Funções não declaradas da mídia penal:do etiquetamento ao estigma

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19/07/2017 às 09:58
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O objeto deste trabalho é demonstrar as interferências midiáticas na seara criminal, onde se evidencia a executivização, o viés do lucro, o etiquetamento, a estigmatização e a autoincriminação do acusado pela mídia atual.

Palavras-chave:Criminologia. Midiatismo. Executivismo. Autoincriminaçao. Etiquetamento

Sumário:1. A função executiva da mídia penal - 2. A função de autoincriminar o acusado da mídia penal - 3. A função estigmatizante da mídia penal: construção criminal - 4. Considerações finais: mais Jean-Paul Marat e menos Datena.


 INTRODUÇAO

Não se pode negar que a mídia é um dos melhores instrumentos de propagação da informação e como tal também é responsável por construir certa imagem/impressão do indivíduo. A celeuma surge quando o sensacionalismo interfere no julgamento da causa e no processo penal. 

E isso é que estimula o presente ensaio, essa passagem da mídia informativa para a mídia investigativa, lucrativa, inquisitorial, num viés de total contramão a que ela se propunha: informar.

Nesse contexto, trazem-se a lume as funções midiáticas-criminais desempenhadas que, porém, não são assumidas/declaradas.  O fato é que vivemos em uma sociedade midiática, as redes sociais, os aplicativos de mensagem eletrônica, os programas de telecomunicação, tudo é comunicar.

O homem tende a conviver em sociedade e a habitar espaços juntamente com outros semelhantes e nesse ambiente se desenvolve toda sorte de comunicação. O avanço tecnológico integra esse organismo e é instrumento essencial no cenário capitalizado da atualidade. A revolução técnica-científica operada pela globalização trouxe a integração informativa e é nesse preceito que se desenvolve o presente trabalho.

E quando se trata de globalização não se pode olvidar de abordar a massificação, a cultura de massa, o consumo de massa. E com a informação não é diferente, esta também é massificada, viralizada. A mídia nutre muito bem  sua clientela nesses termos.

Os “filmes”, vídeos, imagens etc. circulam nas redes sociais e nos aplicativos de conversa eletrônica em uma velocidade espantosa. O conhecimento e a informação se tornaram recursos estratégicos na atual sociedade de massa.

Evidente, portanto, a importância da mídia no contexto econômico atual que ao mesmo tempo é fonte de crescente insegurança e incertezas, tempos em que o excesso de informação e sua manipulação por parte dos detentores dos grandes veículos de comunicação tem gerado a desinformação[i]

Com isso, o sensacionalismo ganha força principalmente por meio da sociedade de massa propulsionada pela internet e pelas redes sociais, que lucram com os milhões de acessos e cliques, gerando o fenômeno da comercialização do crime.

E isso se dá de forma bem desmistificada e muito bem debatida na literatura jurídica:  O redator da notícia transforma o ato comum em sensacional, cria um clima de tensão por meio de títulos e imagens fortes, contundentes, que atingem a opinião pública.[ii]


1. A função executiva da mídia penal

Não é raro vermos a mídia operando no campo sócio-criminal, e isso se extrai facilmente ao observar o enunciado das capas de jornais, os discursos de reportagens policiais que circulam na imprensa televisiva e virtual.

Além da função não declarada de lucro, não se pode ainda olvidar da executivização. Abordada por Nilo Batista, que faz referência aos estudos de Kleber Mendonça, trata de como as instituições midiáticas – como a TV Globo – se coloca como instância de serviço público que tende a corrigir as insuficiências do sistema penal, “a fazer a justiça funcionar como deveria”.[iii]

O fenômeno da executivização ocorre com a transição da “mídia informativa” para a “mídia-punitiva” que dissemina a ideia de que garantias constitucionais previstas como a dignidade da pessoa humana, a culpabilidade, a presunção da inocência, etc. são empecilhos à eficiência do jus puniendi, proliferando um maniqueísmo exacerbado na sociedade brasileira

(...)quando o jornalismo deixa de ser uma narrativa com pretensão de fidedignidade sobre a investigação de um crime ou sobre um processo em curso, e assume diretamente a função investigatória ou promove uma reconstrução dramatizada do caso – de alcance e repercussão fantasticamente superiores à reconstrução processual –, passou a atuar politicamente.[iv]

Quando se fala em mídia não se esta falando apenas dos jornais e programas televisivos, há ainda as redes sociais utilizadas por grande parte (maioria) da população brasileira. E é nesse meio de veiculação midiático que reside uma grande fatia da estigmatização, do etiquetamento, da indignidade e da ignorância humana.

