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O livre convencimento motivado foi extinto do processo civil brasileiro?

05/12/2018 às 13:30

Resumo:


  • O "Código Buzaid" de 1973 estabelecia o princípio do livre convencimento motivado para os juízes.

  • O CPC/2015 regulamentou o livre convencimento, priorizando princípios como contraditório e cooperação.

  • Há debates sobre a permanência do livre convencimento motivado no sistema processual brasileiro após o CPC/2015.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Durante longo período, o livre convencimento viabilizou a prolatação de decisões de duvidosa constitucionalidade, em detrimento da dialética processual e da fundamentação idônea. Há polêmica doutrinária a respeito da manutenção do postulado no CPC/2015.

O “Código Buzaid” de 1973 dispunha, em capítulo pertinente ao magistrado, que “O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento” (art. 131). A norma versava expressamente sobre o princípio do livre convencimento motivado (ou princípio da persuasão racional).

O CPC/2015 assim regulamentou o tema, dentro do capítulo das provas: “O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento” (Art. 371). Para José Eduardo de Melo Vilar Filho (2006, p. 46),

A alteração do sistema da prova legal para o sistema do livre convencimento motivado  fez com que a questão da prova saísse de uma dimensão estritamente jurídica, na medida em que atribuiu ao juiz, e não mais ao legislador, a função de valorar a prova.

Durante longo período, o livre convencimento viabilizou a prolatação de decisões de duvidosa constitucionalidade, em detrimento da lógica participativa de construção de provimentos, encampada abertamente pelo legislador do atual CPC (que optou por atribuir especial valor aos princípios do contraditório, da cooperação[1] e da boa-fé processual). Vejamos um exemplo extraído da jurisprudência do TJMG, ainda sob a égide do CPC/1973:

Não está o julgador obrigado a atacar todas as questões suscitadas pelas partes, podendo, de forma discricionária (não arbitrária), decidir a lide de acordo com seu livre convencimento. É o chamado princípio da persuasão racional do Magistrado, que vigora em nosso ordenamento jurídico-processual. Inteligência dos artigos 130 e 131 do Código de Processo Civil. [2]

Passemos, então, à indagação que serve como título para este ensaio: a Lei Federal nº 13.105/2015 expurgou o princípio do livre convencimento motivado do sistema processual civil brasileiro ou a norma vigente permite a aplicação do postulado, independentemente da alteração textual?

A leitura da Exposição de Motivos do Código (2010, p. 19) não fornece resposta segura. Vejamos:

Se, por um lado, o princípio do livre convencimento motivado é garantia de julgamentos independentes e justos, e neste sentido mereceu ser prestigiado pelo novo Código, por outro, compreendido em seu mais estendido alcance, acaba por conduzir a distorções do princípio da legalidade e à própria ideia, antes mencionada, de Estado Democrático de Direito.

Lenio Streck (2015, p. 34) é categórico ao defender a ocorrência de extinção do princípio no CPC/2015. Eis os argumentos invocados:

Travei uma batalha contra o poder discricionário, travestido de livre convencimento, que infestava o Projeto em sua redação original. Dizia eu que de nada adiantará exigir do juiz que enfrente todos os argumentos deduzidos na ação (vejam-se os artigos 499 e seguintes do Projeto) se ele tiver a liberdade de invocar a “jurisprudência do Supremo”, que afirma que o juiz não está obrigado a enfrentar todas as questões arguídas pelas partes. Dá-se com uma mão e tira-se com a outra (STRECK, 2013).

De há muito venho alertando a comunidade jurídica para esse pro­blema do protagonismo judicial, que deita raízes em uma questão para­digmática e não meramente “técnica”. (...)

Depois de muita discussão, o relator do Projeto, Dep. Paulo Teixeira, obtendo a concordância de um dos protagonistas do Projeto, Fredie Didier, aceitou minha sugestão de retirada do livre convencimento. Considero isso uma conquista hermenêutica sem precedentes no campo da teoria do direito de terrae brasilis. O Projeto, até então, adotava um modelo solipsista stricto sensu, corolário do paradigma epistemológico da filosofia da consciência (...).

