Finalmente foi editado o Decreto n º 5.123, de 1º de julho de 2004, destinado a regulamentar a Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003 – Estatuto do Desarmamento. Sistematizando o controle de armas de fogo, define-as e disciplina sua aquisição, registro, comércio, porte e trânsito, substituindo assim o Decreto 2.222, de 8 de maio de 1997.
A sua publicação parece, ao primeiro olhar, fazer cessar a polêmica instaurada no meio jurídico acerca da vigência de alguns tipos penais definidos no Estatuto do Desarmamento.
Entretanto, ainda cabem considerações a respeito do tema, haja vista que, no prazo decorrido entre as datas de publicação do Estatuto e do Decreto, o entendimento que negava vigência ao citado diploma legal deu azo a considerável número de denúncias rejeitadas e de absolvições prolatadas em primeiro grau de jurisdição, que se encontram pendentes de julgamento na segunda instância.
Importante destacar que esta exposição não tem por objetivo fomentar críticas aos tipos delituosos descritos no Estatuto nem avaliá-los.
Cinge-se, somente, a defender a aplicabilidade do Decreto antigo à lei nova durante o período apontado, até que fosse editado o novo diploma regulamentador, eis que este foi o cerne da controvérsia instaurada.
Para alguns operadores do direito, a Lei n º 10.826/03 trata-se de norma penal em branco, que para sua exeqüibilidade dependia de norma complementar, qual seja, o decreto que a regulamentasse. Desta forma, enquanto o aludido regulamento não fosse editado, a imediata aplicação das normas penais descritas no Estatuto do Desarmamento restaria prejudicada, mormente porque a Lei 9.437/97, que abordava a mesma matéria, fora expressamente revogada, e, com ela os atos normativos que a regulamentavam, os quais não poderiam ser aplicados ao diploma penal novel. No fio desse raciocínio, o Decreto 2.222/97 – assim como o Decreto nº 3665/2000 (R-105, Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados) – teriam sido tacitamente revogados com a Lei 9.437/97, que por eles era disciplinada quanto às condições para o registro e para o porte de arma de fogo, bem como quanto à classificação dos armamentos. Assim, na falta do novo regulamento aludido pelo art. 23 do Estatuto do Desarmamento, a caracterização da conduta típica restaria inerme, porque ausente a definição de quais armamentos seriam considerados de uso permitido ou de uso proibido.
Contudo, ao nosso ver, a conclusão mostrou-se equivocada.
É claro que é interessante lembrar que não podemos perder de vista o espírito da lei, na sua interpretação. Se o legislador quisesse tornar obsoletos todos os dispositivos de regulamentos relacionados à lei anterior, certamente não teria se limitado a estabelecer prazos apenas para a regularização do registro, como efetivamente o fez.
E não deixa de ser importante frisar que a adesão à tese combatida nesta oportunidade pode repercutir em grave e irreversível prejuízo à ordem pública e à sociedade em geral, que se vê cada vez mais acuada ante a crescente violência em seu seio.
Mas, nesta ocasião, interessa a abordagem técnica da questão, sob outro vértice.
É errônea a assertiva de que, pela revogação de uma lei, os decretos e atos normativos de hierarquia inferior que a regulamentam automaticamente perderiam a vigência. Isto porque a relação entre normas de hierarquia distinta não é, de forma alguma, de acessoriedade absoluta, e a constatação da permanência ou não de um ato normativo regulamentar deve ser procedida através do exame da compatibilidade de seus dispositivos com o diploma superveniente.
Entendimento contrário conduziria a verdadeiro caos legislativo, eis que, se as leis e atos normativos são absolutamente acessórios em relação aos de hierarquia superior, então toda a legislação infraconstitucional anterior à promulgação da Constituição de 1988 teria sido revogada juntamente com a Carta de 1967/69, eis que "acessória" a ela.
Ora, é sabido que a Constituição Federal de 1988, ao tratar do sistema tributário nacional, por exemplo, reservou à lei complementar a tarefa de "estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária" (art. 146, inciso III), o que, porém, não autoriza o entendimento de que o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66, até hoje vigente) foi automaticamente ab-rogado pelo dispositivo constitucional. É verdade que algumas matérias passaram a demandar nova lei complementar, mas, como é notório, muito do que já constava dele à época da promulgação da Carta de 1988 permanece em vigor, porque com ela compatível.
A atenta análise do Decreto 2.222, de 8 de maio de 1997, não deixa dúvida de que, no que se refere ao porte de armas de fogo, houve pronta compatiblidade com o Estatuto do Desarmamento.
A imediata derrogação desse decreto, diante da publicação da Lei, operou-se apenas e tão somente em relação em registro das armas, face às disposições dos artigos 30 e 32 da Lei 10.826/03, que concediam 180 dias para a regularização, os quais foram prorrogados pela Medida Provisória n º 174, de 18.3.2004, sucessivamente reeditada até a vinda do Decreto 5.123/2004.
Em conseqüência desta singular incompatibilidade daquele Decreto de 1997 com o Estatuto, ficou patente que art. 12, ao descrever como crime o fato de possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo de uso permitido na própria residência, em desacordo com autorização legal ou regulamentar, restara inexeqüível durante o período que antecedeu a vinda do Decreto 5.123, de 1º de julho de 2004. Afinal, naquele único caso não se exige do possuidor da arma de fogo a autorização para o seu porte, bastando que fosse efetuado o seu registro, e o prazo para este procedimento vinha sendo sucessivamente prorrogado pela Medida Provisória.
