A prevalência do negociado sobre o legislado, presente na “reforma trabalhista”, atualmente tramitando no Senado Federal e já aprovada na Câmara dos Deputados, é discutida, em geral, de forma ultra simplificada e deturpada.
O assunto diz respeito à prevalência do estabelecido em acordos (inclusive acordos individuais) e convenções coletivas sobre o instituído na legislação. Ou seja, o acordo (coletivo ou individual), ou a convenção coletiva, deverá ser aceito na justiça do trabalho mesmo que sejam contrários à lei.
As definições de convenção coletiva e acordo coletivo se encontram na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), assim estabelecido:
Art. 611 - Convenção Coletiva de Trabalho é o acordo de caráter normativo, pelo qual dois ou mais Sindicatos representativos de categorias econômicas e profissionais estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas representações, às relações individuais de trabalho.
§ 1º É facultado aos Sindicatos representativos de categorias profissionais celebrarem Acordos Coletivos com uma ou mais empresas da correspondente categoria econômica, que estipulem condições de trabalho, aplicáveis no âmbito da empresa ou das acordantes respectivas, nas relações de trabalho. (grifamos)
Já o acordo individual é aquele que o empregado realiza diretamente com o empregador. Segundo a proposta de reforma, este acordo não é necessariamente escrito, podendo ser verbal e tácito. Lembrando que tácito é aquele que foi aceito sem manifestação, tendo ocorrido apenas à realização do ato.
Atualmente a Constituição Federal permite acordos e convenções coletivas desde que suas estipulações sejam mais benéficas ao trabalhador que a Lei. O art. 7º da Constituição Federal é claro neste sentido:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (grifamos)
“Visem à melhoria” e não o retrocesso de sua condição social. Parece bem claro. Mas a própria Constituição prevê três casos, só três casos, de ajuste para baixo, são os incisos XIII, VI e XIV do art. 7º:
“XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho;
XIV - jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, salvo negociação coletiva;
VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;
Além de estabelecido na própria Constituição Federal, o princípio da norma mais favorável é preceito fundamental de Direito do Trabalho. Os princípios são, no dizer de De Castro, “as idéias fundamentais e formadoras da organização jurídica do trabalho”(Derecho Civil de España, Madrid, 1949.2ª edição, p.419-420, citado por Alfredo J. Ruprecht, Os princípios do Direito do Trabalho, LTr editora, 1995, pag. 7).
O que quer o projeto de “reforma” é inverter a lógica da Constituição e fazer com que o negociado tenha maior valor que a legislação.
O projeto de “reforma” estabelece um art. 611-A da CLT que dispõe:
Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; II – banco de horas anual; III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas; IV – adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei nº 13.189, de 19 de novembro de 2015; V – plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança; VI – regulamento empresarial; VII – representante dos trabalhadores no local de trabalho; VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente; IX – remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual; X – modalidade de registro de jornada de trabalho; XI – troca do dia de feriado; XII – enquadramento do grau de insalubridade; XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho; XIV – prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo; XV – participação nos lucros ou resultados da empresa.
Art. 59. A duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho. (entre outras normas, por exemplo – Art. 59-A estabelece regime 12x36 com intervalo de descanso indenizado – Art. 59. § 6 estabelece a licitude de acordo individual tácito para a compensação de jornada - Art. 444. Parágrafo único estabelece que o contrato individual poderá se sobrepor ao acordo coletivo para cargos de nível superior e com salário em torno de 10 mil reais.).
Para complementar a obra, existe o art. 611-B do projeto que estabelece que “constituem objeto ilícito de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, exclusivamente, a supressão ou a redução dos seguintes direitos”. E a seguir transcreve incisos do art. 7º da Constituição Federal, com alguns acréscimos, também de matérias tratadas na Constituição, como proteção ao trabalho de crianças e adolescentes e trabalho da mulher, bem como a determinação de não suprimir ou reduzir tributos e outros créditos de terceiros. Conclui com um parágrafo único dizendo que as “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto nestes artigos.
