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A usucapião pro morare

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21/04/1998 às 00:00
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1. INTRODUÇÃO

O Brasil, desde sua colonização, foi um país predominantemente agrícola. A maior parte da população concentrava-se no campo, onde era maior a demanda de força de trabalho para atender às necessidades da produção.

Com o desenvolvimento industrial, a partir do terceiro quarto do século XIX, vieram as fábricas, que se tornaram um foco de captação de mão-de-obra atraindo a população da zona rural.

Na metade deste século, 27% da população vivia nas cidades, este número, hoje, ultrapassa a 70%, e, segundo previsões, chegará a 90% em trinta anos (1). A degradação atual dos grandes centros urbanos, o número de casas não apropriadas ou não regularizadas representam quase um terço de todos os lares, a cada dia terrenos são invadidos, casas construídas do dia para a noite, as cidades urbanas incham.

Tal agravante, nas últimas décadas, mobilizou a sociedade no sentido de que fossem criados instrumentos capazes de minimizar os problemas urbanos, especialmente os relacionados com a falta de moradia.

A urbanização tornou-se um problema social, afetando a todos os países, por diversas razões, colhendo tanto as sociedades industriais como as em via de desenvolvimento.

A usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada, na forma da lei, tendo como objetivo de acabar com a incerteza da propriedade, assim como assegurar a paz social pelo reconhecimento da propriedade com relação àquela pessoa que de longa data é o seu possuidor.

Ocorre na usucapião, simultaneamente, a perda do direito do antigo proprietário e a aquisição de um novo direito por parte do usucapiente. Esta nova relação jurídica não deriva da anterior. Poderíamos dizer que é uma forma originária de aquisição da propriedade. Sendo um instituto de grande alcance social, pelo meio do qual o possuidor do imóvel chega a adquirir-lhe o domínio.

A atual Constituição de 1988 trouxe para seu seio a usucapião pro labore, criando a modalidade urbana, a usucapião pro morare, absolutamente desconhecida em nosso ordenamento jurídico até então, que é o tema deste nosso estudo científico.


2. HISTÓRICO

Embora só tendo sido inserido em nosso ordenamento jurídico com a Carta Magna de 1988, a usucapião urbana de há muito vinha sendo objeto de discussão no Congresso Nacional.

Quando da apreciação do Projeto de Lei n° 26/81, de iniciativa do Executivo, que instituía o usucapião especial rural (que se converteu na Lei n° 6.969/81), houveram tentativas propondo o alagamento da incidência normativa também em áreas urbanas carentes, independente de justo título de boa-fé, no entanto sendo tal Lei aprovada sem emendas.

De iniciativa popular, fora proposta Emenda Popular propondo a adoção pelo Texto Constitucional do seguinte dispositivo: "serão legalizadas as posses urbanas constituídas há mais de dois anos, desde que o usuário não disponha de outra propriedade".

Após várias alterações de redação, recebeu parecer favorável do Relator da Constituinte, sendo votada e aprovada em plenário. Tal texto foi inserido no Capítulo II, do Título VII, que trata da Política Urbana, adotando o seguinte teor:

"Art. 183. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1° O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente de estado civil.

§ 2° Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 3° Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.".


3.CAPACIDADE PARA USUCAPIR

Essa nova modalidade de usucapião, denominada "urbana", "de solo urbano", "pro morare" e ainda "por casa" foge às regras tradicionais adotadas por nosso Código Civil.

Pelo sistema tradicional do Código Civil, não há limitações quantitativas quanto à área usucapível, nem há necessidade de que o usucapiente dê certa destinação ao imóvel.

Na espécie urbana, por outro lado, há uma plêiade de restrições quanto à obtenção do domínio via usucapião, tais como limitação da área usucapível, exigência de certa destinação do bem, além de outras, que serão analisadas a seguir.

O elemento nuclear para que se configure a usucapião é a posse. O que na verdade o prescribente faz é converter a sua mera posse que traduzia uma situação de fato numa outra jurídica, qual seja o domínio.

3.1 Posse

Para que o usucapiente faça jus à aquisição do domínio é essencial que tenha a posse direta e pessoal da área, em nome próprio, e sem a interferência de terceiros. Sendo excluídos da incidência normativa constitucional os meros detentores, os possuidores em nome alheio, como caseiros, comodatários, empregados, bem como todos aqueles que se encontrem em relação de dependência para com o proprietário.

Além disso, a posse precisa ser justa, isto é, escoimada dos vícios decorrentes da violência, clandestinidade ou precariedade, nos moldes do art. 489 do Código Civil.

A posse violenta é aquela conseguida através do exercício de atos de força. Esta violência tanto poderá ser física como psicológica ou moral, desde que, neste último caso, infunda no possuidor destituído grave receio de mal considerável, a ponto de não poder evitar a perda da sua posse. Clandestina, por sua vez, será a posse adquirida às ocultas, sem o reconhecimento do possuidor legítimo, e sem a prática de violência física ou moral. A precariedade está na aquisição da posse mediante o abuso de confiança, ou seja, aqueles que de alguma forma detém a propriedade sob a anuência do dono, como empréstimo, empregado, entre outros.

