] que assim explicita:

Bioética não é uma disciplina, nem mesmo uma nova disciplina; eu duvido se ela será mesmo uma disciplina. Ela se tornou um campo de encontro para numerosas disciplinas, discursos e organizações envolvidas com questões levantadas por questões éticas, legais e sociais trazidas pelos avanços da medicina, ciência e biotecnologia. (2002)

Por fim, ressalta-se que a grande questão da atualidade envolvendo a Bioética, sendo, inclusive preocupação relevante no âmbito das discussões em torno da legislação do MERCOSUL, repousa em como pensar o Direito em conjunto com as ciências que envolvem a integridade corporal do ser humano (áreas médica e biológica) neste período de transformações e complexidade [25] que, por uma questão de comodidade [26], é chamado de globalização.


2 AS PESQUISAS COM SERES HUMANOS EM CHEQUE COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E COM A BIOÉTICA NO ÂMBITO DA SOCIEDADE DE RISCO

À medida que a ciência evoluiu, a sociedade foi cada vez mais impelida na direção de uma aprendizagem que permitisse administrá-la visando que essa evolução não viesse a ferir o respeito à pessoa, ao paciente.

A dinâmica que o capitalismo pós-industrial assumiu no final do último milênio conduziu a sociedade ao fenômeno da globalização, trazendo consigo o risco, que, na esfera da biotecnologia e bioengenharia, pode ser constatado através da geração de novos direitos envolvendo manipulações genéticas e demais pesquisas com seres humanos, tratando de questões sobre a vida e a morte, reprodução de pessoas, etc, e que requerem uma discussão ética prévia [27].

Qualquer tentativa de se definir o processo de globalização poderia conduzir a equívocos e incompreensões, sendo permitido aduzir que a era global surge como uma mistura de várias ciências que se debatem em uma profunda crise, por conta da debilidade do aparelho estatal de impor seus comandos, da quebra da idéia da unicidade do sistema jurídico, da existência cada vez mais expressiva de conceitos jurídicos abertos e indeterminados, da presença constante do risco e, principalmente, da necessidade de (re)discussão [28] e compreensão das atitudes dos operadores do Direito frente às lacunas do sistema jurídico contemporâneo.

Assim, a Dignidade da Pessoa Humana, alçada à condição de princípio nas civilizações ocidentais, recebeu enorme impulso no Brasil através de sua contemplação no texto constitucional de 1988.

Sarlet elucida que todos os direitos fundamentais encontram sua vertente no princípio da dignidade da pessoa humana. (2001, p. 301). Em sentido mais amplo, Streck e Morais [29] entendem ser de fundamental importância a compreensão do conteúdo não só dos direitos fundamentais, como também do processo de transformação por que passam com a emergência de novas realidades.

Entende-se atualmente que a Dignidade da Pessoa Humana tem dois grandes fundamentos: consiste em norma fundamental, voltada a garantir as faculdades jurídicas necessárias à existência digna do ser humano; e deve ser entendida, também, enquanto linha diretiva para o futuro da sociedade, especialmente quando se trata de questões envolvendo a Bioética. Nesse sentido, novamente Sarlet consegue transparecer a intenção do legislador ao inserir a idéia de Dignidade Humana na Lei Fundamental:

Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III da CF), o constituinte de 1987/88, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o homem constitui a finalidade precípua e não o meio da atividade estatal. (ano, p. 102-103).

Por conseguinte, dando-se seguimento às inferências a respeito da Bioética, cabe salientar que, todo o profissional deve submeter-se ao Código de Ética e Disciplina vigente em sua área que aliado e escorado no princípio da Dignidade da Pessoa Humana, impõe limitações ao exercício de pesquisas com seres humanos.