Não é raro exemplos de manipulação midiática por diversos meios de comunicação, seja virtual, impressa ou televisiva. Diariamente vídeos e imagens são veiculadas em total dissonância e descompromisso com a verdade. Tudo é claro com o intuito de lucro sensacionalista.

Lembrando ainda, como adverte Nilo Batista, não é somente o aspecto teconológico/econômico que move a executivização, é também certos elementos inéditos, que não podem ser associados apenas aos recentes saltos tecnológicos [v]

A mídia denuncia, processa e executa sua sentença. Tal despotismo ocorre diariamente no recinto das redações de imprensa e nas redes sociais globalizada do capitalismo tardio,  que se valem de argumentos maniqueístas da pena como rito sagrado de solução de conflito. [vi]

Pessoas são condenadas antes mesmo de enfrentarem um processo legal. Essa conjuntura se acentua quando há interlocutores que além de serem consumidores imediatos do midiatismo-criminal, estão a mercê de uma criação da realidade que convergem com preconceitos e crenças que se baseia em uma etiologia criminal simplista.[vii]

Explica-se: a mídia inculta na sociedade a debilidade da pena, a insuficiência da legislação, e a essa crença soma-se o preconceito dos marginalizados etiquetados como “eles”, a partir daí esse pacote é vendido nos meios de comunicação abrindo  precedentes para o fenômeno da executivização e consequentemente a investigação, o processo e execução da sentença midiática.

Com isso, a mídia adota seu script de controle sócio-criminal sobrepondo-se aos preceitos da legalidade e dos princípios do estado democrático de direito ecoando no processo penal e contribuindo com a seletividade do sistema penal, assumindo verdadeiras funções (instrumentais) executivas, típicas do próprio sistema penal: ela investiga, denuncia, processa, condena e estigmatiza antes da criminalização oficial do sistema penal.[viii]

Se não bastasse isso, ainda há, por parte do consumidor midiático penal, aquiescência do discurso de “carência legislativa-punitiva”, alienados ainda por discursos fascistas dos apresentadores de telejornais, que sob o manto de um estado voltado para a seletividade executa publicamente suas investigações midiáticas e distribui na comunicação de massa.

(...)o termo massa ainda sugere que os destinatários da noticia, que integram a audiência, são indivíduos passivos, indiferentes, empobrecidos em suas relações pessoais, facilmente controlados pelos meios de comunicação.[ix]

Pessoas são sentenciadas no recinto dos programas televisivos, nas matérias jornalísticas. Não há contraditório, não há direito de defesa e nem de resposta, o que há é a mídia penal de massa, e a isso se deve combater com veemência.


2. A função de autoincriminar o acusado da mídia penal

Se já não bastasse fatores outros que contrastam no deslinde da causa como o silopsismo jurídico - onde juízes julgam de acordo com sua consciência ou seu entendimento pessoal sobre o sentido da lei [x] –  a estereotipação, o maniqueísmo processual, entre outros, ainda há um sensacionalismo desmoralizante e destemido atuando no convencimento do magistrado e da população

Uma vez difundidas pela mídia, esses enunciados acabam por enraizar certezas na população, o que não tarda muito para influenciar magistrados e promotores de justiça à frente do Ministério Público. Tais enunciados são muitas vezes montados utilizando-se a própria declaração do indivíduo, de uma forma tal que o autoincrimina.

Em se tratando de autoincriminação por sua vez, é cediço que ninguém é obrigado a se incriminar ou a produzir prova contra si mesmo. Em verdade, a produção de provas contra si é sim permitida, como nos casos de confissão. O que não se admite, portanto, é a produção de provas de forma involuntária, e ai emerge a atuação da imprensa, dos profissionais de comunicação televisiva e da mídia.

Nenhum indivíduo pode ser obrigado, por qualquer autoridade ou mesmo por um particular, a fornecer involuntariamente qualquer tipo de informação ou declaração, dado, objeto ou prova que o incrimine direta ou indiretamente [xi]

O principio da não produção de provas (involuntária) contra si mesmo é previsto na Convecção Americana de Direitos Humanos e consagrado no art. LXIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 a partir de uma das suas maiores vertentes: o direito ao silêncio, podendo ainda ser relacionado com o direito a ampla defesa, a presunção de inocência e o direito à intimidade.

LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado

No entanto, tal “ciência ao preso de seus direitos ao silêncio” parece não ser o bastante para impedir os mais diversos abusos e atrocidades cometidos por profissionais de reportagens policiais e instituições midiáticas que, aproveitando de situações emocionais e da contemporaneidade dos fatos ocorridos se debruçam em uma jornada de captura de informações desferidas pelos acusados/presos.