3.2 Do justo título e da boa-fé

Para a obtenção do usucapião, na sua modalidade urbana, a Constituição não exige que o possuidor comprove a boa-fé; ela, até prova em contrário, é presumida.

O justo título também é despiciendo em face do art. 183 da Carta Política. Nada impede, porém, que seja utilizado como meio de reforçar-se a pretensão aquisitiva.

3.3 Inexistência de interrupção

A posse hábil á aquisição do domínio, na espécie urbana de usucapião, deve ser contínua, ininterrupta, sem intervalos, sem intermitência.

A doutrina, entretanto, tem entendido que pequenas interrupções ocasionadas por esbulhos breves não têm o condão de interromper o lapso prescricional, desde que o prescribente consiga reintegrar-se no prazo de um ano e um dia.

A reintegração dentro desse prazo, nos moldes previstos no art. 520, IV, do Código Civil, é considerada como se a posse jamais tivesse sido perdida, no sentido jurídico, para efeito do prazo prescricional.

Da mesma forma, não interrompe o lapso prescricional o afastamento por motivo justo, como o motivado por internação em hospital ou decorrente de revolução intestina. (2)

Além da inexistência ininterrupta, a Lei Maior exige que não haja oposição do proprietário. a posse, durante todo o lapso prescricional, deve fluir de forma mansa e pacífica, a fim de caracterizar-se a conduta omissiva do proprietário em relação ao seu imóvel.

Para se configurar a oposição, no sentido jurídico, não bastam os atos meramente emulativos; é necessária a presença de uma oposição séria, tempestiva e exercida na área judicializada. (3)

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3.4 Bens insusceptíveis de usucapião

Entre outras limitações objetivas ao usucapião urbano, destaca-se a impossibilidade de serem usucapidos os bens públicos (CF, art. 183, § 3°).

Autores como Celso Ribeiro Bastos (4) e Tupinambá do Nascimento (5) fazem distinção entre terras públicas e terras devolutas para efeito de usucapião. Estas, na ótica dos autores são passíveis de usucapião, em razão de serem mantidas a título de direito privado, não sendo públicas stricto sensu.

3.5 Moradia

Para que se possa consumar o usucapião é imprescindível, segundo o art. 183, que o possuidor utilize o bem "para sua moradia ou de sua família".

A palavra "moradia", segundo o "Caldas Aulete", vem de "morada" e significa o domicílio, a casa em que ordinariamente habitamos. Nesse sentido entendemos seja ser empregado o vocábulo. Estão afastadas, pois, as posses esporádicas ou eventuais, como as que ocorrem, por exemplo, em casas de veraneio.

Também escapa à incidência do dispositivo a posse que não se destina à moradia, mas sim a fins comerciais, como, v.g., uma lanchonete ou uma oficina, exceto se o possuidor tiver residência na própria unidade de comércio, o que é bastante comum.

Ademais, para que possa fazer jus ao usucapião urbano, não pode o possuidor ser proprietário de outro bem imóvel, seja ele urbano ou rural.

Isso significa que, durante todo o prazo prescricional, não poderá o usucapiente ser proprietário de imóvel, ainda que em outro Estado ou outro país. Nada impede, contudo, que tenha sido proprietário antes da ocupação do bem usucapiendo, ou que venha a sê-lo posteriormente à propositura da ação visando a declaração de domínio.


4. OBJETO

4.1 Área urbana

Nos moldes estabelecidos pelo art. 183 da CF, será objeto dessa forma de usucapião somente "área urbana". Estão excluídas, pois, da incidência normativa as áreas rurais, cujo usucapião é disciplinado pelo art. 191.

A distinção entre imóveis rurais e urbanos é feita pela doutrina segundo dois critérios: o da destinação e o da localização.

O critério da destinação leva em consideração o uso do imóvel ou a finalidade a que é destinado: é urbano se destinado á moradia; é rural se destinado a fins agrícolas ou pastoris. Pelo segundo critério, da localização, tem-se em vista a situação espacial em que o imóvel se encontra. É urbano se for situado em zona urbana; é rural o imóvel situado na zona rural, independentemente do fim a que é destinado.

Para efeito de enquadramento jurídico, entendemos que o art. 183 agasalha o critério da localização. Com efeito, o citado artigo encontra-se inserido no Capítulo da Política Urbana, que trata especificamente das questões surgidas no âmbito das cidades. Diante disso, para efeito da incidência da norma, é irrelevante a destinação que se dê ao bem, bastando que se situe dentro da zona urbana.

4.2 Extensão da área

O constituinte de 1988 fixou como limite máximo ao usucapião previsto no art. 183 "área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados".

Pareceu ao Legislador Constitucional que essa área refletiria o ponto de equilíbrio: atenderia às necessidades de moradia do possuidor sem causar grandes penalizações ao proprietário da área usucapta.

