Desde a promulgação do Code Civil de Napoleão em 1806, a codificação do direito civil passou a ser considerada uma necessidade histórica, visto como um pressuposto para a organização da sociedade. Naquele período, vários países europeus viam a necessidade de compilação de leis que regulamentaram a sociedade como um todo. Após o Iluminismo a codificação passou a ser vista como o ápice da racionalização e secularização do direito. Eram proclamados sob pressupostos de um "direito universal, da laicidade do direito, proteção da liberdade civil e individual, inviolabilidade da propriedade e a igualdade civil", sendo essenciais para o funcionamento de uma sociedade bem estruturada e desvinculada dos costumes tradicionais. A tentativa de incorporação do Código Civil europeu no cenário brasileiro se dava pela pretensão de firmar as concepções do liberalismo, este pressupunha uma racionalização das leis, mas no caso brasileiro, as pretensões do liberalismo eram incompatíveis com a realidade escravocrata da sociedade.
A organização do direito civil era essencial para a legislação de relações de trabalhos, sobre questões de heranças e doações de bens, necessário para a organização e o controle das relações de conflitos existentes. No entanto, como afirma Grinberg, o código só poderia funcionar todas as pessoas capazes de constituir direitos e obrigações civis, somente estes poderiam ser possuidores de direito civil, e, por conseguinte, ser considerado cidadão. Todavia, na realidade não eram tão simples assim, pois havia boa parte da população que exerciam obrigações civis, entretanto, não tinha seus direitos correspondentes. Nessa chave, seguindo a argumentação de Grinberg, para compreender a dificuldade de elaboração do Código Civil brasileiro, está intrinsecamente relacionada à questão da cidadania, é preciso saber “quem eram os cidadãos brasileiros na metade do século XIX?” Como incorporar um Código Civil nos moldes europeu na qual pressupõe que todos sejam livres e iguais perante a lei, em uma sociedade majoritariamente excludente, numa sociedade em que não completava a noção de liberdades civil e, portanto, a noção de cidadania?
Como afirmado por José Murilo de Carvalho a noção de cidadania vai para além da concepção de nação, na qual atribui a ideia de identidade coletiva, para ele concebe a concepção de cidadania de forma mais ampla, abrangendo todas as relações entre cidadãos e as instituições do Estado e por outro lado, as valorizações e práticas sociais. Para ele, eram cidadãos, aqueles que passavam a ter o sentimento de pertencimento daquela Nação ou Estado. A Constituição de 1824 declarava no art. 6 , § 1, que todos nascidos no Brasil que fosse ingênuos ou libertos eram considerados cidadãos. O problema é que nesse período mais de 1 milhão de pessoas estavam em condições escravas, não eram consideradas cidadãos, não possuíam direitos civis básicos como integridade, liberdade. Por conseguinte, Carvalho afirma, que não havia nessa sociedade a concepção de cidadania, de igualdade perante a lei, uma vez que os próprios senhores também não poderiam ser considerados cidadãos, pois também não tinham uma noção de liberdade civil, já que escravizava seus semelhantes.
Outra dificuldade que gira em torno dessa noção de cidadania, é a questão das mulheres que estavam submetidas às condições patriarcais da época. Embora fossem consideradas cidadãs pela constituição e exercessem obrigações civis elas não eram portadoras de direitos civis, não possuíam direitos políticos, às mulheres casadas estavam em jurisdição dos maridos, dessa forma, não teria justiça para defendê-las. Outro fenômeno importante como obstáculo para a construção da cidadania, era estreita ligação do Estado e a Igreja no Império, está fora reconhecida pela Constituição de 1824 como religião oficial do Império. A Igreja Católica tinha o controle de toda a vida civil naquele período, controlando os registros de nascimento, de casamento e de morte, nesse sentido, era delegada a essa instituição a organização da sociedade, no entanto, sociedade brasileira não era composta somente por católicos, havia um número crescente de protestante e judeus, mas que estavam inteiramente excluídos da sociedade, por serem não católicos não poderiam ter seus casamentos reconhecidos, pois não eram realizados na igreja católica.
Contudo, embora, fosse necessário a confecção de um Código Civil para a concretude da construção de um direito nacional, esse processo se tornaria inteiramente dificultado, uma vez que não havia naquela sociedade a noção de cidadania, contraditoriamente ao propósito de codificação do Código Civil nas pretensões liberais na qual todos eram vistos como iguais perante a lei, portanto, todos deveriam possuir e exercer seus direitos e obrigações civis, sendo assim abarcados pelo Código Civil. Na realidade, grande parte da população era majoritariamente excluída dos seus direitos de cidadãos, pois, eram uma sociedade, e, o próprio direito refletia isso, calcada por costumes patriarcalistas, escravocratas e católicos.
Referências:
CARVALHO, J. M. Nação e Cidadania no imperio.
GRINBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. 2008.
WOLKMER, A. C. História do Direito no Brasil.. 2003.