Fernando da Fonseca Gajardoni (2015) adota tese contrária. Para o professor da USP, a ausência, no CPC, de dispositivo correspondente ao art. 131 do CPC/1973, não pode levar à conclusão de que no Brasil não mais vigora o princípio do livre convencimento motivado. Ele afirma que

O fato de não mais haver no sistema uma norma expressa indicativa de ser livre o juiz para, mediante fundamentação idônea, apreciar a prova, não significa que o princípio secular do direito brasileiro deixou de existir. E não deixou por uma razão absolutamente simples: o princípio do livre convencimento motivado jamais foi concebido como método de (não) aplicação da lei; como alforria para o juiz julgar o processo como bem entendesse; como se o ordenamento jurídico não fosse o limite. Foi concebido, sim, como antídoto eficaz e necessário para combater os sistemas da prova legal e do livre convencimento puro, suprimidos do ordenamento jurídico brasileiro, como regra geral, desde os tempos coloniais.

O posicionamento de Gajardoni foi refutado por Lucio Delfino e Ziel Ferreira Lopes (2015) nos seguintes termos:

Sentimo-nos estimulados a rebater a tese desenvolvida pelo inteligente articulista, sobretudo por estarmos entre aqueles filiados ao entendimento antagônico. Em escritos mais recentes, a ênfase atribuída por nós a essa novidade é nada menos que notória – um dos pontos altos do novo CPC: representa passo fundamental para a superação de resquícios do velho positivismo fático (realismo jurídico) que ainda tem lugar de relevo na mente de muitos profissionais que militam no foro. Algo, aliás, sempre e desde há muito elucidado por Lenio Streck, o mentor da emenda supressiva do livre convencimento. (...) Acertou o legislador ao proscrever do sistema processual esse rastro autoritário ainda sustentado pelo CPC-1973 e que mantém escancarada, em pleno século XXI, uma janela para emanações concretas da ideologia socialista no palco processual (Menger, Klein, Bulow), confiando aos julgadores liberdade para decidirem conforme pensam e segundo a prova que melhor se amolde ao seu pensamento, desde que depois se justifiquem, como se o dever de fundamentação (por mais oneroso que se apresente) impermeabilizasse sozinho o livre atribuir de sentidos.

Não paira dúvida de que a crescente preocupação com a adequação constitucional das decisões judiciais pôs em xeque a validade do sistema. E as razões são nítidas. Se o sentido atual de contraditório passou a ser, conforme ressalta José Lebre de Freitas (1996, p. 96-97), a influência das partes na construção do provimento, o princípio da livre persuasão racional pode gerar problemas.

O ato judicial de ‘indicar os motivos’ não coíbe, por si só, a arbitrariedade. Isso porque a decisão pode ser prolatada com base em fato ou circunstância extraída dos autos, porém alheia ao debate entre as partes (como ocorre na “decisão-surpresa” [3]). Sobre o tema trazemos a lição do professor Humberto Theodoro Júnior (2015, p. 869), dada sua particular clareza e precisão:

De fato, na constitucionalização do processo democrático, no Estado contemporâneo, não cabe mais pensar-se num comando processual apoiado no “livre convencimento” e na “livre apreciação da prova” a cargo do juiz, pelo risco que tais critérios trazem de gerar “decisões conforme a consciência do julgador”, quando se sabe que toda evolução do Estado Constitucional contemporâneo se deu no sentido de que, no processo, as decisões judiciais não devem ser tomadas a partir de critérios pessoais, isto é, a partir da consciência psicologista (...) A justiça e o Judiciário não podem depender da opinião pessoal que juízes e promotores tenham sobre as leis ou fenômenos sociais, até porque os sentidos sobre as leis (e os fenômenos) são produto de uma intersubjetividade, e não de um indivíduo isolado.

A nosso ver, o livre convencimento motivado assumiu um novo significado, em prol da segurança jurídica. Há duas razões que sustentam tal assertiva.

De um lado, o próprio CPC/2015 fornece instrumentos para que o magistrado tenha liberdade na trajetória intelectual de formação da sua convicção. Um exemplo está no art. 375, segundo o qual “o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece”. Tais noções (ou máximas), derivadas diretas da intuição, do saber tácito e do senso comum, são dotadas de enorme fluidez espacial e sociocultural.

Fato é que a atividade desenvolvida na esfera íntima do magistrado (elaboração do convencimento) é indissociável de elementos não jurídicos, advindo da sua formação humana. Pondera Michele Taruffo (2001, p. 173) sobre o tema que

É preciso, pois, conscientizar o fato de que o raciocínio do juiz é inevitavelmente imerso no senso comum, o qual compõe, juntamente com o Direito, o seu contexto inafastável. Embora isso ocorra com frequência, seria um erro substancial de perspectiva extrair o raciocínio do juiz desse contexto (...).