As posses que embarquem áreas superiores ao limite constitucional estão excluídas da incidência do art. 183. Nada impede, contudo, que o possuidor de áreas maiores peça em juízo que se lhe conceda o domínio de parte da área possuída - limitada aos 250 metros quadrados - restituindo-se ao proprietário o quantum excedente.

A Carta Magna, entretanto, não dá solução a alguns problemas exsurgente no usucapião urbano, como, por exemplo, os decorrentes das posses localizadas em lotes urbanos, indivisíveis por lei, cuja extensão supere os 250 metros quadrados.

O art. 4° da Lei de Introdução do Código Civil determina que, em sendo omissa sobre determinada questão, o juiz deverá decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

A Lei n° 6.969/81, que disciplina o usucapião especial rural, possui dispositivo que pode ser perfeitamente aplicado, por analogia, ao usucapião urbano.

O art. 1° dessa Lei limita a área usucapível a 25 hectares, e seu parágrafo 1° estipula que prevalecerá a área do módulo rural caso este seja superior a 25 hectares.

Assim, até que lei específica regularmente a matéria, o dispositivo da Lei n° 6.969/81 poderá ser aplicado analogicamente ao usucapião urbano, de modo que a declaração de domínio se estenda a todo o lote, nas hipóteses em que este, mesmo ultrapassando os 250 metros quadrados, for indivisível por lei.

O Texto Constitucional também não esclarece se a "área" usucapível refere-se à área do terreno ou à área construída.

Para alguns, como Celso Bastos e Benedito Ribeiro, a área urbana deve ser entendida tanto em razão do terreno quanto da construção. Sustentam que, não tendo a Carta Política feito distinção, é porque quis abranger as duas espécies. Nesses termos, o imóvel usucapiendo não poderá ter mais de 250 metros quadrados, seja de terreno, seja de área construída. O que importa é que a área do terreno seja igual ou inferior ao máximo permitido (250m²), ainda que sobre ele tenha sido edificado prédio com área construída superior àquele montante.

Deveras, sendo o terreno o principal em relação à construção, nos moldes do art. 61, III, do Código Civil, aquele é que deve ser levado em conta e não este.

4.3 Usucapião de apartamentos

Uma questão exsurgente no estudo do usucapião urbano é a de saber-se se os apartamentos estão ou não abarcados pela norma do art. 183.

O problema apresenta solução distinta da relatada anteriormente, naquele caso, o que importa, para efeitos aquisitivos, é tão-somente a área do terreno, ainda que a área sobre ele construída exceda o limite constitucional.

A questão aqui é diversa. A propriedade horizontal - também denominada condomínio em edifícios - possui natureza jurídica complexa, distinta da propriedade comum.

Os fundamentos que justificam a existência dessa espécie condominial e os princípios pelos quais são regidos são díspares daqueles que regem a comunhão pro indiviso tradicional . (6)

As faculdades dos condôminos do prédio dividido em apartamentos não traduzem um poder jurídico sobre a coisa toda; implicam a utilização em comum tão-somente das partes necessárias à "soldadura da comunhão" conforme Caio Mário. (7)

Nascimento Franco e Nisske Gongo afirma que "a propriedade horizontal é direito autônomo que se distingue perfeitamente por suas próprias características". (8)

Sobre ser autônoma, cada unidade do condomínio horizontal poderá ser alienada separadamente. E se pode ser alienada, também poderá ser usucapida, como é de entendimento pacífico.

Ora, em podendo ser objeto de usucapião tradicional, nas formas previstas pelo Código Civil, nada impede que o seja também objeto de usucapião constitucional.

Neste caso, a área a ser computada é a do apartamento e não a da "fração ideal" a ele correspondente, pois, nos condomínios de edifícios, o principal é o apartamento, sendo fração ideal o acessório. Não se lhe aplica, assim, o disposto no art. 61, III, do Código Civil.

Com efeito, a "fração ideal", largamente empregada nos condomínios horizontais, é simples ficção jurídica, visto que os imóveis localizados nos condomínios de apartamentos não ocupam, em verdade área de solo.

Assim, em relação aos apartamentos, conclui-se que, em razão da impossibilidade de usucapir-se a área de terreno que lhe é correspondente - a "fração ideal" -, usucape-se o apartamento e, por conseqüência, a "fração ideal": acessorium sequitur principale.

Ademais, excluírem-se os imóveis situados em condomínios horizontais da incidência do usucapião constitucional urbano é restringir o alcance de um instituto destinado precipuamente a ter eficácia nos grandes centros urbanos, onde é cada vez maior a concentração de edificações, muitas das quais abandonadas e sem qualquer destinação específica, em desobediência aos ditames da função social da propriedade (CF, art. 170, III).

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Sobre o autor
Múrcio Kleber Gomes Ferreira

acadêmico de Direito em Natal (RN)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Múrcio Kleber Gomes. A usucapião pro morare. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/592. Acesso em: 2 nov. 2024.

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