Interessante esse parágrafo, pois altera a própria realidade. Obviamente as normas de duração do trabalho e intervalos são matéria de saúde e segurança do trabalho. Deixe um trabalhador fazer, por exemplo, quatorze horas de trabalho diário sem intervalos e veja como ficará o seu estado de saúde após poucos dias. A falta de atenção decorrente também propiciará os acidentes do trabalho.
Também muito estranha a determinação de não suprimir ou reduzir tributos e “outros créditos de terceiros”. Seria muito peculiar que se pudesse suprimir ou reduzir tributos pela via contratual, mas o que se deseja é salvar as contribuições para o “Sistema S” (SESI, SESC, SENAI, SENAR etc) cujas verbas são cobiçadas pelas entidades sindicais de empresários, muito mais que a contribuição sindical.
O artigo repete a Constituição Federal, pois como a “reforma” é projeto de lei ordinária, não poderia alterar a Constituição, embora inequivocamente deseje.
A redação deste artigo 611-B que, no geral, copia a Constituição Federal poderia ser muito simplificada, a redação diria simplesmente que: “As disposições determinadas por meio de uma convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto em lei, sempre que não contrariem a Constituição Federal e as normas de medicina e segurança do trabalho e de proteção ao trabalho da criança e adolescente e da mulher.” Porque se trata disso, pode-se alterar qualquer outra coisa prevista na lei, aí incluídas as Convenções Internacionais do Trabalho!
A expressão “entre outros” do art. 611-A torna a sua relação meramente exemplificativa do que pode se alterar na lei por convenção ou acordo coletivo e o art. 611-B é que estabelece o que não pode ser alterado pelos mesmos instrumentos.
Ainda, deve-se ressaltar que no proposto artigo 611-A, os agentes do atraso propõem amarrar a atuação da Justiça do Trabalho, dizendo no parágrafo primeiro que:
“No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no parágrafo 3º do art. 8º desta Consolidação.”
E o que diz o artigo 8º no parágrafo citado, na redação proposta:
“No exame da convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei Nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva”
O art. 104 do Código Civil simplesmente diz que a validade do negócio jurídico requer: "I- agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III- forma prescrita ou não defesa em lei." O recado é: não façam justiça, não examinem mais nada, deixe tudo como está.
Além da inconstitucionalidade gritante, a reforma, neste e em outros pontos, vai criar uma situação extremamente difícil para o Brasil. As Convenções da OIT são tratados internacionais ratificados pelo Governo Brasileiro, que entraram na nossa legislação com status próprio e não podem ser denunciados senão nos prazos previstos.
A cláusula de norma mais favorável ao trabalhador consta em várias Convenções da OIT e a Comissão de Peritos da Organização Internacional do Trabalho, que compõe o sistema de controle da Organização já decidiu que o procedimento adotado no texto da Reforma é contrário às Convenções Nº 98, 151 e 154.
Pela importância do tema, transcrevemos literalmente a posição da Comissão de Peritos, publicada em 2017:
“Articulação entre a negociação coletiva e a lei. A Comissão toma nota que vários projetos de lei, atualmente examinados pelo Congresso, contemplam a revisão do artigo 618 da CLT de maneira que as condições de trabalho determinadas por meio de uma convenção ou acordo coletivo prevalecem sobre o disposto na lei, sempre que não contrariem a Constituição Federal e as normas de medicina e segurança do trabalho. A Comissão observa que aqueles projetos de lei suporiam uma modificação significativa das relações entre a lei e as convenções e acordos coletivos, ao permitir de maneira geral que as proteções estabelecidas pela legislação possa ser derrogadas “in peius” por meio da negociação coletiva. A Comissão observa adicionalmente que a derrogabilidade das disposições legislativas que reconhecem direitos aos trabalhadores através da negociação coletiva está sendo objeto de debate perante as altas instâncias judiciais do país. A este respeito, a Comissão recorda que o objetivo geral das Convenções Nº 98, 151 e 154 é a promoção da negociação coletiva para encontrar um acordo sobre termos e condições de trabalho que sejam mais favoráveis que os previstos na legislação. (Veja-se Estudo Geral de 2013, A Negociação Coletiva na Administração Pública: um caminho a seguir, parágrafo 298) A Comissão sublinha que a definição da negociação coletiva como processo destinado a melhorar a proteção dos trabalhadores oferecida pela legislação está reconhecida nos “travaux préparatoires” da Convenção 154, instrumento que tem a finalidade, tal como especificado em seu Preâmbulo, de contribuir a realização dos objetivos fixados pela Convenção Nº 98. Nas ditas discussões preparatórias se considerou que não era necessário explicitar na nova Convenção o princípio geral segundo o qual a negociação coletiva não deveria ter como efeito o estabelecimento de condições menos favoráveis às estabelecidas na lei – o Comitê Tripartite da Conferência estabelecido para encaminhar O projeto de convenção considerou que isto era claro e que, por conseqüente, não era preciso incluir uma menção expressa a respeito."
