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A teoria da separação de poderes

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Um dos princípios fundamentais da democracia moderna é o da separação de poderes. A idéia da separação de poderes para evitar a concentração absoluta de poder nas mão do soberano, comum no Estado absoluto que precede as revoluções burguesas, fundamenta-se com as teorias de John Locke e de Montesquieu. Imaginou-se um mecanismo que evita-se esta concentração de poderes, onde cada uma das funções do Estado seria de responsabilidade de um órgão ou de um grupo de órgãos. Este mecanismo será aperfeiçoado posteriormente com a criação de mecanismo de freios e contrapesos, onde estes três poderes que reúnem órgãos encarregados primordialmente de funções legislativas, administrativas e judiciárias pudessem se controlar. Estes mecanismos de controle mútuo, se construídos de maneira adequada e equilibrada, e se implementados e aplicados de forma correta e não distorcida (o que é extremamente raro) permitirá que os três poderes sejam independentes (a palavra correta é autônomo e não independente) não existindo a supremacia de um em relação ao outro (o que também é raro acontecer conforme demonstrado no Tomo II do nosso Direito Constitucional).

Importante lembrar que os poderes (que reúnem órgãos) são autônomos e não soberanos ou independentes. Outra idéia equivocada a respeito da separação de poderes é a de que os poderes (reunião de órgãos com funções preponderantes comuns) não podem, jamais, intervir no funcionamento do outro. Ora, esta possibilidade de intervenção, limitada, na forma de controle, é a essência da idéia de freios e contrapesos. Nos sistema parlamentar contemporâneo, também estudado no Tomo II, há a separação de poderes, existindo entretanto mecanismo de intervenção radical no funcionamento do legislativo por parte do executivo (dissolução antecipada da parlamento) e do legislativo no executivo (a queda do governo por perda do apoio da maioria no parlamento). No sistema presidencial, onde os mandatos são fixos, não existindo as possibilidades de intervenção radical do parlamentarismo, a intervenção ocorre na forma de controle e de participação complementar, como por exemplo quando o executivo e legislativo participam na escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal.

Outro aspecto importante é o fato de que os Poderes tem funções preponderantes, mas não exclusivas. Desta forma quem legisla é o legislativo, existindo entretanto funções normativas, através de competências administrativas normativa no judiciário e no executivo. Da mesma forma a função jurisdicional pertence ao Poder Judiciário, existindo entretanto funções jurisdicionais em órgãos da administração do Executivo e do Legislativo. O Contencioso administrativo no Brasil não faz coisa julgada material pois a Constituição impõe que toda lesão ou ameaça a Direito seja apreciada pelo Judiciário (Artigo 5 inciso XXXV da CF). Entretanto em sistemas administrativos como o Francês há no contencioso administrativo diante de tribunais administrativos, a coisa julgada material, o que significa dizer que da decisão administrativa não há possibilidade de revisão pelo Poder Judiciário. Finalmente é obvio que existem funções administrativas nos órgãos dos três poderes.

Com a evolução do Estado moderno, percebemos que a idéia de tripartição de poderes se tornou insuficiente para dar conta das necessidades de controle democrático do exercício do poder, sendo necessário superar a idéia de três poderes, para chegar a uma organização de órgãos autônomos reunidos em mais funções do que as três originais. Esta idéia vem se afirmando em uma prática diária de órgãos de fiscalização essenciais a democracia como os Tribunais de Contas e principalmente o Ministério Público. Ora, por mais esforço que os teóricos tenham feito, o encaixe destes órgãos autônomos em um dos três poderes é absolutamente artificial, e mais, inadequado.

O Ministério Público recebeu na Constituição de 1988 uma autonomia especial, que lhe permite proteger, fiscalizando o respeito a lei e a Constituição, e logo, os direitos fundamentais da pessoa, o patrimônio publico, histórico, o meio ambiente, o respeito aos direitos humanos, etc. Para exercer de forma adequada as suas funções constitucionais o Ministério Público não pode estar vinculado a nenhum dos poderes tradicionais, especialmente porque sua função preponderante é a de fiscalização e proteção da democracia e dos direitos fundamentais e não de legislação, administração, governo, ou jurisdição.

Embora o constituinte de 87-88 não tenha dito expressamente tratar-se o Ministério Público um quarto poder, o texto assim o caracteriza, ao conceder-lhe autonomia funcional de caráter especial. Qualquer tentativa de subordinar esta função de fiscalização típica do Ministério Público a qualquer outra função, é tentativa de reduzir os mecanismos de controle democrático, e logo, inconstitucional.

O que o constituinte brasileiro inovou, sem entretanto explicitar, o constituinte venezuelano o fez de forma inequívoca na importante Constituição da República Bolivariana da Venezuela, de 1999. A Constituição Venezuelana estabelece cinco poderes: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, o Poder Cidadão (o Ministério Público e a Defensoria Pública) e o Poder Eleitoral.