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De outro lado, a nova lei processual, além de realçar o princípio do contraditório e da publicidade das decisões judiciais, prescreveu, em seu art. 489, “elementos essenciais da sentença” e requisitos específicos para caracterização da fundamentação idônea. Logo, se persiste a liberdade na valoração da prova pelo magistrado (etapa decisória imune à fiscalização), não será legítima a conclusão, lançada no provimento, divorciada das teses e antíteses sustentadas pelas partes no curso do procedimento (art. 489, §1º, IV).

Ao cabo, se o que importa, para fins de controle público (justificação) é o argumento técnico-jurídico materializado no corpo do decisum e ele está submetido a balizas claras definidas pelo legislador, é de se questionar se a expressão “livre convencimento motivado” não constitui, na verdade, uma contradição em termos: se é motivado o convencimento exposto, ele não pode ser livre.


Referências bibliográficas

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: anteprojeto. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Brasília: Senado Federal, Presidência, 2010.

DELFINO, Lucio; LOPES, Ziel Ferreira. A expulsão do livre convencimento motivado do Novo CPC e os motivos pelos quais a razão está com os hermeneutas. Justificando. Abr./2015. Disponível em: [http://justificando.com/2015/04/13/a-expulsao-do-livre-convencimento-motivado-do-novo-cpc-e-os-motivos-pelos-quais-a-razao-esta-com-os-hermeneutas/]. Acesso: 10.7.2017.

FILHO, José Eduardo de Melo Vilar. Prova indiciária e verdade: enfoque constitucional. 183 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006.

GAJARDONI, Fernando da Fonseca. O livre convencimento motivado não acabou no novo CPC. Jota. Abr./2015. Disponível em: [https://jota.info/colunas/novo-cpc/o-livre-convencimento-motivado-nao-acabou-no-novo-cpc-06042015]. Acesso: 2.7.2017.

LEBRE DE FREITAS, José. Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais à luz do código revisto. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.

PORTUGAL, Supremo Tribunal de Justiça. Recurso de Revista Processo nº 6473/03.2TVPRT.P1.S1, 7ª Secção, Relator: Antônio da Silva Gonçalves, j. 19.5.2016.

STRECK, Lenio Luiz. O novo Código de Processo Civil (CPC) e as inovações hermenêuticas: O fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 52, n. 206, abr./jun. 2015.

TARUFFO, Michele. Senso comum, experiência e ciência no raciocínio do juiz. Revista da Escola Paulista da Magistratura. São Paulo, v. 2, nº 2, p. 171, julho-dezembro/2001.

THEODORO JR, Humberto. Curso de direito processual civil. 56.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. v. 1.


Notas

[1] Vale salientar que, muito antes da entrada em vigor do CPC de 2015, era possível encontrar na jurisprudência julgados consagradores do princípio da cooperação. Conferir: TJMG, Apelação cível n° 1.0024.08.993716-3/001, 1ª Câmara Cível, Rel. Des. Eduardo Andrade, j. 02.09.2008.

[2] TJMG, Embargos de declaração n° 1.0134.05.054584-4/002, 16ª Câmara Cível, Rel. Des. Sebastião Pereira de Souza, j. 17.10.2007.

[3] Nos termos de acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, a chamada “decisão-surpresa” é proferida “se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada decisão do litígio”. (PORTUGAL, Supremo Tribunal de Justiça, Recurso de Revista Processo nº 6473/03.2TVPRT.P1.S1, 7ª Secção, Relator: Antônio da Silva Gonçalves, j. 19.5.2016). Para considerações mais abrangentes sobre a matéria, remetemos o leitor a artigo de nossa autoria intitulado “A conexão entre os princípios do contraditório e da fundamentação das decisões jurisdicionais.” (Revista da Procuradoria-Geral do Município de Belo Horizonte, v. 6, p. 11-35, 2013).

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Sobre o autor
Cirilo Augusto Vargas

Defensor Público do Estado de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual Civil pela UFMG. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela PUC-MINAS. Ex-integrante do Projeto das Nações Unidas para Fortalecimento do Sistema de Justiça de Timor-Leste. Exerceu as funções de clerk perante a Suprema Corte do Estado do Alabama/EUA e de Defensor Público visitante perante a Defensoria Pública Federal do Estado do Alabama/EUA.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VARGAS, Cirilo Augusto. O livre convencimento motivado foi extinto do processo civil brasileiro?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5635, 5 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59197. Acesso em: 25 dez. 2024.

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