Desde uma perspectiva prática, a Comissão considera que a introdução de uma possibilidade geral de rebaixar por meio da negociação coletiva as proteções estabelecidas em favor dos trabalhadores na legislação teria um forte efeito dissuasório sobre o exercício do dito direito e poderia contribuir a deslegitimação duradoura deste mecanismo. Neste sentido, a Comissão sublinha que, se bem que disposições legislativas pontuais poderiam prever, de maneira circunscrita e motivada, sua derrogabilidade por via da negociação coletiva, uma disposição que se institui a derrogabilidade geral da legislação laboral por meio da negociação coletiva seria contrária ao objetivo de promoção da negociação coletiva livre e voluntária prevista na Convenção. A Comissão confia que os alcances do artigo 4 da Convenção serão plenamente tomados em consideração tanto no marco do exame dos mencionados projetos de lei como nos recursos judiciais pendentes de resolução. (Observação (CEACR) Adoção 2016, Publicação: 106ª Reunião da CIT (2017) Convenção sobre o direito de sindicalização e de negociação coletiva, 1949 (nº 98) BRASIL: Ratificação 1952 )
O Representante da OIT no Brasil, Dr. Peter Poschen, já advertiu sobre esta questão, tanto na Câmara como no Senado. Também o Ministério Público do Trabalho, através do Procurador-Geral, Dr. Ronaldo Fleury, se posicionou contra esta reforma. Os Deputados Orlando Silva e Augusto Coutinho, apresentaram requerimento de Audiência Pública para tratar das Convenções da OIT que serão violadas caso seja aprovada a reforma trabalhista, na forma proposta. Mas o requerimento encontra-se arquivado.
Conclusões. O texto da reforma é claramente inconstitucional. Mesmo que se alegue a sua constitucionalidade, o assunto vai terminar sendo apreciado na Comissão de Peritos da OIT. Lá, a decisão já está estabelecida: é descumprimento da Convenção Nº 98, 151 e 154, todas ratificadas pelo Brasil.
Consequências previsíveis:
a) não contribuirá em nada com a tão propalada “segurança jurídica”, ao contrário ira incentivar as ações tanto individuais como coletivas;
b) o assunto parará na Comissão, que terminará “observando” o descumprimento de Convenções da OIT. A OIT tem uma atividade de promoção das normas, uma autoridade moral. Mas, a condenação abre passagens para discriminação quanto a exportações. Por exemplo, a condenação do Brasil, no passado, por utilização de trabalho escravo e trabalho infantil, abriu caminho para a suspensão das exportações para muitos países. Alguns setores atingidos foram, calçados, cítricos, carne, etc.
c) vamos ter um cipoal de normas emanadas de cerca de sete mil sindicatos, mesmo contra a lei. Muitos sindicatos, todos reconhecem, são de fachada, sem representar mais que a diretoria. Vai ser um incentivo à corrupção.
Então é isso. Os agentes do atraso vão provocar, mais uma vez, situações difíceis para todo o povo brasileiro.