Perfeitamente admissível a "aplicação fracionada" da nova lei, até porque é bastante comum que normas com graus distintos de eficácia e aplicabilidade convivam em um mesmo diploma legal. Certamente, não haveria de se negar vigência à Constituição Federal em sua inteireza, apenas porque alguns de seus dispositivos estão até hoje a demandar regulamentação.
No restante de seu teor, o Decreto 2.222 não ofereceu contrariedade às disposições da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003.
De igual modo, pode-se afirmar que também o Decreto 3.665/2000 (R-105, Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados), incumbido, dentre outras atribuições, de classificar quais as armas de uso permitido e quais as de uso restrito, não apresentou qualquer estorvo ao Estatuto.
A esse propósito, cabe aqui anotar dois interessantes detalhes:
1º. O Decreto 3665/2000 substituiu o Decreto 2.998/99, que por sua vez havia revogado os Decretos 56.649, de 1965, e 64.710, de 1969. Isto significa que a Lei 9.437/97 foi regularmente aplicada, nos seus primeiros tempos, com a classificação de armas de uso permitido e de uso restrito contidas em Decretos que antecederam a sua publicação, em situação similar à que ocorre no presente.
2º. O novo Decreto n º 5.123, de 1º de julho de 2004, revogou expressamente o Decreto n º 2.222, de 8 de maio de 1997, assim como outros que o modificavam, e não o fez em relação ao Decreto R-105. De onde se extrai que o diploma normativo de 1997 não foi tacitamente revogado pela Lei 10.826/2003; logo, foi a ela aplicável naquilo em que não a contrariou
Oportuno lembrar a preciosa e eternizada lição de André Franco Montoro:
"Como se revogam as normas jurídicas? O princípio geral é o de que as normas se revogam por outras da mesma hierarquia ou de hierarquia superior. Assim, uma nova Constituição revoga a Constituição anterior e todas as leis, regulamentos, portarias, etc. que lhe sejam contrários, e passam a ser "inconstitucionais". Uma lei ordinária revoga as leis anteriores e as normas de menor hierarquia como os regulamentos, portarias e outros preceitos inferiores contrários a suas disposições." [1]
No mesmo sentido preleciona ROQUE ANTONIO CARRAZZA [2]:
"O ordenamento jurídico é formado por um conjunto de normas, dispostas hierarquicamente. Das normas inferiores, criadas por particulares (os contratos) às constitucionais, forma-se aquilo que se convencionou chamar de pirâmide jurídica. Nela, as normas inferiores buscam validade nas normas que lhe são superiores e, assim, sucessivamente, até as normas constitucionais. É isso que Kelsen queria significar quando apregoava que ‘o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma’.
Assim, as normas subordinadas devem harmonizar-se com as superiores, sob pena de deixarem de ter validade, no ordenamento jurídico. Exemplificando: o decreto deve buscar fundamento de validade na lei, e esta, na Constituição. Se, eventualmente, o decreto contrariar a lei, estará fora da pirâmide"
À luz destes ensinamentos, não há como duvidar que os Decretos 2.222/97 e 3.665/2000, por se afigurarem plenamente compatíveis com o Estatuto do Desarmamento, por ele foram recepcionados.
O que significa, em outras palavras, que o Decreto 2.222/97, excluindo suas disposições sobre o registro de armas de fogo, esteve em pleno vigor, até que fosse publicado o Decreto 5.123, de 1º de julho de 2004.
Afirma-se mais: o Decreto 3665/2000 (R-105, Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados), que, entre outras disposições, classifica e distingue as armas de fogo de uso permitido e de uso restrito, continua plenamente aplicável ao Estatuto, até porque seu conteúdo não foi substituído pelo Decreto 5.123/2004, que regulou tão somente a matéria do Decreto 2.222/97.
Em síntese: no que tange à autorização para o porte de arma de uso restrito ou proibido, que se trata, à toda evidência, de hipótese completamente diversa do registro; bem como no tocante à omissão de cautela, ao disparo, ao comércio ilegal, ao tráfico internacional de arma de fogo, ocorreu o fenômeno denominado "recepção" das leis complementares (em sentido lato, pois as referências são os Decretos 2.222/97 e 3665/2000), até que outras fossem editadas em seu lugar, face à sua compatibilidade com o Estatuto do Desarmamento.
Daí a conclusão de que, à exceção do art. 12, como já foi explanado, os demais tipos penais da Lei recente não tiveram sua vigência suspensa durante o período que antecedeu a publicação do Decreto n º 5.123, de 1º.7.2004.
Daí porque as regras invocadas para negar vigência à Lei 10.826/2003 durante o referido lapso temporal, fundamentando a rejeição de denúncias e absolvendo réus aos quais eram imputados os crimes nela previstos, não podem ser aceitas, e daí porque se espera a reforma das sentenças neste sentido.
Notas
1 Introdução à Ciência do Direito, São Paulo, RT, 20ª edição, p. 393.
2 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros. 19ª ed. 2004. p. 27