Não raro é o cenário onde o Indivíduo após o cometimento de um suposto ato criminoso é entrevistado por profissional de jornalismo onde é instigado, provocado, coagido a responder questionamentos pré-elaborados acerca do acontecimento. Tudo, é claro, com o nítido viés do sensacionalismo, do interesse econômico dos programas policiais televisivos e da mídia maniqueísta estigmatizante que tanto difunde a punição e o terror penal.

Em tais declarações - onde muitas vezes não é assegurado ao preso o seu direito constitucional ao silêncio -  é evidente  o prejuízo processual causado ao acusado, já que este poderá eventualmente se deparar com um telespectador que decidirá seu caso, seja na figura de juiz ou jurado do Tribunal do Júri.

É evidente que em muitos casos a imprensa não tem compromisso com as garantias constitucionais e os preceitos processuais daqueles que figuram como acusados nas reportagens.

O que se quer tratar enfaticamente aqui é a ausência de parcialidade da mídia criminal, ausência de sua função declarada: informar. O sensacionalismo é detentor de um poder de convencimento e influência impar. Entre omissão e montagem de informação, apela às emoções, forja conceitos externos que repetidos várias vezes torna-se fato, como a uma mentira que  suficientemente repetida por número significativo de pessoas, acaba por ser aceita como verdade.[xii]

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3. A função estigmatizante da mídia: construção criminal.

A exposição da construção criminal midiática de que se tratará a seguir não pode ser alcançada sem a necessária abordagem ao etiquetamento penal, “labelling aprouch”, bem defendida por Becker em seu livro "Outsiders"[xiii]

Zaffaroni, ao tratar do etiquetamento, afirma a necessidade do estado, por meio do jus puniendi, identificar inimigos por meio da legislação penal. Esta característica é o que a Criminologia Crítica chama de rotulação, etiquetamento, criação de estereótipo do criminoso.[xiv]

De tal etiquetamento/rotulação muito bem se encarrega a mídia. E o fator tecnológico-midiático contribui com o abordado. É que, como aludido em tópico anterior, uma mentira contada varias vezes acaba por se tornar verdade, em outros termos, a partir do momento em que determinada informação é viralizada a veracidade do seu conteúdo se torna aceitável

Em uma sociedade virtualizada, operada pelas redes sociais e aplicativos de conversa eletrônica, a estigmatização é potencializada em seu grau máximo.

“a criminalização gera fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com ele” [xv]

Não raro são os vídeos veiculados em redes sociais onde o individuo tem sua imagem vinculada ao furto/roubo supostamente ocorrido, difícil ainda mais é imaginar o ingresso desse mesmo individuo no mercado de trabalho na região onde ocorreram os fatos e onde foi viralizado o “curta metragem”. A estigmatização é certa, irreversível, e o preconceito é destilado na massa.

A criminologia midiática se volta para o eles e estigmatiza como violenta qualquer manifestação que vá contra sua construção da realidade. [xvi]

Não se quer aqui ceifar a liberdade de expressão, liberdade de veicular informação, etc. em verdade, não se pretende entrar nesse mérito, certo é que vivemos em uma sociedade tecnológica informatizada globalizada e em nada se opõe o presente estudo.

A problemática central é: a mídia não informa, ela estigmatiza, constrói a criminalidade paralelamente ao estado, ao lado da política criminal

Como é natural, tudo o que chama a atenção pública move os políticos a usá-lo no campo do clientelismo e a polícia a lhe dedicar atenção preferencial. [xvii]

Ainda há a formação de opinião e consequentemente os efeitos da criminologia midiática sobre a população brasileira no que se refere à produção e veiculação de  conceitos e estereótipos. Para Zafarroni, “estes estereótipos permitem a catalogação dos criminosos que combinam com a imagem que corresponde à descrição fabricada, deixando de fora outros tipos de delinquentes.[xviii] Ora, o crime político – ou cometido por políticos contra a Administração pública -  não causa tanta repulsão quanto o furto de caixa eletrônico ou o estelionato.

O punitivismo midiático é difícil de ser desmistificado. Este trabalha com imagens, com discurso pré-elaborado que destorce a realidade. No entanto, o presente ensaio não se limita à critica da imprensa no pólo ativo, mas sim da própria população cliente do capitalismo tardio que vem operando o midiatismo criminal na mesma velocidade do avanço tecnológico.

O que ocorre é que esses clientes rotulam somente e apenas o que lhe é indicado por uma instituição muito maior: a imprensa, os programas televisivos de investigação policial, as reportagens policiais das grandes empresas de telecomunicação. 

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Sobre o autor
Jean Carlos Dias

Graduado em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí/SC, Pós-graduando em Direito Penal e Processo Penal. Advogado em Balneário Piçarras/SC com inscrição na OAB sob o n° 48947 e pesquisador das ciências criminais e jurídicas. Email: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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