Podemos dizer que o Estado contemporâneo reúne as seguintes funções:

a)a função legislativa;

b)a função jurisdicional;

c)a função constitucional (dos poderes constituintes de reforma);

d)a função administrativa;

e)a função de governo; [1]

f)a função simbólica (típica dos sistemas parlamentares e pertencente ao chefe de Estado);

g)e a função de fiscalização.

Além da separação (melhor divisão) de poderes (melhor funções) horizontal até aqui tratada, temos ainda uma divisão vertical de poderes (ou competências), já estudada de forma detalhada no Tomo II, quando estudamos as formas de organização territorial no Estado contemporâneo (o Estado Unitário descentralizado, o Estado Regional, o Estado Autonômico e principalmente nas várias formas de federalismo). A separação vertical de poder no Estado Federal, permite superar o monismo jurídico, permitindo a convivência de ordenamentos jurídicos de até três níveis dentro de um mesmo sistema constitucional. Trata-se de uma forma plural de produção legislativa.

A seguir estudaremos as novas funções do Estado centrando a discussão na necessidade de dividir funções preponderantes de governo (poder político) das funções preponderantes de gestão técnico administrativa (função técnico-políticas) da administração pública que não pode se confundir com funções de poder político típicas do governo.


As Funções do Estado contemporâneo

Superando a clássica divisão de poderes (funções) do Estado, entre legislativo, judiciário e executivo, podemos dizer que o Estado hoje necessita de um sistema mais sofisticado de exercício de funções que permita a garantia dos processo democráticos. A Constituição brasileira de 1988 reconheceu a necessidade de uma nova função de fiscalização, e embora o constituinte não tenha tido a iniciativa de mencionar um quarto poder, efetivamente criou esta quarta função autônoma essencial para a democracia e a garantia da lei e da constituição que é a função de fiscalização. O Ministério Público encarregado desta função, para exercê-la de maneira adequada necessita de efetiva autonomia em relação às outras funções (poderes) não pertencendo nem ao executivo, nem ao legislativo, nem ao judiciário. O mesmo ocorre com os Tribunais de Contas, que embora necessitem nova forma de escolha de seus membros para que assumam este novo status, não podem pertencer a nenhum dos poderes tradicionais para exercer com eficiência sua função fiscalizadora.

Como já foi dito, podemos dizer que hoje é necessário separar as seguintes funções autônomas do Estado democrático: a função legislativa ordinária (de elaborar as leis infra-constitucionais); a função legislativa constitucional (de emendar e revisar ao Constituição); a função jurisdicional; a função de governo; a função administrativa; a função de fiscalização (acima mencionada); e uma função simbólica (típica do chefe de estado, função esta que pelo seu simbolismo não deve se confundir com a função de governo, esta de poder político).

Trabalhamos em outros momentos a acumulação de funções, fato típico do presidencialismo, onde o presidente acumula as funções simbólica (chefe de estado) de representação dos valores nacionais; as funções de governo (de decisão política, definição de políticas publicas); e a função de chefe da administração pública civil e militar (função esta técnico-política). O acumulo destas funções na figura de uma única pessoa é responsável por grandes distorções do sistema político representativo, fazendo que o jogo político se torne equivocadamente personalista.

Para um adequado funcionamento da administração pública, as funções de governo (poder político) e as funções administrativas (de natureza técnico política) devem ser separadas. Percebemos um movimento em diversas democracias contemporâneas no sentido de separar funções de governo de funções administrativas, decorrente da necessidade de eliminar os males de um sistema administrativo baseado em cargos de confiança, onde, para se conseguir apoios em votações no parlamento o governo distribui cargos de chefia na administração pública, comprometendo a eficiência na administração pública e distorcendo o jogo político, que deveria ser em torno de projetos, idéias, programas, e não fundado em vaidades e interesses pessoais por cargos, privatizando o público e destruindo o Estado.

A questão que passamos a analisar portanto é como separar a função de governo da função administrativa e quais são os critérios podemos adotar para efetivar esta divisão, que coloque o governo democraticamente eleito dentro de sua função constitucional, que não é a de distribuir cargos em troca de apoios provisórios e inspirados por interesses personalistas mas sim de fazer com que a administração pública funcione de forma eficiente, apta a cumprir as determinações do governo e do parlamento dentro dos princípios de eficiência; legalidade (leia-se constitucionalidade); impessoalidade; moralidade e publicidade.


Governo X administração

Democracia, política e eficiência no Estado democrático e social de Direito

O excesso de cargos de confiança e o uso inadequado aos interesses públicos da possibilidade de escolha das chefias da administração pelos governantes comprometendo uma eficiente gestão dos entes da administração, levaram a busca de alternativas que resguardem a eficiência administrativa, oferecendo uma administração que deve servir as determinações políticas com competência técnica.