A História confirma tal assertiva ao contabilizar inúmeros fatos reais refutados mundialmente, ocorridos durante o período interguerras, especialmente na época da 2º Guerra Mundial. Não se pode esquecer de Joseph Mengele [30], que usou seres humanos como cobaias em suas experiências e colaborou em muitos projetos da Sociedade Kaiser Wilhelm (KWG) [31], onde atuou durante o período nazista; ou então de Shiro Ihsii [32], que ordenava aos prisioneiros que se alimentassem bem e fizessem exercícios regularmente para que se tornassem espécimes saudáveis com vistas à obtenção de bons resultados em pesquisas científicas [33].

Vale inferir, por oportuno, a título exemplificativo, a matéria intitulada Cobaias Humanas [34], que trata da utilização de brasileiros em testes de fármacos, ao que tudo indica, sem a observância dos preceitos internacionalmente recomendados para pesquisas utilizando sujeitos humanos.

Santin expõe perfeitamente o pensamento quanto às restrições da Bioética nas pesquisas que envolvem experimentos com seres humanos na era da sociedade de risco:

Quando o saber humano, guiado por esse projeto de humanidade, já como instância teórica, deixou de ter como objetivo maior a contemplação do mundo, para transformar-se em fundamento da ação prática, as intervenções transformadoras da realidade acabaram sendo a justificativa maior de todo conhecimento. As ciências experimentais tornaram-se o grande acervo teórico para a instrumentalização de todas as ações humanas. O universo, e tudo o que nele está contido, transformou-se num imenso canteiro de obras. Aparentemente, os engenheiros destas obras, parece, não respeitaram limites de qualquer espécie. (2003)

Não existe no mundo legislação que permita o livre e irrestrito acesso ao corpo humano com vida. Mesmo em prol da humanidade e do bem-comum é de se considerar o aspecto risco–benefício, não se permitindo que as experiências com seres humanos extrapolem as fronteiras da inviolabilidade da dignidade do ser humano. Alicerçada neste entendimento, a Declaração Universal sobre o Genoma e Direitos Humanos, de 11 de novembro de 1997, traz em seu artigo 1º a importância do genoma humano e o reconhecimento de sua dignidade, lançando-o como patrimônio da humanidade: El genoma humano es la base de la unidad fundamental de tu os los miembros de la familia humana y del reconocimiento de su dignidad y diversidad intrínsecas. En sentido simbólico, el genoma humano es el patrimonio de la humanidad.

Cabe ao MERCOSUL harmonizar a legislação relativa à Bioética, principalmente no que tange às pesquisas envolvendo pessoas, bem como aceitar o desafio de desacelerar o mundo, proposto por Morin. Segundo a reflexão do pensador francês,

... precisamos tomar consciência dessa corrida louca para onde nos leva o devir que tem cada vez menos a feição do progresso, ou que seria a face oculta do progresso. (...) Trata-se, portanto de frear o avanço técnico sobre as culturas, a civilização, a natureza, que ameaça tanto as culturas como a civilização e a natureza. Trata-se de diminuir a marcha para evitar ou uma explosão ou uma implosão. Trata-se de desacelerar para poder regular, controlar e preparar a mutação. A sobrevivência exige revolucionar o devir. Precisamos chegar a um outro futuro. Essa é que deve ser a tomada de consciência decisiva do novo milênio. (1995, p.100)

Nesse sentido, consagra-se de vez a importância da Bioética aliada ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana frente à legislação do MERCOSUL. Ou seja, imperioso que questões urgentes, tais como as éticas e humanas sejam (re)pensadas à luz de uma hermenêutica do aludido princípio constitucional comprometida com a coletividade e com o todo, estabelecendo-se assim, uma ligação entre as ciências e as humanidades e, deste conjunto, com o futuro.

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Sobre a autora
Angelita Woltmann

Advogada,acadêmica do curso de Mestrado em Integração Latino-Americana, da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e do curso de Especialização em Direito Constitucional aplicado: uma abordagem material e processual</i>, do Centro Universitário Franciscano – UNIFRA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WOLTMANN, Angelita. O princípio da dignidade humana em defesa da bioética nas pesquisas com seres humanos frente à sociedade de risco e à legislação do Mercosul. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 483, 2 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5883. Acesso em: 4 nov. 2024.

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