Esta discussão ocorre dentro de uma outra perspectiva contemporânea não menos importante: a busca da descentralização e fragmentação coordenada de poder, permitindo maior celeridade nas decisões, responsabilidade do administrador, uma vez que quem decide está próximo do administrado, e, devido a proximidade entre administrado e administrador, a possibilidade concreta de controle social.

Isto posto perguntamos: o chefe de governo deve escolher os reitores das universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais e de órgãos de pesquisa entre outros. A resposta obvia diante do que já foi discutido anteriormente é não. O governo deve estabelecer as grandes políticas de investimento nos mais diversos setores de interesse público, investimentos em saúde, educação, meio ambiente, definição de políticas econômicas, incentivo a produção, escolha de grandes diretrizes técnicas entre outras questões, mas não há motivo para que este mesmo governo encarregado de definições políticas e de escolhas de modelos técnicos e científicos que se adequem as suas políticas (e nunca o contrário), escolher o profissional que vai gerir o dia a dia de uma escola de primeiro e segundo grau, ou o gestor de um hospital, ou de uma universidade, ou de um instituto de pesquisa, etc. Temos então um indicativo para estabelecer a diferença entre uma função administrativa e uma função de governo. Entretanto a questão não é tão simples. Se gerir uma escola é preponderantemente uma função técnica, não é exclusivamente técnica. Ao mesmo tempo se a definição de grandes linhas de políticas públicas é uma função preponderantemente política, não pode ser exclusivamente política, pois necessita de suportes técnico-científicos, que entretanto devem se subordinar sempre a decisão política.

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Por este motivo embora seja necessário a divisão em função administrava distinta da função de governo, a função administrativa não deve ser, em geral (sempre há exceções), uma função exclusivamente técnica, acrescendo sempre que possível aspectos democráticos que incentivem o controle social, na escolha dos cargos de chefia. Por isto falarmos em eleição de reitores de universidades, diretores de escolas, diretores de hospitais, desde que cumpridos critérios técnicos.

Assim podemos dizer que a gestão de serviços públicos deve ser deixada para entes administrativos autônomos (criados por lei com competências próprias onde o poder central não possa intervir, e sempre que possível, com a participação do administrado na escolha do gestor), enquanto as escolhas políticas e a construção de políticas públicas de investimentos, políticas econômicas, de saúde e educação entre outras devam ser do governo. Não deve o governo escolher o diretor de uma escola e um hospital assim como não pode um ente administrativo autônomo sob o pretexto de escolhas técnicas, assumir escolhas políticas encobertas pelo discurso pseudo neutro da técnica. Dentro deste raciocínio o Banco Central do Brasil não pode nunca ter autonomia para escolher políticas monetárias, por ser esta autonomia inconstitucional ao retirar do espaço político-democrático do governo democraticamente eleito, a possibilidade de escolhas das várias alternativas técnicas econômicas relativas as políticas econômicas para o setor.


A questão das agências reguladoras

As agências reguladoras, mecanismo copiado de uma tradição administrativa norte-americana que nada têm em comum com nossa história administrativa, se inserem no raciocínio realizado no parágrafo anterior, e daí sua inconstitucionalidade, além de sua absoluta inadequação a nossa cultura.

Sérios problemas para um governo democraticamente eleito surgem com a adoção deste sistema, que se insere dentro de uma lógica administrativa adequada ao modelo neo-conservador (chamado neoliberal), que privatizou serviços públicos de telefonia, transporte, água, energia elétrica, encarecendo os sistema que obviamente expandiu procurando mais lucros. Hoje muito mais pessoas tem acesso a uma linha de telefone, por exemplo, que por serem muito mais caros, não tem possibilidade de pagá-los [2]. Mas a questão não é esta, pois poderíamos citar muitos outros exemplos como o desastre no setor de geração e distribuição de energia após a privatização. A questão que nos interessa é que, para regular estes serviços públicos privatizados, e portanto sujeitos aos interesses privados que se impõem na prática aos interesses do público, criou-se agências reguladores, que passaram assumir competências de escolhas e definições de políticas públicas destes setores, claramente usurpando funções de governo, e portanto, usurpando funções democráticas, o que não tem amparo constitucional.


Notas

1 Conforme tratado no Direito Constitucional Tomo III a função de governo não deve se confundir com a função administrativa.

2 Poderíamos lembrar as estradas maravilhosas depois da concessão para exploração privada. O problema é que como os usuários não tem dinheiro para utilizar estas vias devido ao alto custo do pedágio são obrigados a usar vias alternativas muitas completamente abandonadas, aumentando o risco e mantendo vazias e seguras para quem pode pagar as vias privatizadas.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. A teoria da separação de poderes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 495, 8 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5896. Acesso em: 5 nov. 2024.

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